Itália dá adeus ao último Taviani, criador de “Pai Patrão”, “Bom Dia, Babilônia” e “César Deve Morrer”

Foto: Paolo e Vittorio Taviani

Por Maria do Rosário Caetano

“Pai Patrão”, a história de pai autoritário, pastor de ovelhas, que impediu o filho de estudar até os 20 anos, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1977. E o filho, embrutecido pela ignorância do pai, tornou-se escritor e professor. Uma história real, a do sardo Gavino Ledda, autor do livro que motivou o filme.

Trinta e cinco anos depois, seus diretores, Paolo Taviani, 81 anos, e Vittorio, 83, já eram tidos como carta fora do baralho. Faziam filmes para TV e estavam longe da criatividade dos tempos de “Allonsanfan”, “Pai Patrão”, “Kaos” e, em menor escala, de “Bom Dia, Babilônia”.

Pois não é que os octogenários “Fratelli Taviani” triunfaram em Berlim, fazendo jus ao Urso de Ouro, láurea máxima do festival alemão, com um filme – “César Deve Morrer” – impregnado pela força da juventude? E, o mais espantoso, os Irmãos derrotaram estreantes e realizadores no auge de suas potencialidades.

O troféu conquistado, o que é mais incrível, não era um tributo a dois velhinhos de esquerda, humanistas até a raiz dos cabelos, “filhos” do conterrâneo Roberto Rossellini, de Picasso e Pirandello. E tributários de Shakespeare, Goethe e Tolstoi. Era puro reconhecimento a um grande filme.

“César Deve Morrer”, ficção em diálogo com o documentário, parece um similar de realizações de jovens diretores que buscam nutrientes em nossas grandes periferias urbanas, em cárceres e favelas. Os “Fratelli” abandonaram os astros de outrora e trabalharam com atores amadores e, mais que amadores, bandidos. Sim, homens julgados e condenados como sicários da máfia e assassinos de cidadãos comuns.

Os octogenários realizadores buscaram em Shakespeare, o bardo britânico, sua primeira matéria-prima – a peça “Júlio César”. E seus intérpretes no Presídio de Rebibbia (plantado em Roma, capital italiana e centro do mundo na época do general – e imperador – Júlio César). A dupla filmou o que acontecia naquele cárcere, quando os criminosos se transformavam em atores.

O resultado de “César Deve Morrer” causou imenso impacto. Mesmo que o cinema de arte já não carregasse a potência dos tempos de Rossellini (por causa de “Paisà”, 1946, os Taviani descobririam que o cinema era o projeto de vida deles). Potência que a Itália viveria, também, nos anos 1960, época em que brilharam Visconti, Fellini, Monicelli, Risi e Pasolini.

“César Deve Morrer” não repetiu, junto à cinefilia, o impacto alcançado por “Pai Patrão”. Este filme, sim, calou fundo na alma daqueles dedicados à difusão do cinema político-social, naqueles meados da década de 1970. Ao vencer o Festival de Cannes, a história autobiográfica do sardo Gavino Ledda ganharia o mundo. O filme foi lançado no Brasil, que nada sabia dos antecedentes cinematográficos dos dois irmãos peninsulares.

Bastou a Palma de Ouro para os exibidores mais antenados correrem atrás de “Allonsanfan” (contração de “Allons enfants” de la patrie, verso da sanguínea e mobilizadora “Marselhesa”). O filme anterior dos Taviani (ver filmografia abaixo), que passara despercebido, mesmo tendo Marcello Mastroianni como protagonista, foi então lançado nos nossos cinemas e, depois, junto com “Pai Patrão”, tornou-se programa costumeiro e obrigatório em centenas de cineclubes e sindicatos.

A fama dos “Fratelli” era tão grande por aqui, que, nos anos 1980, “Kaos” fez e aconteceu. Realizado a partir de estórias de Luigi Pirandello, resultou muito longo para os padrões do mercado cinematográfico (180 minutos, soma de cinco episódios). Como bem registrou Rubens Ewald Filho em seu “Dicionário de Cineastas” (L&PM, 1988), o mundo inteiro assistiu a uma versão enxuta (em alguns países, arrancaram um episódio inteiro). Aqui, não, pois havia público para todas (as cinco!) histórias pirandelo-tavianas.

O tempo, porém, é implacável. Outros cineastas foram chegando, outras febres contaminando os cinéfilos (quem não se lembra do “contágio Peter Greenaway”, para ficarmos num só exemplo?).

Os Taviani ainda chamaram atenção com “A Noite de São Lourenço” (1981), “Bom Dia, Babilônia” (1987) e “Noites com Sol” (1990). Mas os dois últimos já tinham “cara” de produções internacionais, aquelas que costumam mobilizar atores “da hora”. Como o português Joaquim de Almeida, o britânico Julian Sands, a alemã Nastassja Kinski e a francesa Charlotte Gainsbourg.

Omero Antonutti (1935-2019), o rosto-assinatura de muitos filmes dos Irmãos Taviani, foi perdendo espaço. Os produtores internacionais gostam de destacar estrelas europeias (ou estadunidenses), jovens e belas. Mas havia, realmente, uma fase de estagnação no processo criativo dos Taviani. Tanto que uma das mais originais histórias que eles engendraram – a de “Bom Dia, Babilônia” – acabou aquém do imaginado-proposto.

Senão, relembremos: dois jovens migram de sua Toscana natal para os EUA, desejosos de fazer fortuna e ajudar o pai a recuperar o patrimônio perdido. Prometem cruzar o mar, naquele alvorecer do século XX, para “fazer a América”. Partem num navio, em condições as mais adversas, dividem prato de feijão aguado, são vistos como indesejados. Nos EUA, território que vivia a revolução cinematográfica, eles vão parar, como artesãos, na confecção dos monumentais cenários de “Intolerância” (Griffith, 1916).

O filme dos Taviani tem bons momentos. Mas o resultado final não impacta. Falta química entre os atores. Falta, também, a garra que marcara “Pai Patrão” e que Paolo e Vittorio recobrariam com “César Deve Morrer”.

Registre-se, porém, que há pelo menos uma sequência de antologia, daquelas que nunca mais sairão de nossa memória afetiva. Tanto que a reproduzimos abaixo, com o devido contexto: os irmãos artesãos são depreciados por seu empregador, que os insulta na base do ‘quem pensam que são, seus imigrantezinhos!’.

Dá-se a preconceituosa provocação:

– “Conheço bem os italianos. Mentirosos… bons de papo, espertos e preguiçosos. Barriga ao sol e mãos sobre a barriga”.

Os irmãos italianos retrucam:

– “Estas mãos restauraram catedrais… de Pisa, Lucca e Florença. Somos filhos dos filhos dos filhos de Michelangelo e Leonardo. De quem você é filho?”

Depois desse diálogo, só nos resta recomendar regresso ao obsoleto aparelho de vídeo, para assistir ao imperfeito (mas obrigatório) “Bom Dia, Babilônia”. Afinal, ele não está disponível nas plataformas de streaming. Nem no YouTube.

Quem sabe, com o adeus do último Taviani – morto em Roma, no último dia 29 de fevereiro, ele será enterrado nessa segunda-feira, 4 de março, em cerimônia laica – possamos assistir (na Mubi, na Belas Artes à la Carte ou na Imovision-Reserva) a uma completa retrospectiva dos “Fratelli” peninsulares!

Ah, o filme “Babilônia” (Damien Chazelle, 2022), aquele que pecou pelo excesso, é tributário, sim, de “Bom Dia, Babilônia”, aquele que pecou por timidez.

 

FILMOGRAFIA
Paolo Taviani (San Miniato, Pisa, Itália, 8 de novembro de 1931)
Vittorio Taviani (20 de setembro de 1929)

1960 – “A Itália Não é um País Pobre”, Irmãos Taviani, (documentário em parceria com Joris Ivens e Valentino Orisini – Para TV)
1962 – “Temos Que Queimar Um Homem” (“Un Uomo da Bruciare”, Irmãos Taviani (ficção com Gian Maria Volonté, codireção de Valentino Orsini) – Prêmio da Crítica no Festival de Veneza
1963 – “Os Fora da Lei do Matrimônio”, com Ugo Tognazzi e Annie Girardot (ficção em parceria com Valentino Orsini)
1967 – “Os Subversivos”, com Lucio Dal
1969 – “Sob o Signo do Escorpião” (Com G.M. Volonté e Lucia Bosé)
1971 – “Um Grito de Revolta” (ou “São Miguel Tinha um Galo” – filme para TV)
1974 – Allonsanfan (com Marcelo Mastroianni e Lea Massari)
1977 – “Pai Patrão” (com Omero Antonutti e Fabrizio Forte) – Palma de Ouro em Cannes
1979 – “O Prado” (com Michele Placido e Isabella Rosselini)
1981 – “A Noite de São Lourenço” (com Omero Antonutti e Margarita Lozano) – Prêmio do Júri em Cannes
1984 – “Kaos” (com Omero Antonutti e Ciccio Ingrassia)
1987 – “Bom Dia, Babilônia” (com Joaquim de Almeida e Vincent Spano)
1990 – “Noites com Sol” (Julian Sands, Nastassja Kinski, Charlotte Gainsbourg)
1992 – “Aconteceu na Primavera” (com Michael Vartan, Galatea Ranzi, Claudio Bigagli)
1995 – “Afinidades Eletivas” (inspirado na obra de Goethe, com Isabelle Huppert, Jean-Hughes Anglade e Marie Gillain)
1998 – “Tu Ride” (inspirado em obra de Pirandello)
2001 – “Ressureição” (com Stefania Rocca, Timothy Peach e Marina Vlady, filme para TV)
2004 – “Luisa Sanfelice (com Laetitia Casta, filme para TV)
2007 – “La Masseria delle Allodole” (“The Lark Farm”), com Paz Vega, Moritz Bleibtreu e Alessandro Preziosi
2012 – “César Deve Morrer” – Urso de Ouro no Festival de Berlim
2014 – “Senza Lucio” (Sem Lucio Dalla) – documentário sobre o cantor, compositor e ator italiano (como produtores). Direção de Mario Sesti
2017 – “Uma Questão Pessoal” (com Luca Marinelli, Lorenzo Richelmy e Valentina Bellè)
2022 – “Leonora, Adeus” (exibido no Festival de Berlim) – Direção solo de Paolo Taviani

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