“Ecos do Silêncio”, da Mostra Brasília, ofusca “Nós Somos o Amanhã”, escolhido para a competição nacional do festival candango
Foto: Cena de “Ecos do Silêncio”, de André Luiz Oliveira
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, famoso por sua imensa, politizada e participativa plateia, sofreu sua primeira baixa. A terceira noite da mostra competitiva de curtas e longa-metragem brasileiros – que exibiu “Remendo”, de Roger Ghil, “Helena de Guaratiba”, de Karen Black, e “Nós Somos o Amanhã”, de Lufe Steffen – contou com menos da metade da plateia costumeira.
O curioso é que, antes, a Mostra Brasília, dedicada à produção candanga, lotou o cinema. Todos queriam assistir aos curtas brasilienses “Glitter Carnavalesco: A História do Bloco das Montadas”, de Marla Galdino, e “Instante”, de Paola Veiga. E ao longa-metragem “Ecos do Silêncio”, marco da volta do experiente André Luiz Oliveira à ficção. Ao final, o cineasta baiano-brasiliense, seu ator-protagonista Thalles Cabral e equipe técnico-artística foram festejados com aplausos calorosos.
Em pequenas rodas, no hall do Cine Brasília, cinéfilos comentavam a ausência de “Ecos do Silêncio” na competição principal. As explicações para essa segunda exclusão recente do diretor de “Meteorango Kid” e “Loucos por Cinema” variava. Alguns culpavam a idade do diretor (75 anos). O festival estaria interessado apenas em novos realizadores.
Outro argumento: o filme não estaria filiado às lutas identitárias. Registre-se: em sua profunda reflexão sobre o autismo e a busca de espiritualidade, “Ecos do Silêncio” conta com a presença de atores negros brasileiros (Larissa Mauro, como a namorada do protagonista, e Maurício Tizumba como o professor de música Uranus) e indianos (destaque absoluto para Pallab Das, o mestre Bapu, praticante iluminado do Duprah).
Por fim, evocou-se o desejo do mais antigo e tradicional festival do país de dar ênfase a filmes independentes. De baixo orçamento. “Ecos do Silêncio” foi realizado em dois continentes, na Ásia (India) e na América (Argentina e Brasil). E, realmente, aparenta ser filme de grande produção.
O produtor Caetano Curi, que costurou parcerias com indianos e argentinos, fornece o orçamento gasto no filme: “R$ 2,2 milhões”. E pondera: “se não fossem os serviços em coprodução vindos da Ipê Amarelo, Psycho N’look e associação com a Perumeen Cinema da Índia, não teríamos realizado esse filme”. Para acrescentar: “e não podemos esquecer a firme retaguarda da Tao Luz e Movimento de Brasília”.
O cineasta e produtor Marco Altberg, também diretor do Canal Like (um dos apoiadores do Festival de Brasília), deixou o Cine Brasília impactado pelo filme do colega André Luiz Oliveira. E, sedimentado em sua larga experiência no audiovisual, destacou “a capacidade do baiano em atribuir valor de produção” à sua narrativa. “Percebemos que André buscou soluções incríveis e econômicas para resolver enormes desafios. Lançou mão inclusive de trechos de outros trabalhos dele”.
“Ecos do Silêncio” é – recorramos a um paradoxo – uma produção internacional de feitio caseiro. E, mesmo assim, capaz de apresentar valores artísticos e técnicos que enchem os olhos. O elenco inteiro rende muito bem e Thalles Cabral, do gaúcho “Yonlu”, tem mais um desempenho notável. E em papel dos mais difíceis – o jovem David, músico que tenta desesperadamente se comunicar com o irmão autista.
Em busca de um modo de estabelecer relação com o mano, que vive isolado em seu mundo, David tenta o que pode. Recorre à música, mas o irmão não a suporta. Tenta inclusive destruir o amado violão de David.
Ao entender que deve mergulhar na Musicoterapia, caminho para possível diálogo com o irmão, David resolve ir à Argentina, onde frequentará escola especializada. Desilusão amorosa o jogará em processo depressivo e, num rompante, ele decidirá embarcar para a Índia. No imenso país asiático, conhecerá, casualmente, o mestre Baku, praticante da milenar música Drupah. Seu mergulho espiritual e existencial será profundo e transformador.
Dois aspectos do filme também impregnaram a tela do Cine Brasília com intensa beleza (e envolvimento): a fotografia calorosa da dupla Krishna Schmidt e André Carvalheira, ambos brasilienses, e a direção de arte de Maíra Carvalho, conhecida pelos filmes de Iberê Carvalho (“O Último Cine Drive-in” e “O Homem Cordial”). Ela, também brasiliense, comandou as equipes indiana, argentina e brasileira. Esteve presente nos três países-locação, com sua juventude e porte miúdo, dobrou um riscado para se impor (principalmente na sociedade patriarcal indiana), mas fez notar seu talento em cada ambiente do filme.
Notáveis, também, são os figurinos e a caracterização de Thalles Cabral. O ator gaúcho, de 29 anos, é visto da juventude até a velhice avançada. A fusão de seu rosto com o do ator Guilherme Reis, graças a efeitos especiais, dá origem a um idoso indiano de longas barbas brancas e olhar profundo (no caso, um brasileiro que assumiu espiritualmente o país e a cultura do território adotado).
As mudanças físicas do ator são impressionantes. Seja de rosto lavado, barba rala (ou espessa). Thalles já havia causado ótima impressão como “Yonlu”, o enigmático jovem-protagonista do filme de Hique Montanari (2017). Mas seu David ficará registrado em sua filmografia como momento único, tamanha e radical é sua entrega.
“Ecos do Silêncio”, que tem a música (e a Musicoterapia) como força-motriz, conta com trilha sonora também arrebatadora. O próprio cineasta, que é músico (e companheiro da musicoterapeuta Clarice Prestes) a compôs. Ele recorreu à colaboração musical de Zepedro Gollo, responsável pela montagem (com Micael Guimarães).
No palco do Cine Brasília, com sua equipe majoritariamente candanga, André Luiz contou que devia o ponto de partida de “Ecos do Silêncio” à esposa Clarice Prestes. Ela, que trabalha com autistas, permitiu que ele conhecesse um jovem paciente, fonte seminal do desejo de escrever o roteiro do novo filme. O aluno de Clarice, portador de autismo grave, sofreu significativas transformações na sua convivência com a música. André acompanhou tudo de perto. E com sua câmera.
Antes, o cineasta realizou documentário, que lhe serviu como intenso aprendizado. E escolheu a viagem existencial-espiritual de David rumo à Argentina e, depois, à Índia (e sua “capital espiritual”, Varanasi) como base de sua volta ao cinema ficcional. Do qual permaneceu ausente por longos anos.
“Ecos do Silêncio” torna-se, desde já, a mais instigante abordagem da cinematografia brasileira do complexo tema do autismo, pouco visto em nossa ficção. Se o approach de André Luiz Oliveira se dá pela espiritualidade, isto não significa que o filme será rejeitado por agnósticos. Até porque o cineasta não quer catequizar ninguém. Seu cinema é poroso, instigante e aberto ao diálogo com o outro. Ele abre espaços para nossa imaginação.
André Luiz e seu “Ecos do Silêncio” perderam a vaga na competição brasileira para o longa mais controvertido dessa quinquagésima-sexta edição do Festival de Brasília: o paulistano “Nós Somos o Amanhã”, de Lufe Steffen. Parte do público (reduzido) que permaneceu no Cine Brasília até o final da projeção estava perplexo. Os aplausos foram parcos. O público pagante, portador de ingresso dotado de código que garante o voto digital (Júri Popular), era, naquele fim de noite, contável nos dedos. Os que haviam assistido ao filme de André Luiz Oliveira não entendiam a escolha da comissão de seleção.
Na manhã seguinte, veio o debate de “Nós Somos o Amanhã”. Que correu tranquilo, pois Lufe Steffen mostrou-se pessoa afável e generosa. E – o que é raro – disposta a aceitar críticas. Ele contou que idealizou sua estreia na ficção de longa duração em 2002, interessado em rememorar o processo de bullying, que ele, de orientação homoafetiva, sofrera na escola.
O roteiro levou anos para sair do computador e concretizar-se. Pôde, assim, ser atualizado, “sem nenhum temor ao anacronismo”. A trama se passa na década de 1980, quando Lufe era menino, e abre – como se fosse um compêndio – espaço panorâmico (e didático) para imensa gama de pré-adolescentes vítimas de bullying. Além dele, o protagonista (sim, Lufe escreveu, dirigiu e interpretou o papel principal), vemos orientações sexuais trans que não eram identificadas 30 ou 40 anos atrás. Hoje, sim.
O menino Lufe, que estudou em escolas privadas, foi sempre um apaixonado por musicais. E dedicado espectador de programas infantis (da Xuxa, do Balão Mágico), de telenovelas, humorísticos (Escolinha do Professor Raimundo) e dos videoclipes do Fantástico.
Daí que a trilha sonora de “Nós Somos o Amanhã” conta com sucessos da dupla Sullivan & Massadas, de Guilherme Arantes e de alguns fabricantes de música-chiclete, embaladas nas ondas da então poderosíssima Rede Globo. Cláudia Ohama e Silvero Pereira cantam hits gravados por Xuxa e Maria Bethânia. O elenco, incluindo Lufe, que é também cantor, interpretou parte do repertório escolhido. Boa parte do orçamento do filme foi consumida em licenciamento de direitos autorais (incluindo hit oitentista de Rita Lee).
Outra decisão do cineasta levou-o a usar atores adultos para interpretar meninos e meninas. Esta opção, que se soma a incessantes (e redundantes) intervenções metalinguísticas, deixa o filme sem público alvo. Vai interessar às crianças? Aos jovens?
Para adultos, o primeiro longa de Lufe Steffen resulta excessivamente didático e reiterativo. Tudo é explicado, mastigado. Não há ambiguidade. Nada que possa instigar a imaginação (e a reflexão) do espectador.
O mesmo não se passa com o curta capixaba “Remendo”, de Roger Ghil. A cineasta, doutoranda em Estudos Anticoloniais, Religiosidades Diaspóricas e Desobediência de Gênero, faz de seu premiadíssimo curta (vencedor de Gramado e Vitória) experiência que subverte certezas e propõe novas leituras da vida cotidiana de afro-brasileiros. Seu protagonista, Zé (Elídio Neto), é um consertador de eletrodomésticos, daqueles que remendam tudo que sofreu avaria. Geladeira, ferro elétrico, batedeira, aspirador de pó ou ventilador. E nessa faina diária, ele vai se relacionando com a mãe, com a namorada, que substitui saudoso namorado-parceiro, com o irreverente Babalu (Markus Konká), enfim, com todos que aparecem à sua frente ou em sua casa-oficina.
O ritmo de “Remendo” é vertiginoso e corre na tela embalado por trilha sonora da pesada, que vai da malemolência do reggae ao som melodramático de Nelson Gonçalves, passando pelo brega e hits internacionais. No debate, a articuladíssima Roger Ghil rejeitou matrizes da cultural racional do Ocidente e garantiu não ter tido necessidade de assistir a nenhum filme de Godard ou Fellini para realizar seu novo trabalho (“realizei sete curtas nos últimos sete anos”). E citou algumas de suas fontes de diálogo: além de Spike Lee, os senegaleses Ousmane Sembene e Djibril Diop Mambety, o cearense Karim Aïnouz e o goiano-candango Adirley Queirós.
A carioca Karen Black passou como um raio pelo Festival de Brasília para apresentar “Helena de Guaratiba”, curta protagonizado por Helena Ignez e Cauã Reymond. Não pôde nem participar do debate, pois, por falha da organização do festival, seu regresso foi marcado para o comecinho da manhã.
A atriz baiana interpreta Helena de Tróia (ou melhor, de Guaratiba), mulher madura, odiada pelos gregos, detestada pelos troianos. Ela vive numa pacata comunidade de pescadores, na Guaratiba fluminense. Um dia, um amor muito jovem (Cauã Reymond) bate à sua porta, trazendo de volta fantasmas do seu passado.
O filme aclimata a tragédia grega ao litoral brasileiro. E o faz com um coro nada helênico. Quem comenta o que se passa na pacata Guaratiba é um quarteto de cantores-dançarinos, plugado na sonzeira do funk.
A trilha sonora (de DJ Machintal) dá ritmo à descolada montagem assinada pela diretora, em parceria com André Sampaio. Completam o elenco o ótimo Wilson Rabelo (pescador), Djin Sganzerla (como Afrodite), Rose Abdallah (como Hécuba), Oz Crias (o coro) e Deize Tigrona.