Luciana Bezerra, arte-educadora e “conselheira”, chega aos cinemas com “A Festa de Léo”, ficção ambientada no Morro do Vidigal

Foto © Mariana Vianna

Por Maria do Rosário Caetano

“A Festa de Léo”, primeiro longa ficcional do coletivo Nós do Morro, chega aos cinemas, nessa quinta-feira, 30 de maio, para alegria de sua realizadora, a cineasta, roteirista, atriz, arte-educadora, escritora e contumaz ‘distribuidora de conselhos’ Luciana Bezerra. Ela realizou o filme em dupla com o “ex-parceiro matrimonial” e, agora, “parceiro cinematográfico e grande amigo” Gustavo Melo. Juntos, eles haviam dirigido o longa documental “7 Cortes de Cabelo no Congo”, ambientado num salão afro, ponto de encontro da comunidade congolesa radicada no Brasil (especificamente, no Rio de Janeiro).

A segunda parceria, “A Festa de Léo”, nasceu de roteiro ficcional de Luciana, que há 38 anos dedica-se ao Nós do Morro, grupo que cumpriu papel de significativo relevo no longa “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles (2022), candidato a quatro Oscar. Se dependesse dela, que acaba de completar 50 anos – “veja só, meio século de vida!” – teria realizado muitos filmes antes da tardia estreia de “A Festa de Léo”. Afinal, na gaveta, guarda quatro roteiros inéditos, à espera de financiamento. “Ser mulher, periférica e preta”, argumenta, “torna tudo muito mais difícil”.

Para transformar “A Festa de Léo” em seu primeiro longa ficcional, Luciana buscou no Morro do Vidigal, onde cresceu e trabalha, a maior parte de seu elenco. Encabeçam sua narrativa familiar e afetiva, amigos com os quais conviveu, desde a adolescência, em muitas montagens teatrais ou aventuras cinematográficas. Caso de Cíntia Rosa, Jonathan Haagensen, Mary Sheyla, Babu Santana, Jonathan Azevedo, Luciano Vidigal, Roberta Rodrigues, Thiago Martins e Marcelo Mello Jr. A eles foram agregados os experientes Neusa Borges e Márcio Vito. E o pré-adolescente Arthur Ferreira, o Léo, cujo aniversário serve de combustível ao filme. Ele estuda, joga futebol (pelo Vidigal versus Rocinha) e faz tudo para ter o pai, endividado com o tráfico, por perto.

A trama do filme gira em torno de Rita (Cíntia Rosa) e seu filho pré-adolescente, Léo. Eles moram no Vidigal, uma das favelas mais conhecidas do Rio. Rita trabalha numa barraca de praia e economiza, com sacrifício, a grana necessária à realização da festa dos 12 anos do garoto. Quando é obrigada a se ausentar de casa para resolver a imprescindível reposição do botijão de gás, as coisas complicam-se. Ao lado do fornecedor do combustível doméstico, depois de subirem centenas de degraus de imensa escada, Rita descobrirá que não dispõe mais de grana para arcar com os R$117,00 do botijão, nem com a festa de aniversário do filho.

A mãe do aniversariante descobrirá, também e logo, que o furto foi realizado por Dudu (Jonathan Haagensen), seu próprio marido e pai de Léo. Por causa de dívida contraída com traficantes, ele corre sério risco de vida. O dinheiro que levou da esposa é apenas parte do pagamento devido. Desiludida, a mãe de Léo se verá obrigada a correr contra o tempo e descobrir formas de viabilizar o dinheiro e, assim, salvar a vida do pai de seu filho e, se tudo der certo, comemorar o aniversário de Léo.

Em entrevista à Revista de CINEMA, Luciana Bezerra – que além de roteirista, diretora, professora e sócia do Nós do Morro, é autora do livro “Meu Destino Era o Nós do Morro” (Ed. Aeroplano, 2010) – esbanja bom humor e sinceridade. Justifica a escolha das canções “Bom Conselho”, de Chico Buarque, e “Conselho”, de Adilson Bispo e Zé Roberto, para a trilha sonora de “A Festa de Léo” com razão peculiar: sua índole de “conselheira”.

Ela garante, com sorriso largo, que poderia ganhar a vida como uma “Banca de Conselhos”. E que não foge dos perrengues da vida. Ao contrário, os enfrenta com coragem e entusiasmo. E muito trabalho. Quando vai a um festival mostrar seus filmes (curtas, médias ou longas) o faz “na correria”. Afinal, tem sempre aulas a ministrar a seus alunos na escola do Nós do Morro. E espetáculos teatrais em processo de criação e montagem. “Me viro para conseguir dois dias de folga”, admite. Mas, com um longo suspiro, avisa: “nós, mulheres guerreiras, estamos cansadas de lutar sozinhas”, pois “os desafios cotidianos são muito grandes”.

Revista de CINEMA – Por que você demorou tanto a estrear no longa ficcional? Desde “Cidade de Deus”, você está envolvida com o audiovisual. Estreou no curta com “Mina de Fé” (2004) e ganhou, já na arrancada, o Troféu Candango de melhor filme no Festival de Brasília. Seu episódio em “5 X Favela – Agora por Nós Mesmos” (2010) foi considerado o melhor dos cinco. Foram suas múltiplas atividades no teatro (no Coletivo Nós do Morro), como atriz, diretora e professora, que impediram sua estreia?

Luciana – De forma alguma. O Teatro nunca me atrapalhou, menos ainda minha dedicação ao ofício de arte-educadora. Minhas aulas no Nós do Morro, que são constantes, nunca atrapalharam. O que sempre me impediu de levar meus roteiros para o cinema foi a falta de dinheiro, de financiamento. Sou uma pessoa que cultiva múltiplos saberes, que alimenta seus sonhos, escreve roteiros e mais roteiros. Tenho quatro prontos para serem filmados. Dois anos depois de atuar em “Cidade de Deus”, como pesquisadora de elenco e comandar oficinas de interpretação, ao lado de meu amigo e colega de Nós do Morro, Luciano Vidigal, consegui realizar meu curta “Mina de Fé”, que, além de vencer o Festival de Brasília, passou por dezenas de festivais e representou o Brasil na França. Me lembro muito do filme em território francês, creio que em 2004 ou 2005, pois eu estava grávida do meu filho, e hoje ele tem 18 anos. Com apoio de Cacá Diegues fizemos o “5 x Favela – Agora por Nós Mesmos”, que participou do Festival de Paulínia e teve sessão especial em Cannes. Fui uma das diretoras da série “How to Be a Carioca” (Star+) e, com Gustavo Melo, dirigi o longa documental “7 Cortes de Cabelo no Congo”, que recebeu prêmios no Festival do Rio e no Olhar de Cinema (Festival Internacional de Curitiba). Mas só consegui, mais uma vez em parceria com Gustavo Melo, dirigir meu primeiro longa ficcional, depois de espera de quase 20 anos. Outros fatores, além dos de natureza financeira, colaboraram com essa imensa espera: o fato de eu ser mulher, periférica e preta. Mas eu sou uma mulher aguerrida, lutei muito, incansavelmente, e agora estou muito feliz em ver nosso filme chegar aos cinemas.

Por que seus dois longas têm direção dupla? Você se sentiu mais segura em dirigir tanto “7 Cortes de Cabelo no Congo” quanto “A Festa de Léo” com um parceiro, no caso, Gustavo Melo?

Olhe, Gustavo era meu marido. É o pai do meu filho, um grande amigo e parceiro. Trocamos beijos e outras carícias pelo trabalho cinematográfico. E deu tudo certo. Acabou a relação matrimonial, que cedeu lugar a um casamento cinematográfico. Deixamos de fazer filhos para fazer filmes (ri com gosto). Temos uma empresa familiar. Somos sócios. Meu filho gosta de ver os pais no mesmo ofício e trabalhando juntos.

Mas “A Festa de Léo” parece ser um filme seu, vindo de uma história fruto de suas observações, com foco nas mulheres, que são as protagonistas absolutas da narrativa, em especial a Rita, de Cíntia Rosa.

O Gustavo me dizia isso: “esse filme é muito seu”. E eu, que adoro trabalhar com a soma de colaborações, dizia “é nosso”. É dos atores, meus amigos de Nós do Morro, é do Márcio Vito, uma pessoa maravilhosa, que conheço há décadas e que sempre me incentivou. É de todos que colaboram, pois fizemos um filme caro, com muitas locações e qualidade técnica, mas com recursos de um B.O. (Baixo Orçamento).

De seu numeroso elenco, só Neusa Borges e Márcio Vito não são originários do Nós do Morro?

Neusa gosta de ser identificada com o Nós do Morro. Diz que estava conosco sempre que podia ou era convidada, seja para ser jurada em nossos concursos de beleza, seja para assistir a nossos espetáculos. Além dela e do Márcio Vito, há a Numa Ciro, que trabalha com Heloisa Buarque de Hollanda em projetos muito inovadores, de educação informal. E, claro, o Léo (Arthur Ferreira, o Nego Ney), que aliás aniversaria no mesmo dia que eu, vindo de Bento Ribeiro. Trabalhamos com ele na série “How to Be a Carioca” e sabíamos que seria a escolha ideal para o filme.

Como Diogo Dahl entrou na produção do filme? O diretor de fotografia de “A Festa de Léo” é o gaúcho Renato Falcão, diretor de “A Festa de Margarette”? Ou um homônimo?

Exatamente o diretor de “A Festa de Margarette”. Trabalhamos com ele em “How to Be a Carioca” e, quando o convidamos para fotografar a festa do Léo, ele topou na hora. “Já filmei a festa da Margarette” – brincou – “por que não vou filmar a festa do Léo?” Então, ele foi um colaborador maravilhoso. Fez uma fotografia linda. Já o Diogo Dahl não foi contribuição de ninguém. Ele já era meu (risos). Trabalhamos juntos, fraternalmente, e ele é, além de um grande colaborador, um amigo. Por isso, digo que ele “é meu”, estava nos meus planos desde o começo (risos).

A geografia do Morro do Vidigal ambienta o filme com imensa riqueza. Escadas estreitas, que parecem não acabar nunca, e becos apertados, fotografados com grande habilidade por Renato Bulcão, jogam o espectador no interior (e calor) de cada cenário. A sequência do fornecedor de gás que sobe centenas de degraus com o botijão nas costas, as cenas de Dudu (Jonathan Haagensen) se escondendo dos traficantes em espaços exíguos são, especialmente, reveladoras.

Conheço cada canto do Vidigal, onde cresci e trabalho. Eu não queria mostrar nenhum cartão postal, pois não fiz um filme de gringo. Da minha casa, descortino vistas paradisíacas: a praia, a pedra dos Dois Irmãos, o Redentor. Mas o que eu queria mostrar eram os espaços da vida cotidiana. Por isso, a personagem de Cíntia Rosa foi concebida como uma pequena atleta, uma esportista, está sempre subindo escadas, além de trabalhar numa barraca de praia e carregar mesas, cadeiras, engradados de bebida. Ela sobe e desce o morro todos os dias. Conheço a Cíntia desde que era adolescente, a vi amadurecer nos palcos, a escolhi desde o primeiro momento do filme, por seu carisma, por nossas vivências e afetos.

Cíntia trabalhou em “Cidade de Deus”, num pequeno papel. Já Jonathan Haagensen, que faz o marido desencaminhado de Rita, estourou, junto com o irmão Philippe Haagensen no mesmo filme. Ele, como Cabeleira, e o irmão, como Bené, que aparecia com cabelos oxigenados, funcionando como uma espécie de consciência crítica do Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora). Por que você escolheu Jonathan para ser Dudu, o pai de Léo?

Primeiro, uma curiosidade sobre Leandro Firmino da Hora. Quando fomos procurá-lo para que fizesse testes para “Cidade de Deus” e, depois, as oficinas que Luciano Vidigal e eu ministraríamos, ele não mostrou nenhum interesse. Insistimos tanto, que o convencemos. Ele foi. O resto é história. Quanto à escolha de Jonathan Haagensen foi natural. Ele é parte do Nós do Morro, tem muito talento e sabíamos que ele ia fazer um Dudu longe do estereótipo. O personagem é um adicto, mas nunca o mostramos como uma pessoa amedrontadora, um monstro. O uso de drogas no nosso filme é um problema de saúde pública. O Dudu sabe que é possível deixar as drogas, desde que se sinta responsável por ele mesmo. Além do mais, a escolha dos dois, Cíntia e Jonathan, para compor um casal em fase de separação, me lembrou o trabalho deles em filme do qual gosto muito, o “Bróder!”, do Jeferson De (2010). Neste filme, Jonathan interpretou um jogador de futebol famoso e Cíntia, a sua namorada.

Juan Paiva (“Nosso Sonho”, “Renascer”, “Justiça 2”) é o ator afro-brasileiro da hora. Está arrasando. Ele e outros ótimos atores fazem pequenos papéis no seu filme. Nenhum deles reclamou?

Não, porque a Turma dos Nós do Morro aprendeu com Guti Fraga que não existe papel pequeno. Ele sempre nos dizia: se você for escalado para fazer um pivete, uma prostituta, um trabalhador, dê o melhor de si. O Juan Paiva é realmente maravilhoso, mas aceitou fazer um guarda de trânsito, numa sequência pequena. Mary Sheyla tem um papel maior. Roberta Rodrigues, Babu Santana e Thiago Martins também, mas protagonistas mesmo são Cíntia Rosa, Arthur Ferreira (Nego Ney) e Jonathan Haagensen. Cíntia, em especial, que está em praticamente em todas as cenas do filme. Ninguém, entre os coadjuvantes, reclamou. Todos aprenderam, realmente, ao longo de sua formação no Nós do Morro, que não existe papel pequeno.

Você abre o filme com “Bom Conselho”, de Chico Buarque. Por que fez essa escolha?

Chico Buarque está presente, musicalmente, em muitos momentos da minha vida. Ouço as músicas dele em momentos de alegria e de dores, separações. Pensei, primeiro, em usar “Dois Irmãos”, outra composição lindíssima do Chico. Mas depois de pensar bem, vi que a música que carregava o clima do filme era “Bom Conselho”. Você sabe que eu podia ganhar a vida com uma Banca de Conselhos?! Sim, adoro dar conselhos. E dou muitos até a quem não pede (risos). No filme, eu não deixo de dar conselhos ao personagem Dudu. Damos a ele a chance de abandonar o vício, de reconstruir sua vida com o filho Léo e com Rita. Basta que ele se responsabilize pela própria vida. Eu sei que sair daquele caminho que ele tomou é difícil, mas possível. Escolhemos para o filme o “Bom Conselho”, do Chico, numa interpretação feminina, no caso a da neta dele, a Clara Buarque. Uma gravação linda. E, para mostrar que eu sou mesmo uma ‘conselheira’ contumaz, escolhemos, na voz de Almir Guineto, “Conselho”, composição de Adilson Bispo e Zé Roberto. Agora o filme está prontinho para chegar ao público. Espero que dê tudo certo. Já ofereci “A Festa de Léo” aos santos, já rezei novenas, fiz a minha parte. O filme tem censura 12 anos e pode ser visto por toda a família. Temos um pré-adolescente, o Léo, no centro da narrativa, temos mulheres guerreiras, lutadoras, muitas abandonadas pelos companheiros e cansadas de lutar sozinhas. Claro que não quero alimentar grandes expectativas. Mas, mesmo sendo realista, creio que fizemos um filme que traz temas sérios tratados com muito carinho e afeto. E queremos, muito, mas muito mesmo, dialogar com o público.

 

A Festa de Léo
Brasil, 2024, 86 minutos
Direção: Luciana Bezerra e Gustavo Melo
Elenco: Cíntia Rosa, Jonathan Haagensen, Arthur Ferreira, Mary Sheyla, Neusa Borges, Babu Santana, Jonathan Azevedo, Juan Paiva, Luciano Vidigal, Márcio Vito, Roberta Rodrigues, Thiago Martins, Luiz Otávio Fernandes, Rose Haagensen, Micael Borges, Marcelo Mello Jr, entre outros
Produção: Diogo Dahl, Coqueirão Pictures, em coprodução com a Globo Filmes, Nós do Morro e Riofilme. E produção associada de Rosane Svartman, Jorge Furtado e Favela dos Filmes
Diretor de Fotografia: Renato Falcão
Montagem: Quito Ribeiro e Alessio Slossel
Trilha Sonora: Jarbas Bittencourt
Distribuição: Bretz
Circuito exibidor: Rio de Janeiro, Niterói, São Paulo, Florianópolis, Belo Horizonte, Brasília, Vitória, Salvador, Recife, Fortaleza, Manaus, Goiânia e Belém.

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