Cine PE premia o gaúcho “Memórias de um Esclerosado” e os pernambucanos “Hoje Eu Só Volto Amanhã” e “Das Águas”
Foto: Os premiados da 28ª edição do Cine PE © Felipe Souto Maior
Por Maria do Rosário Caetano, de Recife
O longa documental gaúcho “Memórias de um Esclerosado”, de Thaís Fernandes e Rafael Corrêa, foi o grande vencedor da vigésima-oitava edição do Cine PE – Festival do Audiovisual de Pernambuco. O filme registra, com auxílio de imagens animadas e de inserções oníricas, a história do quadrinista e cartunista Rafael Corrêa, o Rafa, diagnosticado com esclerose múltipla em 2010. Ele tinha 34 anos, hoje tem 48.
No campo do curta-metragem, houve vitória dupla dos pernambucanos. A animação “Hoje Eu Só Volto Amanhã”, dirigida por coletivo de onze integrantes e ambientada no Carnaval de Olinda, causou furor. Conquistou seis prêmios na categoria melhor curta nacional. O documentário de recorte social “Das Águas”, de Adalberto Oliveira e Thiago Martins Rêgo, triunfou como melhor curta regional (pernambucano).
As duas comissões julgadoras acertaram em suas principais decisões. O documentário gaúcho foi, realmente, o destaque da modesta competição de longas-metragens do Cine PE, composta com apenas cinco títulos. “Memórias de um Esclerosado” recorre ao humor e à irreverência para encadear fragmentos da vida de Rafa, que se locomove em cadeira de rodas e necessita de ajuda para tomar banho, deitar-se ou levantar-se. E o personagem-diretor o faz, com a ajuda valiosa de Thaís Fernandes, sem recorrer ao olhar piedoso.
O cartunista faz do bom humor a sua métrica. E recorre a perturbadora lembrança infantil. O menino Rafa matou, “de forma cruel e sem motivos”, um sapo, esmagando-o pelo lado esquerdo. Quando sentiu os primeiros sintomas da esclerose múltipla, viu que sua mão esquerda (com a qual exercia e continua exercendo seu ofício de desenhista) fôra a primeira a ser afetada pela paralisia.
Seria um karma? A vingança do sapo?
A doença evoluiu e Rafa, ao lado de suas duas grandes colaboradoras (a diretora Thaís e a co-roteirista e fotógrafa Ma Villa Real), estruturou o filme. E pôs-se a conjecturar: será que teria tempo para concluir suas “memórias esclerosadas”?
Teve e participou ativamente do Cine PE, tanto na apresentação do filme (não pôde subir ao palco por falta de acessibilidade), quanto no debate e, finalmente, nos bem-humorados agradecimentos aos cinco prêmios conquistados. Incluindo o de melhor “ator coadjuvante”. Fez, questão, porém, de lembrar que dividia este troféu de “intérprete” de si mesmo com o irmão que o substituiu, como dublê de corpo, em onírico balé com o sapo, sequência vista no final do filme.
O batráquio que Rafa exterminou na infância é antropomorfizado em “Memórias de um Esclerosado”. Ao dançarem juntos, o cartunista e sua vítima, o sapo, esboçam feliz acerto de contas. O filme, vale registrar, ganha em dinamismo e eficiência narrativa ao compor sequências que animam quadrinhos (ou cartuns) do inquieto artista.
Nos créditos do documentário destaca-se outro nome importante: o da gaúcha Ma Villa Real, de cabelos azuis e língua ferina. Ela chamou atenção ao longo de todo o festival e na noite da premiação. Ganhou duas Calungas de Prata: uma como co-roteirista de “Memórias de um Esclerosado” e outra como diretora de fotografia do curta “Zagêro”, também protagonizado por um portador de deficiência, o jovem Victor De Mello.
“Nunca fui fotógrafa, nem roteirista. Estreei nestes dois filmes e parece que deu certo”, brincou Villa Real. Ela desempenha mais uma função em “Memórias de um Esclerosado” — a de personagem. Como foi namorada de Rafa durante boa parte das filmagens, ela aparece em cena e em conversas com o companheiro.
A convivência com o protagonista do filme, somada a registros de imagens da vida cotidiana dele, a credenciaram a dividir a direção de fotografia com o experiente e talentoso Bruno Polidoro, nome de grande prestígio no cinema gaúcho.
Rafa e Ma já não formam um par amoroso. A relação conjugal se esgarçou. Foi substituída por sólida amizade. A ponto de, durante a pandemia, ela se hospedar na casa dele com o novo namorado. Quem define a amizade eterna que os une (e que substituiu o casamento) é o próprio Rafa. Tanto que ele mobilizou a nova profissional do cinema gaúcho para integrar a representação do filme em solo recifense.
O segundo longa mais premiado do festival pernambucano foi “Invisíveis”, de Carolina Vilela e Rodrigo Hinrichsen, laureado com três Calungas de Prata (direção, montagem e prêmio da Crítica-Abraccine). Como “Memórias de um Esclerosado”, o filme trata de personagens PcD (Pessoa com Deficiência). No caso, a dupla formada por Cláudia Sofia e Carlos Jorge, portadores de deficiência visual e auditiva. A esfuziante Sofia, casada com Carlos há 15 anos, tem o dom da fala e o utiliza para defender, em palestras pelo Brasil e exterior, políticas públicas de inclusão. Carlos não vê, não ouve e não fala, mas comunica-se com a esposa (ou com seus intérpretes) por dois métodos — o Tadoma e a Libra Tátil.
Os outros três concorrentes na categoria longa-metragem também ganharam seus troféus. A ficção pernambucana “No Caminho Encontrei o Vento” teve reconhecido o trabalho de seu ator protagonista, o recifense Alexandre Guimarães, de 44 anos. Aliás, peça-chave no projeto, que se realizou sob o signo do Cinema Instantâneo, comandado por Antônio Fargoni. Trata-se de proposta voltada à realização de filmes sem grandes aparatos de produção (um derivado do velho Dogma 95). Ao conhecê-la, o recifense fez contato, pelas redes sociais, com o cineasta paulista. Chegaram a bom entendimento e com apenas R$20 mil começaram a produzir o filme em Parque Eólico próximo à cidade de Garanhuns. Foram apenas 14 dias de filmagens. E gastos que, com a obra finalizada, não ultrapassaram os R$250 mil.
O documentário de Mari Moraga — “Geografia Afetiva”, também gaúcho (com parceria paulistana) — conquistou duas Calungas de Prata (melhor fotografia e melhor montagem). O filme promove encontros de familiares dispersos de Mari, fruto da união de pai salvadorenho, exilado no Brasil nos tempos de guerra civil em El Salvador, e mãe gaúcha. Tudo começa em Camaquã, no Rio Grande do Sul, onde os pais da cineasta construíram sua vida. Depois, a pequena equipe de Mari dirige-se à América do Norte (Montreal, no Canadá, destino do exílio de parte da família Moraga) e à América Central (El Salvador).
Os prêmios de atuação feminina foram todos para o único candidato que contava com atrizes em seu elenco — “Cordel do Amor sem Fim”, de Daniel Alvim. Márcia de Oliveira ganhou a Calunga de melhor atriz protagonista e Helena Ranaldi e Patrícia Gasppar dividiram o troféu de melhores coadjuvantes.
Em edições futuras, o comando do festival pernambucano e sua curadoria devem atentar para a necessidade de escolha de mais títulos e busca de equilíbrio entre a ficção e o documentário. Este ano, com a seleção de apenas dois filmes ficcionais, deu-se a inusitada ausência de candidatas. Como “No Caminho Encontrei o Vento” não mobilizou personagens femininas, as atrizes do “Cordel” já desembarcaram em Pernambuco premiadas.
Se faltou quantidade (e variedade) de títulos na mostra de longas-metragens, o mesmo não se deu nas categorias curta brasileiro e curta pernambucano. Por sorte, o júri dessas mostras competitivas não promoveu reforma agrária de Calungas. Dos 15 curtas brasileiros, só cinco foram laureados. E a animação “Hoje Eu Só Volto Amanhã” acumulou quatro troféus, ampliados pelo reconhecimento do Júri Popular e do Prêmio Canal Brasil. Seis láureas no total.
O curta mais premiado da vigésima-oitava edição do Cine PE se passa nas ladeiras carnavalizadas de Olinda. Nelas se movimenta Marina, jovem em busca do prazer e do êxtase. Para registrar a vibração da folia, foram mobilizados onze (sim, onze!) realizadores. Cada um comandou trecho da narrativa, criando (e animando) dez personagens. Por sua vez, estes personagens estabelecem seu ponto-de-vista sobre as ações carnavalescas de Marina. A explosão de cores, a vibração da música, o calor dos blocos e o empenho da jovem em viver o carnaval ao seu modo são condensadas em sintéticos oito minutos.
Dos sete concorrentes pernambucanos, cinco foram premiados. Mas o júri concentrou-se, com ênfase, no documentário “Das Águas”, de Adalberto Oliveira e Tiago Martins Corrêa, que recebeu quatro Calungas prateadas, incluindo as de melhor filme e melhor direção.
A dupla de realizadores uniu forças para registrar a gente pobre do Recife, que arranca seu sustento das águas do Rio Capibaribe. Mulheres e homens são vistos em sua dura labuta cotidiana. E essa luta sustenta-se na atividade pesqueira (manual e rústica). Só que peixes e mariscos escasseiam, pois a poluição do Capibaribe aumenta.
Os pescadores, em maioria vindos da base da pirâmide social, lutam sem descanso por sua sobrevivência. A personagem que mais impressiona é a de uma marisqueira, já de idade avançada, que singra o rio a nado ou caminhando, municiada apenas com seu improvisado instrumento de trabalho: um engradado de bebidas feito de plástico, no qual deposita o que encontra nas águas do Capibaribe.
Confira os vencedores:
LONGA-METRAGEM
. “Memórias de um Esclerosado”, de Thaís Fernandes e Rafael Corrêa (RS) – melhor filme, roteiro (Thaís Fernandes, Rafael Corrêa e Ma Villa Real), trilha sonora (André Paz), ator coadjuvante (Rafael Corrêa), Júri Popular
. “Invisíveis”, de Carolina Vilela e Rodrigo Hinrichsen (RJ): melhor direção, Prêmio da Crítica (Abraccine), montagem (Rodrigo Séllos e Fernando Nicoletti)
. “Cordel do Amor sem Fim”, de Daniel Alvim (SP) – melhor atriz (Márcia de Oliveira), atriz coadjuvante (Helena Ranaldi e Patrícia Gasppar), direção de arte (André Cortez)
. “Geografia Afetiva”, de Mari Moraga (SP-RS): melhor fotografia (Luciana Baseggio e Mari Moraga), montagem (Mari Moraga)
. “No Caminho Encontrei o Vento”, de Antônio Fargoni (PE-SP): melhor ator (Alexandre Guimarães)
CURTA-METRAGEM BRASILEIRO
. “Hoje Eu Só Volto Amanhã”, de Diego Lacerda e equipe (PE) – melhor filme, roteiro (Diego Lacerda e equipe), direção de arte (Diego Lacerda e equipe), edição de som (Nicolau Domingues e Rafael Travassos), Júri Popular e Prêmio Canal Brasil
. “Flor da Macambira”, direção de Crianças e Adolescentes da Macambira (ES) – melhor direção, trilha sonora (Vovô Romário)
. “Zagêro”, de Victor De Marco e Márcio Picoli (RS) – melhor ator (Victor de Marco), fotografia (Ma Villa Real), Prêmio da Crítica (Abraccine)
. “Jogo de Classe”, de Quico Meirelles (SP) – melhor atriz (Juliana Araújo)
. “Resistência”, de Juraci Junior – melhor montagem (Vinicius Lima e Rafael Souto)
CURTA PERNAMBUCANO
. “Das Águas”, de Adalberto Oliveira e Tiago Martins Rêgo – melhor filme, direção, fotografia (Adalberto Oliveira), trilha sonora (Marolas Crew)
. “Emocionado”, de Pedro Melo – melhor atriz (Mariana Castelo), roteiro (Pedro Melo), montagem (Douglas Henrique)
. “Mãe”, de Natália Tavares – melhor ator (Guilherme Alves), direção de arte (Letícia Rodrigues)
. “Moagem”, de Odília Nunes – melhor edição de som (Romero Coelho)
. “Náufrago”, de Vitória Vasconcellos – Júri popular