“Não Existe Almoço Grátis” e “O Dia que te Conheci” mobilizam o tradicional e politizado público do Festival de Brasília

Foto: Equipe do filme “O Dia que te Conheci”, no palco do festival © Bené França

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília-DF

O Festival de Brasília viveu, depois de certo esvaziamento, uma quarta-feira de muita agitação, com o Cine Brasília lotado e retomando seu papel histórico – o de poderosa e politizada vitrine do cinema brasileiro.

Tudo começou com a exibição de “Não Existe Almoço Grátis”, documentário rodado em Sol Nascente, “a maior favela do Brasil”. E com sequências feitas, também, na cozinha industrial do Colégio Elefante Branco e na Esplanada dos Ministérios, ao longo de quatro dias, os derradeiros do Governo Bolsonaro. Portanto, aqueles que antecederam a terceira posse de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República.

O longa-metragem, dirigido por Marcos Nepomuceno e Pedro Charbel, integra a mobilizadora Mostra Brasília, o Candangão, que, anualmente, distribui o Troféu Câmara Legislativa do DF. Esta é a vigésima-quinta edição da segunda mais importante mostra do tradicional festival do país.

O protagonismo da plateia prosseguiu com a exibição, em horário nobre, dos curtas “Dona Beatriz Ñsîmba Vita”, do mineiro Catapreta, e “Queima minha Pele”, do alagoano Leonardo Amorim, e, principalmente, do longa “O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, produtora nascida em Contagem-MG.

A sessão 100% candanga ocupou todas as 600 poltronas do Cine Brasília. E o fez com plateia que somava militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto a equipes técnicas e artísticas dos quatro longas e oito curtas-metragens da competição local.

No formato curto foram exibidos “Só Quem Tem Raiz”, de Josiane Diniz, produção da cidade-satélite do Gama, bem representada na plateia, e a hilária sátira “Nada se Perde“, escrita por  Igor Z. Cerqueira, e dirigida por Renan Montenegro.

Quando a imensa equipe de “Não Existe Almoço Grátis” subiu ao palco, a galera delirou. Nepomuceno e Charbel estavam acompanhados das três protagonistas do filme – as cozinheiras Jurailde, Bizza e Socorro, também militantes do MTST.

As falas das três mulheres, que seguravam a bandeira dos Sem-Teto, mobilizaram a plateia. Que respondeu com aplausos calorosos. Afinal, com coloquialidade, elas descreveram brevemente seus cotidianos como mulheres sem-moradia, que encontram no “Movimento” o apoio para ganhar seu lote. Falaram, também, sobre o ofício de cozinheiras encarregadas de preparar 600 refeições diárias para militantes que chegavam a Brasília para a posse de Lula 3.

A mais aplaudida foi Bizza, de 41 anos, muito alta e despachada. Ela avisou: “vocês vão ver, no filme, a cagada que eu cometi. Votei no Bolsonaro, em 2018, mas um mês depois estava arrependida”. Hoje, ela coordena o setor de alimentação do MTST e se prepara para montar uma pizzaria (ou lojinha) na frente da lote (futura casa) de esquina que ganhou do “Movimento”.

A discreta Jurailde prefere divulgar, quando não está à beira dos fogões da cozinha industrial, seu amor pelas plantas. Ela faz questão de mostrar cada espécie vegetal presente em horta comunitária e de reafirmar sua crença no poder curativo de folhas e raízes.

Socorro lembra que “está vivendo os calores da menopausa” e, por isso, deixou de fazer escova progressiva, substituindo-a por tranças-afro-douradas. “Escova progressiva só dura um mês e me faz sentir calores ainda maiores do que já venho sentindo”, protesta. As três falam dos filhos, labutam na cozinha e sonham com os novos dias que estão por vir, livres de custosos aluguéis, em suas moradias conquistadas com a militância no “Movimento”.

Bizza, que criou sozinha os quatro filhos, diz que, antes de entrar para o MTST, pensava que era culpada por seus fracassos (não ter casa, não dar aos filhos o que eles mereciam etc.). “No ‘Movimento’ aprendi que a culpa não era minha, mas de uma estrutura maior. Aprendi o que é racismo estrutural, me politizei, me empoderei. Hoje estou aqui no meu lote, preparando a construção da minha casa própria”. A plateia aplaudiu com gosto.

Equipe do filme ““Não Existe Almoço Grátis”, no palco do festival © Bené França

A sessão da competição brasileira exibiu “O Dia que te Conheci” na presença do diretor André Novais Oliveira e de seus protagonistas, a atriz Grace Passô e o ator Renato Novaes, o Nato. O trio foi objetivo em suas falas e o filme teve excelente recepção da plateia (o Cine Brasília estava menos lotado que na sessão do Candangão, mas havia mais de 500 cadeiras ocupadas).

Os espectadores entraram em sintonia fina com o humor sútil do cineasta mineiro e se entusiasmaram com sua love story black. Risos e aplausos calorosos se somaram. “O Dia que te Conheci” foi aplaudido em camadas, ao longo de todos os seus créditos finais.

O reconhecimento se multiplicou no debate do dia seguinte. Histórias contadas por André e por Nato, seu irmão na vida real, e por Grace Passô, fizeram o público se divertir.

O diretor (e roteirista) contou que estava incumbido de escrever novo roteiro, muito aguardado por seus sócios na Filmes de Plástico. Retirou-se em sítio isolado para enfrentar o processo da escrita. Mas teve um bloqueio. Escreveu, então, a escaleta de outro roteiro, este que fala das relações afetivas de Zeca e Luísa. Ela, a moça portadora de má notícia para o rapaz – ele estava demitido da escola onde trabalhava como bibliotecário e à qual chegava sempre com atraso. Depois, ela daria a ele providencial carona. Essencial para o aprofundamento do conhecimento entre os dois.

Grace Passô, atriz, dramaturga e diretora de teatro e cinema, por sua vez, contou que ocupou casa de praia oferecida pelo amigo paraibano Tavinho Teixeira, para que nela pudesse se dedicar à escrita. Só que também não conseguiu. “Creio que a beleza do lugar me distraiu”. Só ao voltar à agitação de Belo Horizonte, ocupada com muitos afazeres, conseguiu cumprir sua tarefa.

A atriz contou, também, que não sabe dirigir. E que não faz parte de seus planos aprender a manobrar um carro. Mas, no filme, graças aos milagres do cinema, manteve-se ao volante, comandando o veículo que a levou primeiro à área boêmia de BH, depois à casa de Zeca, o bibliotecário demitido.

Renato Novaes, o dorminhoco Zeca, também divertiu a plateia. Ele contou que, para não levar bronca do irmão mais novo, decorou todos os diálogos, com férrea disciplina. “Tudo estava no roteiro, não improvisamos nada”. Mas acabou revelando que houve, sim, um momento de improviso, mesmo que muito pontual. Grace resolveu inventar determinada fala e ele entrou no jogo.

André falou do diálogo que manteve, na concepção de “O Dia que te Conheci”, com o derradeiro longa de Abbas Kiarostami: “Um Alguém Apaixonado” (Japão, 2012). E citou Yasujiro Ozu, o poeta das imagens do cotidiano, como outra fonte inspiradora.

O curta “Dona Beatriz Ñsîmba Vita”, do mineiro Catapreta – que assinou seu curta mais conhecido (“O Céu no Andar de Baixo”, 2010) como Leonardo Cata Preta – inspira-se na história e legado de Kimpa Vita, heroína congolesa do século XVII. Essa mulher, cuja vida é cercada de mistério, seria, por destino, designada a cumprir missão divina. Ou seja, criar seu próprio povo a partir de habilidade peculiar: produzir “clones” de si mesma. Ela teria sido queimada nas fogueiras da Inquisição.

O filme, uma animação de grande beleza plástica (que, às vezes, beira o sublime), é uma reinvenção fantasmagórica da trajetória de Kimpa Vita.

Catapreta transporta a história congolesa para Belo Horizonte, cidade contemporânea, com seus prédios altos e ruas largas. E constrói história de horror, com personagem que tem membros decepados e transformados em líquido, depois de triturados no liquidificador.

A quem se espantou com a narrativa afro-futurista-fantástica-horrorífica de Catapreta (ele aboliu o nome Leonardo de sua identidade artística), o cineasta tem resposta provocadora: “sim, meus desenhos parecem delicados e calmos, mas dentro deles o espectador encontrará carne podre”.

Esta intenção visceral e rebelde é constitutiva do projeto artístico do animador mineiro: “não quero um espectador seduzido por desenhos bonitos. Quero que ele sai do cinema com um incômodo, sabendo que ali há uma bactéria contagiosa”.

O curta alagoano “Queima minha Pele”, do jovem Leonardo Amorim, é uma ficção de 19 minutos, ambientada em bela mansão de veraneio, no litoral nordestino. O calor domina o ambiente. Um grupo de rapazes, centrado nos irmãos Rodrigo e Júlio e no visitante Caio, se diverte e exercita sua sexualidade.

Rodrigo provoca o irmão mais novo, Julio. Este, com os hormônios em ebulição, deseja Caio. Mas o rapaz só quer se divertir. No contraponto, vemos imagens de violência urbana, captadas por policial (mix de influencer), que gosta de expor sua “bravura”. No elenco, selecionado entre jovens de Alagoas e Estados vizinhos, estão Lucas Cavalcante, Liev Volk e Luciano Pedro Jr.

Durante o debate, Leonardo Amorim avisou ao público e aos jornalistas que virá, de Alagoas, muitas novidades. “Estamos realizando 70 curtas e longas-metragens. O audiovisual alagoano vai ter muito a oferecer aos festivais”.

QUEBRA DE REGULAMENTO

A jornalista Flávia Guerra, que integrou a Comissão de Seleção de Longas-Metragens da quinquagésima-sexta edição do Festival de Brasília (Competição Brasileira) explicou à Revista de CINEMA que o filme “Ecos do Silêncio”, de André Luiz Oliveira, não foi rejeitado pelo colegiado, mas, sim, pelo regulamento do festival.

“Como ele foi inscrito no ano passado, não poderia ter sido reapresentado ao comitê de seleção”, esclareceu. Esta regra, aliás, é pétrea em todos os festivais. Um filme não pode se reinscrever, um ano depois, na mesma competição. Nem nas seguintes.

O produtor de “Ecos do Silêncio”, Caetano Curi, deu à Revista de CINEMA sua versão dos fatos: “houve, sim, uma inscrição no ano passado para a mostra competitiva nacional. Ela não foi feita por mim, mas por agente que estava prestando serviço a André Luiz Oliveira. Só que a inscrição foi feita na categoria errada, como curta-metragem”.

“Frente a este mal-entendido” – prossegue Caetano Curi – “inscrevemos o filme, esse ano, na categoria correta: longa-metragem nacional”. Para acrescentar: “Entendi que, devido ao erro anterior, a comissão de seleção, que analisa centenas e centenas de inscrições, nem havia submetido o nosso filme a exame no ano de 2022”. E conclui: “como ‘Ecos do Silêncio’ permaneceu inédito em outros festivais (e, claro, no circuito comercial), o guardamos para a competição nacional deste ano. Aliás, notamos que, nessa edição, não houve exigência de filmes 100% inéditos”.

Para a edição que prossegue até esse sábado, 16 de dezembro, inscreveram-se 285 longas-metragens (e 900 curtas).

Como a quinquagésima-sexta edição do evento foi preparada em exíguos 44 dias (sendo que “o prazo ideal é de ao menos 120 dias”, segundo seu diretor-executivo Fernando Borges), o filme de André Luiz Oliveira pode nem ter sido analisado. Uma vez que a Comissão de Seleção foi informada, de saída, da infração ao regulamento.

Frente a tal realidade, o longa-metragem foi selecionado por outro colegiado. O que foi escalado pela ABCV (Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo) para a Mostra Brasília – Troféu Câmara Legislativa do DF (o Candangão).

Anna Karina de Carvalho, diretora artística do festival, contou à Revista de CINEMA que a seleção brasileira de curtas e longas não se fez a toque de caixa (em exíguos dias). “Desde a abertura das inscrições, os cinco integrantes do colegiado começaram a receber Vimeos para o devido visionamento. Então, pôde trabalhar em prazo mais elástico”.

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