Trajetória da atriz Léa Garcia é revista em quinze filmes reunidos em mostra no CCBB SP

Foto: Léa Garcia em cena de “Ganga Zumba”, de Cacá Diegues

Por Maria do Rosário Caetano

A carreira da atriz Léa Garcia, que morreu, ano passado, durante o Festival de Gramado, aos 90 anos – um dia antes de receber o Troféu Oscarito –, será festejada com mostra retrospectiva de 15 de seus longas-metragens, no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano.

O filme mais antigo da mostra, que será inaugurada nesse sábado, 25 de maio (e prosseguirá até dia 23 de junho), é o francês “Orfeu Negro”, de Marcel Camus, no qual Léa interpretou Serafina. Este longa-metragem, detentor de uma Palma de Ouro e de um Oscar de melhor filme estrangeiro, marcou a estreia da atriz no cinema. Ela vinha de rica experiência nos palcos, com o Teatro Experimental do Negro, comandado por seu companheiro Abdias Nascimento (1914-2011), pai de dois de seus três filhos.

A atriz estivera, antes, no elenco da famosa montagem cênica de “Orfeu do Carnaval” (matriz do “Orfeu Negro”), realizada no Teatro Municipal do Rio, com cenários de Oscar Niemeyer, texto de Vinícius de Moraes e canções, de Tom Jobim, Vinícius e Luiz Bonfá. Canções que marcariam a história da nascente Bossa Nova. Coube a Léa o papel de Mira, a noiva ciumenta do sambista, que acabaria se apaixonando por Eurídice.

Já para o filme, Marcel Camus escalou a norte-americana Marpessa Dawn para interpretar, junto com o gaúcho Breno Mello, os protagonistas Eurídice e Orfeu. Coube a Lourdes de Oliveira o papel de Mira, a noiva ciumenta. No quarto papel (o terceiro feminino), brilhou a alegre, efusiva e exuberante Léa Garcia. Não há, convenhamos, nenhuma necessidade de dizer-se que ela “foi indicada à Palma de Ouro de melhor atriz e ficou em segundo lugar”.

O mesmo se diz de Ruth de Souza, no Festival de Veneza de 1954: que ela teria sido “indicada” à Copa Volpi de melhor atriz e ficado em segundo lugar. Nem Cannes, nem Veneza, nem Berlim “indicam” atrizes e atores. Concorrem todas as intérpretes de todos os filmes concorrentes (média de 15 a 20). Quem faz indicação é a Academia de Hollywood. Ela aponta (indica) cinco finalistas nas mais diversas categorias do Oscar (de uns tempos para cá, ampliou, na categoria principal, para dez filmes).

O que Ruth de Souza fez em “Sinhá Moça”, e Léa Garcia em “Orfeu Negro”, foi brilhar, mesmo que em papeis coadjuvantes. O que popularmente definimos como “roubar a cena”. Protagonistas (para valer, e com o imenso talento do qual eram dotadas), elas foram em “Filhas do Vento”, de Joel Zito Araújo.

Quem for ao CCBB ver (ou rever) o duelo das irmãs mineiras, marcadas por desencontros temperados com fortes doses de rancor, assistirá à primeira ficção do “Spike Lee brasileiro” e verá as duas atrizes em papéis matizados e magnificamente interpretados. O filme é um melodrama assumido, que resiste ao tempo pelo belo (e luminoso) time de atrizes e atores que reuniu.

Antes de “Filhas do Vento”, Joel Zito convocara Ruth de Souza e Léa Garcia para o longa documental “A Negação do Brasil”. As duas dão seus testemunhos ao cineasta (e autor da tese, transformada em livro “A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira”) sobre suas carreiras e a luta contra os estereótipos que sobrecarregavam, décadas a fio, as personagens para as quais eram escaladas. Tanto nos filmes, quanto nas telenovelas. A elas cabiam interpretar escravas, em narrativas de época, domésticas (ou “babás gordas”, como protestaria Ruth de Souza em suas conversas com a documentarista Juliana Vicente – “Diálogos com Ruth de Souza”, 2024, em cartaz nos cinemas).

A partir das reflexões que cercaram o filme documental, vencedor do Festival de Documentários É Tudo Verdade, Joel Zito concebeu “Filhas do Vento”. De início, ele pensou em reconstituir, ficcionalmente, biografia de Ruth de Souza. Mas o jovem cineasta queria, também, homenagear sua mãe. E ambientar o filme em suas Minas Gerais. Foi aí que elaborou o argumento, transformado em roteiro por Di Moretti: as irmãs Maria da Ajuda, a Ju, seria inspirada em sua mãe, e Maria Aparecida, a Cida, na trajetória da atriz Ruth de Souza. De temperamentos opostos, elas se afastariam, tomando rumos totalmente diferentes.

A primeira, Ju, seria uma mulher apegada a seu povoado de origem, com muitos filhos, amores livres e cuidando do pai, consertador de bicicletas (Milton Gonçalves). A outra, que sempre sonhara em ser atriz – para desespero do pai, pois para ele aquilo era desejo inacessível, não era ofício de moça direita – enfrentaria todas as adversidades e iria para o Rio de Janeiro, fazer carreira nos palcos e na televisão.

Joel Zito relembra as filmagens, ocorridas vinte anos atrás, em Lavras Novas, região do ouro de Minas Gerais. Evoca o desempenho solar, efusivo e contagiante de Léa Garcia. E a contenção, elegância e sobriedade de Ruth de Souza. “Quando chegamos a Lavras Novas e nos hospedamos, todo o elenco, na Pousada local, percebi que Ruth ficava restrita às dependências do hotel. Não saía, não procurava se entrosar com a comunidade”.

Já Léa Garcia, no polo oposto, “era pura alegria, descontração, saía todos dias (passamos dois meses preparando as filmagens), conversava com todo mundo, fazia amigos e amigas. Chegou a ganhar três cachorros e chorou quando não pôde levá-los para o Rio, terminadas as filmagens”.

Joel Zito não reclamou com Ruth de Souza, embora a achasse “distante, algo aristocrática, meio grande dama”. Deixou o tempo passar e atribuiu tal postura ao temperamento da atriz, historicamente marcado pela elegância, sobriedade e discrição.

“Só mais tarde, com o filme pronto” – confessa o cineasta – “percebi que Ruth fazia seu laboratório. Cida (interpretada na juventude por Taís Araújo), carregava grande ressentimento do lugar, fôra expulsa de casa pelo pai, que preferia Ju (na juventude, Thalma de Freitas), mais apegada a ele e ao pequeno povoado”. E mais: “Léa também fazia seu laboratório. Embora fosse mesmo de temperamento alegre e muito comunicativa, ela sabia que Maria da Ajuda era enraizada, apegada à família, totalmente inserida no meio comunitário, presente em todos os festejos religiosos. Então, entregou-se de corpo e alma ao povoado de Lavras Novas”.

Coube a Léa Garcia incorporar muito da mãe de Joel Zito Araújo, uma mulher apegada às suas raízes, que criou os filhos, integrando-se em profundidade à sua comunidade, participando de todas as festas da Igreja. Ela não teria uma irmã atriz, mas sim, um filho cineasta.

Léa Garcia nasceu no Rio de Janeiro em 11 de março de 1933, portanto 12 anos depois de Ruth, também carioca (mas criada em Minas Gerais). O destino as uniria, já que ambas seriam estrelas do Teatro Experimental do Negro, criado pelo visionário e incansável Abdias Nascimento.

O grupo, lançado em 1944, durou até 1961, e fez história. Seus integrantes destacaram-se no teatro, no cinema e na TV. Vinícius de Moraes, Jorge Amado, Alinor Azevedo, Alex Viany, Roberto Farias, entre outros importantes nomes da cultura brasileira, acompanhavam de perto seus trabalhos e buscavam suas atrizes e atores para seus projetos. No que seriam acompanhados pela nova geração cinemanovista.

 

Mostra Léa Garcia – 90 Anos
Data: 25 de maio a 23 de junho
Local: Centro Cultural Banco do Brasil – São Paulo – Rua Álvares Penteado, 112 – Centro Histórico – SP
Ingressos: gratuitos, disponíveis em bb.com.br/cultura e na bilheteria física do CCBB SP
Classificação indicativa: de livre a 16 anos (consultar programação)

 

Confira os longas selecionados:

1959 – “Orfeu Negro”, de Marcel Camus (França-Brasil)
1965 – “Ganga Zumba”, de Cacá Diegues (RJ)
1974 – “O Forte”, de Olney São Paulo (BA)
1975 – “Compasso de Espera”, de Antunes Filho (SP)
1977 – “Feminino Plural”, de Vera de Figueiredo (RJ)
1977 – “Ladrões de Cinema”, de Fernando Coni Campos (RJ)
1978 – “A Deusa Negra”, de Ola Balogun (Nigéria-Brasil)
1978 – “A Noiva da Cidade”, de Alex Viany (RJ)
2000 – “Cruz e Souza – Poeta do Desterro”, de Sylvio Back (PR-SC)
2000 – “A Negação do Brasil”, de Joel Zito Araújo (RJ-SP)
2005 – “Filhas do Vento”, de Joel Zito Araújo (RJ-MG-DF)
2006 – “Mulheres do Brasil”, de Malu di Martino (RJ)
2020 – “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, de Jeferson De (SP-RJ)
2022- “O Pai da Rita”, de Joel Zito Araújo (SP-RJ)
2022 – “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira (SP)

Sessões comentadas:

. Primeiro de junho (sábado, às 14h): Com o cineasta Joel Zito Araújo, palestra e debate após a exibição do filme “Filhas do Vento”

. 08 de junho (sábado, às 14h): Com a pesquisadora Mariana Queen Nwabasili, após a exibição de “Compasso de Espera”.

. 21 de junho (sexta-feira, às 16h): Bate papo com o professor e cineasta Juliano Gomes, após a exibição do filme “Ladrões de Cinema”

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