Festival de Punta del Este homenageia trajetória de Jorge Furtado e exibe “Pérola” em noite inaugural

Por Maria do Rosário Caetano

O cineasta Jorge Furtado, diretor de “Ilha das Flores”, curta premiado com um Urso de Prata em Berlim, será o grande homenageado da 26ª edição do Festival Internacional de Cinema de Punta del Este, no Uruguai. Ele vai receber, pessoalmente, seu troféu honorário e acompanhar retrospectiva de alguns de seus principais filmes.

O evento cinematográfico, que agita o aprazível balneário situado a 100 km de Montevideo, exibirá — a partir de 23 de fevereiro (até 29) — 150 filmes latino-americanos e internacionais, programados em diversas salas e auditórios.

“Pérola”, longa que o ator Murilo Benício recriou a partir de grande sucesso teatral de Mauro Rasi, é o convidado de honra da noite inaugural. O diretor e sua protagonista, Drica de Morais (ela interpreta no cinema o papel que projetou Vera Holtz nos palcos), estarão presentes para mostrar o filme ao uruguaios, convidados e turistas internacionais.

O Brasil marca presença com mais três longas-metragens, todos nas competições ibero-americanas de Punta del Este: as ficções “A Metade de Nós”, de Flávio Botelho, e “Pedágio”, de Carolina Markowicz, e o documentário “Black Rio! Black Power!”, de Emílio Domingos, sacudida celebração de nossa black music. Títulos europeus, asiáticos e norte-americanos participam do festival em diversas mostras informativas.

Jorge Furtado, com seu peculiar bom-humor, supõe que a homenagem uruguaia à sua trajetória sedimenta-se em dois motivos. Primeiro, “significa que já fiz muitos filmes e que alguém acha que eles merecem ser vistos”. Segundo: “acham, também, que eu estou ficando velho”. A primeira conclusão – ironiza – “me enche de orgulho, a segunda é a melhor hipótese possível nessa altura da minha vida”.

O cineasta, que dirigiu uma dezena de longas-metragens e múltiplos especiais e séries de TV,  exagera no item idade. Ele irá comemorar seus 65 ‘anchietanos’ em nove de junho, em sua Porto Alegre natal. E tem muita lenha para queimar.

Nesse exato momento, ele acompanha a montagem de “Virgínia e Adelaide”, longa que dirigiu em parceria com Yasmin Thayná. O montador, claro, é Giba Assis Brasil, seu inseparável parceiro cinematográfico desde a criação (coletiva) da Casa de Cinema de Porto Alegre (década de 1980). Depois de abandonar o curso de Medicina, Jorge fez sua iniciação audiovisual nos quadros da TV Educativa do Rio Grande do Sul, instituição que festeja seu cinquentenário.

Antes de sabermos mais sobre “Virgínia e Adelaide” e outros projetos do cineasta-roteirista, voltemos ao pequeno e fascinante país platino que vai homenageá-lo.

“Tenho a maior simpatia pelo Uruguai”, conta Jorge Furtado, torcedor apaixonado pelo Grêmio (o amigo Giba torce pelo Internacional). E essa simpatia “começou pelo zagueiro Ancheta, meu ídolo de infância, primeiro estrangeiro a ganhar a Bola de Ouro de melhor jogador do campeonato brasileiro, pelo Grêmio, em 1973”. E “prosseguiu com amigos e colegas de trabalho, pela obra do escritor Eduardo Galeano, pelas livrarias, pelo assado de tiras, pelo doce de leite”. Até chegar “a Luiz Soares (aliás, o último estrangeiro a ganhar a Bola de Ouro, no Grêmio, em 2023)”. Vejam só, exatos 50 anos depois. E tem mais: Jorge Furtado garante que, “se o Brasil não estiver em campo, torço pelo Uruguai”.

Há, ainda, fato recente que calou fundo na alma do cineasta gaúcho: “ano passado, o filme ‘Aos Olhos de Ernesto’, que escrevi com a diretora Ana Luíza Azevedo, ficou quase dois meses em cartaz em Montevideo, na belíssima Cinemateca Uruguaia, sempre com a sala cheia”.

O protagonista do longa-metragem (tocante história de alma platina, ambientada na capital gaúcha e premiada pelo Júri da Crítica na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo) é o grande ator uruguaio Jorge Bolani. O diretor de “Rasga Coração”, recriação da obra teatral de Oduvaldo Viana Filho, constata, por fim: “há uma natural afinidade entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai: somos todos gaúchos”.

Estabelecida a proximidade entre os pampeanos do sul brasileiro e os gaúchos do país platino, voltemos a “Virgínia e Adelaide”, que une Jorge Furtado e Yasmin Thayná, jovem realizadora afro-brasileira, autora do instigante curta “Kabela” e de diversos projetos audiovisuais.

“Nosso filme” – antecipa  Jorge – “conta a história do encontro de duas mulheres muito especiais: Virgínia Leone Bicudo e Adelaide Koch. Virgínia foi uma mulher negra que, na década de 1930, em São Paulo, enfrentou todos os preconceitos para tornar-se a primeira psicanalista da América do Sul. Sua formação foi feita por Adelaide, uma psicanalista alemã, judia, que fugiu para o Brasil para escapar da perseguição nazista. O encontro delas se deu em novembro de 1937, no exato instante em que Getúlio flertava com o fascismo e se transformava em ditador, proclamando o Estado Novo. Duas mulheres que, enfrentando o racismo, ajudaram a fundar a psicanálise no Brasil”.

Ao longo desse ano de 2024, o cineasta espera ver a estreia de dois outros filmes em que trabalhou no roteiro: “Grande Sertão” e “O Auto da Compadecida 2”, ambos dirigidos por seu amigo e parceiro Guel Arraes.

“Ilha das Flores”, de Jorge Furtado

Homenagens nos induzem a adotar olhar retrospectivo. Daí perguntamos a Jorge Furtado que balanço ele faz da própria trajetória? Se conseguiu realizar os filmes que sonhou e por que um curta-metragem — “Ilha das Flores” (1989)— segue sendo seu trabalho mais conhecido? Afinal, já se passaram 35 anos, desde que ele conquistou onze prêmios em Gramado (e dez minutos de consagradora ovação, com a plateia de pé). Eleito pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) como o melhor curta brasileiro de todos os tempos, “Ilha das Flores” continua atraindo novas gerações, conquistando novos espectadores.

Jorge Furtado assegura que, “ainda não fiz, felizmente, todos os filmes que queria fazer e, mais importante, não fiz nenhum filme que não queria fazer”. Para acrescentar: “Faço filmes há 40 anos, tento que sejam bem diferentes um do outro — estilo é preguiça! – e, em cada um deles, dou o melhor de mim”. E mais: “aprendi que o cinema é a mais coletiva de todas as artes e fico feliz em saber que tenho tantos companheiros – equipe, atores – com quem gostaria de trabalhar outra vez”.

Sobre “Ilha das Flores”, o gaúcho pondera: “foi meu primeiro filme ‘autoral’ (o primeiro que escrevi e dirigi sozinho), e suspeito que seja uma síntese da minha maneira de pensar e de escrever. De qualquer modo, Umberto Eco diz que um texto é uma ‘máquina de gerar interpretações’ e que o autor não deve interpretar sua própria obra”.

Quem quiser ver, na íntegra, a produção audiovisual de Jorge Furtado terá que se virar. Claro que seus filmes mais conhecidos estão disponíveis no streaming. E parte de seus trabalhos feitos para TV (como diretor ou roteirista) estão disponibilizados na Globoplay (imensa é sua participação em projetos da emissora). Mas — avisa — “nem todos os meus filmes estão no streaming, e muitos trabalhos de televisão (incluindo ‘Anchietanos’) só podem ser vistos em cópias piratas ou em antigos DVDs”.

Confira a seleção de Punta del Este:

Longas-metragens de ficção

. ‘A Metade de Nós’, de Flavio Botelho (Brasil)
. ‘Pedágio’, de Carolina Markowicz (Brasil)
. ‘Alemania’, de María Zanetti (Argentina)
. ‘Como el Mar’, de Nicolás Gil Lavedra (Argentina)
. ‘El Otro Hijo’, de Juan S. Quebrada,(Colômbia)
. ‘Mamacruz’, de Patricia Ortega (Espanha)
. ‘Mi Tía Gilma’, de Alexandra Henao (Venezuela)
. ‘Penal Cordillera’, de Felipe Carmona (Chile)
. ‘Todo el Silencio’, de Diego del Río (México)
. ‘Una Luz Afuera’, de José Luis Elizalde (Uruguai)

Longas-metragens (Documentário)

. ‘Black Rio! Black Power!’, de Emílio Domingos,(Brasil)
. ‘Adentro Mío Estoy Bailando’, de Leandro Koch e Paloma Schachmann (Argentina)
. ‘Víctor Heredia: Quiero Volverme Tiempo’, de Maximiliano González (Argentina)
. ‘Los Últimos’, de Sebastián Peña Escobar (Paraguai)
. ‘Me Río de las Olas’, de Azeneth Farah, (Bolívia/México)
. ‘Víctor Heredia: Quiero Volverme Tiempo’, de Maximiliano González (Argentina)
. ‘Decir Adiós’, de Carolina Sá (Uruguai)

Mostra “Homenagem a Jorge Furtado”

1989 – “Ilha das Flores” (curta)
2002 – “Houve uma Vez Dois Verões”
2003 – “O Homem que Copiava”
2024 – “Meu Tio Matou um Cara”
2007 – “Saneamento Básico”
2014 – “Mercado de Notícias”

Outros trabalhos (para cinema e TV) entre os mais de 50 realizados (ou roteirizados) pelo cineasta

Como diretor:

1986 – “O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda”, curta co-dirigido por José Pedro Goulart (premiado no Festival de Havana)
1988 – “Barbosa” (curta, co-direção de Ana Luiza Azevedo)
1991 – “Essa Não é a Sua Vida” (curta-metragem)
1994 – “A Matadeira”, episódio do longa-metragem “Os Sete Sacramentos de Canudos” (co-produção da TV alemã)
1994 – “A Felicidade É…” (longa em episódios, direção de Cecílio Neto, José Pedro Goulart, José Roberto Torero e Jorge Furtado)
1994 – “O Homem que Sabia Javanês”, “Memórias de Um Sargento de Milícias” e “O Alienista”, de Guel Arraes e Jorge Furtado (para série de recriações de clássicos da literatura brasileira/TV Globo)
1997 – “Os Anchietanos”
1999 – “Luna Caliente”
2009 – “Decamerão – A Comédia do Sexo”
2010 – “Até a Vista” (Hasta la Vista), curta-metragem latino-americano
2011 – “Homens de Bem”
2012 – “Doce de Mãe”, série protagonizada por Fernanda Montenegro
2015 – “Real Beleza”(longa-metragem)
2017 – “Quem é Primavera das Neves” (longa documental em parceria com Ana Luíza Azevedo)
2018 – “Rasga Coração” (longa-metragem)
2022 – “Vai Dar Nada”, de Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo
2024 – “Virgínia e Adelaide”, em parceria com Yasmin Thayná, em finalização

Como roteirista:

1993 – “Agosto”, série dirigida por Paulo José
1994 – “Memorial de Maria Moura”, direção de Carlos Manga
2000 – “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes
2000 – “Tolerância”, de Carlos Gerbase
2001 – “Caramuru – A Invenção do Brasil”, de Guel Arraes
2003 – “Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes
2004 – “Benjamin”, de Monique Gardenberg
2005 – “O Coronel e o Lobisomem”, de Guel Arraes
2008 – “Romance”, de Guel Arraes
2009 – “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luíza Azevedo
2014 – “Boa Sorte”, de Carolina Jabor
2019 – “Aos Olhos de Ernesto”, de Ana Luíza Azevedo
2022 – “O Debate”, de Caio Blat
2024 – “Grande Sertão”, de Guel Arraes
2024 – “O Auto da Compadecida 2”, de Guel Arraes (estreia programada para 25 de dezembro)

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