A CineSystem manterá a natureza cinéfila dos Espaços Itaú de Cinema?

Por Maria do Rosário Caetano

O circuito exibidor de filmes de arte e ensaio disponível no Brasil deverá passar, nos próximos meses, por significativa modificação. E isto acontecerá porque quase 40 salas do Espaço Itaú de Cinema (de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) – representado pelo Frei Caneca e Bourbon Pompeia paulistanos, o Espaço Botafogo carioca e o Casa Park candango – mudaram de mãos no último dia primeiro de maio, feriado do Dia do Trabalho.

Tal circuito deixa de ser programado pelo exibidor Adhemar Oliveira e passa a ser de responsabilidade do grupo CineSystem, do Paraná. Trocando em miúdos: sai um programador vindo do movimento cineclubista e entra um empresário da exibição, Marcos Barros, que – a partir de agora – assume o controle de 27 complexos cinematográficos (num total de 182 salas espalhadas por cidades de 11 estados brasileiros).

Em nota à imprensa, o Grupo CineSystem externou sua “alegria” com a aquisição dos novos complexos em SP, RJ e DF, destacando que entre eles “está o primeiro cinema de rua da empresa (o Espaço Botafogo, agora rebatizado CineSystem Botafogo, localizado na Zona Sul carioca, próximo à praia). E uma sala IMAX (no Bourbon Pompeia)”.

A empresa de entretenimento elencou “os muitos motivos dignos de comemoração”. 1. “A aquisição vem reforçar ainda mais o compromisso do CineSystem Cinemas com a democratização da cultura e do cinema nacional, além de ampliar nossa presença no eixo Rio-São Paulo e estrear em Brasília”. 2. “Os quatro multiplex, que mudaram de nome, a partir de primeiro de maio, passarão por processo de revitalização, que trará melhorias imediatas na qualidade de som e imagem, bem como o incremento das opções de bombonière”. 3. “Temos um plano de levar, nos próximos anos, novas tecnologias e opções de entretenimento para os complexos adquiridos. Os diferenciais de gestão, que serão sentidos pelos clientes, ficam por conta da inclusão dos projetos próprios da CineSystem, como Cine Pets e Cine Azul, nosso programa de fidelidade Clube da Pipoca e nossa promoção Quinta do Beijo”.

Por fim, a nota da empresa garantiu que “a aquisição das salas vem ao encontro do desejo da companhia em ampliar suas ações e projetos de valorização de obras cinematográficas com maior fit cultural”. Premissa bastante vaga, mas que se faz seguir de nomes: a CineSystem “passa a contar com curadoria de Adhemar Oliveira para seleção dos títulos que farão parte da programação”. Os responsáveis pela execução dos novos planos e novas operações dos circuitos adquiridos serão “Samara (cujo sobrenome não foi explicitado), gerente de marketing, e Valdinei Strapasson, gerente de programação”.

Adhemar Oliveira, o “curador-consultivo” da CineSystem Cinemas, continuará programando 21 salas, sob sua total responsabilidade: as cinco do Espaço Augusta de Cinema e a CineSala, na capital paulista; o belíssimo Cine Glauber Rocha, com vista para a estátua de Castro Alves e a Bahia de Todos os Santos, em Salvador (quatro salas), o Cine Belas Artes de BH (três salas) e o Espaço de Cinema Bourbon Country, em Porto Alegre (oito salas).

Até encontrar novo patrocinador, Adhemar terá que manter esse circuito de 21 salas com recursos próprios, pois o Banco Itaú Unibanco rompeu parceria que vigorara por mais de três décadas. E o fez com nota protocolar, lembrando que a instituição financeira “reforça seu compromisso de promover o acesso à educação e à cultura, por meio de uma série de iniciativas relacionadas ao setor audiovisual brasileiro – como a plataforma de streaming gratuita, Itau Cultural Play, e os apoios por leis de incentivo, além de parcerias com produtores e realizadores de todo território nacional”.

“Vale destacar, ainda” – diz a nota – que “o Itaú é um dos maiores investidores sociais privados do Brasil, não apenas com iniciativas apoiadas diretamente pelo banco, mas também por meio da Fundação Itaú para a Educação e a Cultura, da qual é mantenedor”.

 

O rompimento acontece no momento em que o Itaú banca a vinda ao Brasil de megashow da cantora norte-americana Madonna, a ser realizado no Rio de Janeiro, nesse sábado, 4 de maio. E que o Circuito Belas Artes, situado na Rua da Consolação paulistana e comandado pelo cineasta e gestor cultural André Sturm, consolida sua parceria com uma instituição financeira, a Reag Investimentos.

Por que evocar o Belas Artes, nesse momento?

Porque foi um movimento popular, formado por cinéfilos, que se empenhou na defesa da preservação de tradicional ponto de exibição cinematográfica da metrópole paulistana, o complexo de salas da Consolação. O fato se deu durante o governo do então prefeito Fernando Haddad e de seu braço cultural, o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki. O Belas Artes foi salvo pelo mecanismo do tombamento afetivo-cultural, que do ponto de vista jurídico responde pela sigla Zepec-APC (Zona Especial de Preservação Cultural – Área de Proteção Cultural).

Adhemar Oliveira enfrenta, nesse momento, o preocupante risco de perder duas salas do Espaço Augusta de Cinema, justo as duas que situam-se defronte ao núcleo seminal de seu circuito de exibição de filmes de arte e ensaio (composto com as três salas situadas na Rua Augusta, número 1470). Chamadas de Salas do Anexo (uma de 80 lugares e outra com 25 poltronas espaçosas e confortáveis), elas compõem conjunto complementado com o charmoso Café Fellini e um pequeno, mas aconchegante, jardim (ou quintal). Enfim, um ambiente que cativou a cinefilia paulistana. Os frequentadores lá podem saborear – além de apreciar ótimos filmes – uma sopa de abóbora vermelha com gengibre, um bolo alemão, quiches, sanduíches naturais ou tapiocas recheadas.

O saudoso jornalista e escritor Artur Xexéo costumava dizer que cinemas de arte cheiram a café; cinemas comerciais, a pipoca. Pois o Espaço do Anexo tem o aroma do café. Mesmo aroma do café plantado no hall do Espaço Augusta (a matriz), espaçoso e arrematado com imenso pôster de Oscarito e Grande Otelo.

Uma Zepec-APC (Zona Especial de Preservação Cultural – Área de Proteção Cultural) permitirá que a nova edificação seja erguida, mas que ela deverá preservar espaço para as duas salas, com igual número de poltronas ofertadas, no tempo presente, pelos espaços de número 4 e 5. Mas parece que os empresários responsáveis pelo novo empreendimento imobiliário não querem saber da cafeteria, nem do pequeno jardim. E, no imbroglio jurídico que se formou – e que vem sendo relatado por Monica Bergamo, colunista da Folha de S. Paulo –, paira no ar a ameaça de que os dois cinemas sejam, no futuro, entregues a outro exibidor.

Além do Cine Belas Artes e do Anexo do Espaço Augusta, outros patrimônios culturais-e-afetivos de São Paulo foram (ou podem ser) preservados graças às Zepec-APC: o Bar Ó do Borogodó, o Clube Banespa, cujo terreno vem sendo cobiçado e cobrado pelo Santander (comprador do extinto Banco do Estado de São Paulo), e o Santa Marina Atlético Clube.

Movimentação dos cinéfilos em defesa das duas salas do Anexo do Espaço Augusta, do Café Fellini e do pequeno jardim (ou quintal) impediu que mais um arranha-céu subisse verticalmente sobre os escombros do espaço cinematográfico. Se tudo der certo, São Paulo continuará preservando algumas (mesmo que raríssimas!) de suas referências espaciais. Caso contrário, verá suas ruas e avenidas transformadas em paredões de concreto armado, com 30, 40 ou (até) 50 andares.

Voltando aos complexos cinematográficos agora pertencentes ao CineSystem: a programação continuará somando poucos blockbusters com expressivo número de filmes de arte e ensaio? Os filmes continuarão preservando legendas (e não abomináveis versões dubladas)? O cinema brasileiro terá, no CineSystem Frei Caneca, espaço para pré-estreias (com atores, diretores e técnicos) e consequente exibição?

E – a pergunta que não quer calar – a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo continuará contando com cinco ou seis salas do Frei Caneca para exibir sua programação? Ou terá que se virar no agora reduzidíssimo circuito cultural que soma o CineSesc (uma só sala – até quando?), a Reserva Cultural (com quatro salas) e a Cinemateca Brasileira (duas salas pequenas). Aliás, outra pergunta que não quer calar: por que a Petrobras não patrocina cobertura permanente para a Sala ao Ar Livre da Cinemateca, na Vila Clementino?

A quem estranhou a ausência do Belas Artes no “Circuito Mostra SP”, vale a justificativa: no meio da edição de número 46, em 2022, André Sturm se aborreceu com os filmes escolhidos para seu complexo cinematográfico e retirou-se do maior festival do país. Em 2023, continuou fora do projeto e das projeções. Voltará em 2024, agora que passa a definir-se como um Centro Cultural, com shows e sessões com trilhas sonoras ao vivo? E que rebatiza parte de suas salas com nomes ligados à história de nosso cinema: o da atriz e diretora Helena Ignez, do jornalista e crítico Luiz Carlos Merten e do cinéfilo Léo Mendes?

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