“Napoleão” de Phoenix alimenta-se de glórias do grande estrategista militar e de seu amor desmedido e ciumento por Josefina

Por Maria do Rosário Caetano

O Napoleão encarnado por Joaquin Phoenix em megaprodução comandada pelo britânico Ridley Scott deve alcançar sucesso planetário. Afinal, tem tudo para tanto: batalhas espetaculares e fixação no fogoso e imenso amor do estrategista militar e imperador da França por sua primeira esposa, Josefina.

O épico britânico, produzido pela Apple TV, estreia nessa quinta-feira, 23 de novembro, em cinemas de todo o país. Boa parte do público, decerto, não terá paciência para esperar a série que chegará ao streaming com mais duas horas de acréscimo, mas sem data precisa de estreia. Além do mais, nada como ver um épico em tela grande. E, para tornar o filme ainda mais atraente, há a aposta na badalação do Oscar de Hollywood. “Napoleão” está cotado para figurar entre os dez principais finalistas.

Joaquin Phoenix, o protagonista onipresente, também figura nas listas de candidatos a melhor ator. Astro já premiado pela Academia, ele faz o que quer em cena. Aos 49 anos, interpreta o corso Napoleão Bonaparte (1769-1821) dos 20 (sem rejuvenescimento artificial) aos 52 anos. Ou seja, dos tempos de soldado em início de carreira, passando pelo generalato (conquistado aos 24 anos) e pela condição de imperador amado pelo povo francês (e pelo Exército, que o acolheu em seu regresso do exílio na ilha de Elba e seguiu com ele para sua mais dura — e derradeira — batalha, a de Waterloo).

O filme do octogenário Ridley Scott não se preocupa com a verdade histórica. E não se constrange em concentrar os muitos amores do corso em uma única mulher, a viúva franco-martinicana Josefina, 12 anos mais velha que ele (houve arranjos legais — mostram os historiadores — para atenuar tal diferença).

A se acreditar na história engendrada pelo roteirista David Scarpa (cujo nome aparece com imenso destaque nos créditos e cartazes do novíssimo “Napoleão”), o general lendário só pensava em Josefina. E — prato cheio para qualquer roteirista — ela não pôde dar ao imperador o herdeiro que ele tanto desejava.

Josefina teve dois filhos do primeiro casamento (com o Visconde Beauharnais), mas não conseguiu engravidar do imperador que a amava tanto. Seria ele estéril? A genitora do soberano bolará estratégia capaz de dirimir a dúvida. Napoleão se casará, depois, com uma princesa da Áustria e terá um filho legítimo, que se somará a outros bastardos. Mas, para David Scarpa, o corso só pensava em uma mulher — a ardilosa Josefina.

O cinema — calculam-se em quase mil as aparições de Bonaparte em tramas feitas para a tela grande e a TV — já mostrou outros amores do general-imperador. Caso da polonesa Madame Waleska (Greta Garbo), par do general francês (interpretado por Charles Boyer) em filme de Clarence Brown (“Madame Waleska”, 1934). Ou de Desirée Clary (Jean Simmons) em “O Amor de Napoleão”, interpretado por Marlon Brando (Henry Coster, 1954).

Quem quiser rever — para a devida comparação com o épico de Ridley Scott — os melhores momentos da filmografia dedicada ao imperador francês tem opções de imensas qualidades. Caso de “Napoleão”, do francês Abel Gance, realizado ainda na era muda, e “Guerra e Paz” (épico soviético sobre a invasão da Rússia por tropas napoleônicas), de Sergei Bondarchuk. Este filme, com sete horas de duração, foi premiado com o Oscar estrangeiro e deu origem a “Waterloo”, produção russo-britânica, encabeçada por elenco estelar (Rod Steiger, como Napoleão; Christopher Plummer, como o Duque de Wellington, e Orson Welles, como Luís XVIII). E contou com milhares de figurantes reais, vindos do Exército Vermelho soviético e preparados para repetir as técnicas de guerra utilizadas pelos britânicos para impor ao francês a sua maior derrota.

Outra opção é o filme egípcio “Bonaparte, Adeus”, de Youssef Chahine, que evoca a invasão do país africano por tropas napoleônicas. O general é interpretado por Patrice Chéreau. No elenco, os egípcios Salah Zulfikar, Mohsen Molhieddin, Magdy Ahmed Aly. E o francês Michel Piccoli.

O novíssimo filme de Ridley Scott — vale registrar que Steven Spielberg prepara série sobre Napoleão a partir de roteiro inédito de Kubrick — não está à altura dos filmes de Gance, Bondarchuk e Chahine. A principal razão é a aposta excessiva na espetacularização. E por que colocar Josefina, Paul Barras, Robespierre e, principalmente, Napoleão Bonaparte falando inglês? Por preguiça e comodismo, claro. Essa opção torna até engraçado o enfrentamento entre o general francês e o comandante do exército britânico Arthur Wellesley (Duque de Wellington). Joaquin Phoenix, o Napoleão, fala inglês com acento materno, o dos EUA, e Ruppert Everett, intérprete do comandante inglês, em interpretação arrogante (quase cínica), capricha no acento britânico. Outro problema do filme: passar raspando por temas que exigiriam maior aprofundamento (será que ele virá na série de quase cinco horas?).

Por outro lado, Ridley Scott deixa impressos na tela pelo menos três momentos de imensa força — a batalha de Austerlitz, o acordar de Napoleão na Moscou invadida e a passagem do jovem general francês pelo Egito.

Quem assistiu ao épico “Alexandre Nevsky” (Sergei Eisenstein, 1938) — sobre embate entre russos e teutônicos, ocorrido no século XIII, no Lago Peipus — saberá de onde veio a inspiração de Ridley Scott. As tropas francesas se aquartelaram em área mais alta e segura e esperaram as tropas russas para combate com potentes canhões. Dá-se, então, terrível Batalha no Gelo. O canhonaço faz romper a camada que recobre o lago. As imagens de soldados eslavos e seus cavalos se esvaindo em sangue nas águas geladas são muito impressionantes.

Impressionante também é a imagem de imenso vitral em tons dourados que o Napoleão de Joaquin Phoenix vê ao acordar em aposento de uma Moscou deserta (toda a população fôra evacuada). Por que os vidros tomaram aquela cor? O general, que invadira o país eurasiano, vai conferir. Aberta a janela-mural, ele vê Moscou em chamas. No final do filme, duas meninas vão curtir com a cara do imperador destronado e desterrado na ilha de Santa Helena, que se ufana de ter incendiado Moscou.

Todo mundo — dirá uma das garotas — sabe que foram os russos (e seus estrategistas de guerra) que incendiaram a cidade. “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, matriz do épico de Bondarchuk, centenas de documentos e testemunhos estão aí para desmentir o corso.

A força das imagens do filme de Ridley Scott se faz notar, também, na invasão do Egito. Primeiro, a imensa Esfinge enche a tela. Depois, veremos Napoleão aguardando a abertura de um sarcófago (fruto da pilhagem dos invasores), em cujo interior há um corpo milenar mumificado. Sem discursos verbais, nos deparamos com forte representação da espoliação cultural empreendida por “civilizados” contra povos do Terceiro Mundo.

Outro ponto alto de “Napoleão”, além da fotografia do craque Dariusz Wolski, é a trilha sonora. Vai de Edith Piaf (“Ça Ira”) a clássicos eruditos, passando por arrebatadores cantos entoados por múltiplas e sedutoras vozes. Estes cantos (de natureza sagrada) dão às cenas de batalha imenso apelo emocional. Mesmo que muitas delas (as batalhas) tragam (ainda) o artificialismo da multiplicação digital. A guerra no gelo (Austerlitz) ganha em impacto, porque usa efeitos especiais para nos mostrar uma parte do todo: poucos homens e cavalos tendo o seu sangue diluído pela água enquanto lançam mão de suas últimas forças. Afinal, o afogamento, sabem eles em sua agonia derradeira, completará aquele martírio bélico.

O filme, por dor de consciência, citará em acréscimo final, os milhares de mortos deixados pelas guerras napoleônicas e por seu “tirano-amante-lenda”. Estas são as qualificações do personagem que o carismático Joaquin Phoenix fez questão de acrescentar ao seu currículo.

 

Napoleão
Inglaterra-EUA, 2023, 155 minutos
Direção: Ridley Scott
Elenco: Joaquin Phoenix  (Bonaparte), Vanessa Kirby (Josefina), Tahar Rahim (Paul Barras), Paul Rhys (Charles Maurice de Talleyrand), Mattheu Nerdhan (Lucien Bonaparte), Anna Mann (Maria Luísa, segunda esposa de Napoleão), Ruppert Everett (Marechal Arthur Wellesley, Duque de Wellington), Ludivine Sagnier (Théresa Cabarrus), Edouard Philippon (Czar Alexandre da Rússia), Ian McNrice (Louis XVIII), Catherine Walker (Rainha Maria Antonieta)
Fotografia: Dariusz Wolsk
Trilha sonora original: Martin Phipps
Produção: Apple e Sony Pictures

 

NAPOLEÃO NO CINEMA (destaques):

1927: “Napoleon”, de Abel Gance. Esta obra-prima da era muda tem Albert Dieudonné como protagonista. Adota procedimento de vanguarda como a projeção em três telas colorizadas em bleu-blanc-rouge, de jeito a formar a bandeira francesa. Antonin Artaud interpreta o revolucionária Jean-Paul Marrat. A versão integral do filme dura 5h30.

1937 – “Madame Waleska”, de Clarence Brown.  Greta Garbo interpreta Waleska, o amor polonês de Napoleão (Charles Boyer). O filme não sobreviveu ao passar das décadas e só é cultivado por fãs da estrela sueca (1905-1980).

1954 – “Desirée, o Amor de Napoleão”. De Henry Coster, com Marlon Brando na pele do corso e Jean Simmons como Desirée Clary, uma das paixões do estrategista militar que se transformaria em lenda francesa.

1955 – “Napoleão”, de Sacha Guitry, com Daniel Gélin (Napoleão jovem) e Raymond Pellegrin (Napoleão maduro), Sacha Guitry (bispo e ministro Talleyrand), Orson Welles, Jean Gabin, Jean Marrais e Yves Montand. O cineasta dá imenso destaque ao ministro da Relações Exteriores de Napoleão, Charles Maurice de Talleyrand. E aos vários amores do corso.

1967 – “Guerra e Paz”, épico soviético sobre a invasão da Rússia por tropas napoleônicas, dirigido por Sergei Bondarchuk. Baseado na obra de Liev Tolstoi. Este longa-metragem em duas partes foi lançado em caixa especial de DVD pela CPC-UMES Filmes. Premiado com o Oscar estrangeiro. Mais que Napoleão (com  participação pequena na trama), o filme mostra (em sua segunda parte) como os russos enfrentaram a guerra napoleônica. E o incêndio de Moscou, ordenado pelos próprios  generais eslavos para evitar que a cidade de mais de 300 mil habitantes caísse nas mãos do inimigo. Trágica estratégia de guerra.

1970 –  “Waterloo”, produção russo-britânica, dirigida também por Sergei Bondarchuk (disponível em Coleção Folha, sob o nome “Napoleão”). Com Rod Steiger (Napoleão), Christopher Plummer (Arthur Wellesley, Duque de Wellington), Orson Welles (Luís XVIII). Figuração real de milhares de soldados do Exército Vermelho soviético.

1985 –  “Bonaparte, Adeus”, de Youssef Chahine. O filme do grande cineasta africano evoca a invasão de seu país por tropas napoleônicas. Com Salah Zulfikar, Mohsen Molhieddin, Magdy Ahmed Aly, Michel Piccoli e Patrice Chéreau (como Napoleão).

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