“Greice”, o hipopótamo “Pepe” e “Idade da Pedra” triunfam no Olhar de Cinema

Foto: “Greice”, de Leonardo Mouramateus

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

Três filmes latino-americanos triunfaram na décima-terceira edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, encerrado na noite de quarta-feira, 19 de junho, na bela (e musical) Capela Santa Maria, próxima à sede histórica da Universidade Federal do Paraná.

A competição estrangeira foi vencida pelo dominicano “Pepe”, de Nelson Carlos De Los Santos Arias, registro de inventivas e extravagantes memórias de um hipopótamo nascido na África e expatriado para as margens do Rio Magdalena, na Colômbia de Pepe Escobar.

Os brasileiros “Greice”, de Leonardo Mouramateus, e “Idade da Pedra”, de Renan Rovida, venceram a competição principal (o primeiro) e a mostra Novos Olhares (esta de recorte internacional).

“Greice” venceu em mais duas categorias: melhor atuação, único prêmio destinado a atores, e melhor roteiro, do cearense, radicado em Lisboa, Leonardo Mouramateus. A escolha da performance de Amandyra ganhou valor especial, já que ela enfrentou forte concorrência. A décima-terceira edição do Olhar mostrou grandes desempenhos femininos. Caso de Clarissa Pinheiro, protagonista do carioca “Um Dia Antes de Todos os Outros”, Anidria Stadler, do paranaense “O Sol das Mariposas”, e Clara Paixão, do baiano “A Mensageira”. No páreo estava, também, Cris Martins, que interpretou a si mesma no documentário pernambucano “Tijolo por Tijolo”.

O Olhar não divide a categoria em intérpretes femininos ou masculinos, nem premia protagonistas ou coadjuvantes. Sua busca se dá em torno de performance arrebatadora, venha ela da ficção ou do documentário, tenha longa ou breve aparição, seja cis ou LGBTQIAPN+ .

No caso de Amandyra, filha de cearenses nascida em Guarulhos e radicada em Fortaleza, premiou-se uma estreante no longa-metragem. A jovem, que fez de tudo (trabalhou até na Rede Cinemark), é talentosa, bem-humorada e onipresente na chanchada cearense-lisboeta de Mouramateus.

Para o júri, “a comédia de situações” — identificada pelo sintético nome de sua protagonista (uma estudante da Escola de Belas Artes de Lisboa), Greice — aborda “com notável leveza temas complexos, em especial, as relações sociais e de gênero”. E, de “forma lúdica”, registra, “no domínio político, as relações entre Brasil e Portugal”.

Causou surpresa a opção do júri, de composição internacional, por “Greice”. Tudo levava a crer que o vencedor seria “Tijolo por Tijolo”. Afinal, o documentário pernambucano fora o escolhido da Crítica e premiado (pelo júri oficial) nas categorias melhor direção (da dupla Victoria Alvares e Quentin Delaroche) e melhor montagem (sólido trabalho do franco-brasileiro Delaroche), que sintetizou imagens colhidas ao longo de quatro (em parte epidêmicos) anos.

Mas o júri preferiu a ficção cearense-lusitana, que dialoga com o cinema de gênero (no caso, a comédia com temperos de chanchada). E, como é de praxe no Olhar, os jurados foram econômicos na distribuição de troféus. Dos oito filmes da competição brasileira, quatro foram ignorados (incluindo o surpreendente “Rancho da Goiabada”, de Guilherme Martins, sobre o precariado que labuta em plantações de cana-de-açúcar do interior paulista).

Na competição internacional, deu-se o esperado. O júri atribuiu o prêmio principal ao dominicano “Pepe”, nome de seu inusitado protagonista, um hipopótamo que teria chegado, vindo da África, à Colômbia, para realizar extravagância do narcotraficante Pablo Escobar. O filme já trazia na bagagem um Urso de Prata de melhor direção em Berlim.

“Pepe”, de Nelson Carlos De Los Santos Arias

Ao moçambicano “As Noites Ainda Cheiram a Pólvora”, de Inadelso Cossa, coube merecido Prêmio Especial do Júri. O filme busca cicatrizes deixadas na alma e nos corpos dos que lutaram na guerra civil em Moçambique. Guerra que se seguiu à libertação — empreendida de armas em punho — da nação africana do jugo português.

A mostra Novos Olhares consagrou “Idade da Pedra”, do ator (inclusive da ousada Cia do Latão) e agora diretor Renan Rovida. Ele competiu com cinco produções estrangeiras, entre elas “Jean Genet Agora”, do argentino Miguel Zeballos.

O longa do polivalente Rovida (diretor, protagonista e co-roteirista) acompanha um sem-teto pelas ruas da capital paulista, onde sonhos, desejos e memórias se conjugam para revelar as contradições da megalópole sul-americana.

O público que votou no melhor filme (soma dos longas da competição brasileira e internacional) consagrou “Caminhos Cruzados”, produção dirigida pelo sueco Levan Akin, de origem georgiana. Rodado em maior parte em Istambul, na Turquia, essa sólida, bem-humorada e amorosa ficção deixa a inovação de linguagem em segundo plano. Sua intenção primeira consiste em buscar emoção refinada e transformadora do público. Na trama, uma tia, professora aposentada em sua Georgia natal, sai em busca de sobrinha transsexual. E o faz na companhia de um jovem conterrâneo que deseja encontrar emprego na “capital europeia” da Turquia.

A premiação do Olhar de Cinema foi precedida pela exibição do documentário “Salão de Baile”, da dupla Juru e Vitã. Melhor escolha, impossível. O filme celebra a cultura ballroom, praticada por corpos queer, pretos e periféricos. O território habitado por estes corpos fica do outro lado da baía da Guanabara, na fluminense Niterói.

Bichas pretas e rejeitadas por suas famílias biológicas se unem em “houses” acolhedoras, verdadeiros quilombos afetivo-vocacionais. Ali, naqueles espaços coletivos e eletivos, elas vão cuidar de seus corpos e treiná-los para danças acrobáticas em competições julgadas por rainhas do ballroom.

Vão cuidar da pele, de suas vestimentas, maquiagem, gestos e passos. Quem desconhecia a vertente brasileira das “houses”, importadas de suas congêneres norte-americanas, será regiamente recompensado.

O filme de Juru e Vitã é muito bem fotografado (por Paula Monte e Suelen Menezes), tem montagem ágil (de Peterkino) e, o melhor de tudo, dá tratamento complexo ao tema. Não fica só no oba-oba da cultura ballroom. Mostra suas contradições e dores. E enfrenta questão crucial: o envelhecimento dos corpos queer. Se, no auge da juventude, as transsexuais se esbaldam em danças aptas até a constituir modalidade olímpica, com o passar do tempo, a situação muda. Uma outrora rainha do ballroom desenha esse porvir desprovido de euforia.

Alguém poderá reclamar do excesso de personagens e das muitas subdivisões das performances ballroom. Se a dupla de cineastas tivesse se concentrado em cinco ou seis protagonistas, seus perfis poderiam ser trabalhados com maior profundidade. Mas essa não é proposta de Juru e Vitã. O que se quer é dar aos leigos, àqueles que nada sabem desse vibrante e competitivo mundo de corpos que dançam, um rico panorama.

Com a competência narrativa demonstrada em “Salão de Baile”, tudo indica que a dupla realizará novos filmes dentro desse universo temático. Aí poderá trocar o recorte panorâmico por retratos mais íntimos e profundos.

Por enquanto, segue um bom conselho: prepare, espectador, seu olhar para fruir desse ótimo, revelador e vibrante documentário. Que destina-se não só ao gueto, mas a público amplo, desde que disposto a conhecer pessoas em busca de novas formas de viver e amar. Tem tudo para fazer sucesso no circuito exibidor.

Confira os vencedores:

Competição brasileira

. “Greice”, de Leonardo Mouramateus (Ceará-Portugal) – melhor longa-metragem, atuação (Amandyra), roteiro (Leonardo Mouramateus)
. “Tijolo por Tijolo”, de Victoria Alvares e Quentin Delaroche (PE) – melhor direção, montagem (Quentin Delaroche) e Prêmio da Crítica (Abraccine)
. “Praia Formosa”, de Júlia De Simone (RJ-MG) – melhor fotografia (Flávia Rebouças), direção de arte (Ana Paula Cardoso)
. “A Mensageira”, de Cláudio Marques (Bahia) – melhor som (Lucas Carvalho, Ana Pena, Vinicius Barreto e David Terra)
.  “Quarto Vazio”, de Julia Vidal – Prêmio AVEC-PR-Ari Cândido Fernandes – melhor longa da Mirada Paranaense
. “BAOBAB”, de Bea Gerolin, Prêmio AVEC-PR- Ari Cândido Fernandes – Menção honrosa (curta-metragem)
.  “Caravana da Coragem”, de Pedro B. Garcia (DF) – melhor curta-metragem
. “Povo do Coração da Terra”, do Coletivo Guahu’i Guyra – Prêmio Especial do Júri (curta-metragem)
.  “Viventes”, de Fabrício Basílio – Melhor Curta pelo Júri Popular
.  “Cavaram uma Cova no Meu Coração”, de Ulisses Arthur  (AL) – Prêmio da Crítica (Abraccine) – melhor curta-metragem

Competição internacional

. “Pepe”, de Nelson Carlos De Los Santos Arias (República Dominicana) – melhor longa-metragem
. “As Noites Ainda Cheiram a Pólvora”, de Inadelso Cossa (Moçambique) – Prêmio Especial do Júri.
. “Idade da Pedra”, de Renan Rovida (SP)- melhor longa da mostra Novos Olhares
. “Minha Pátria”, animação de Tabarak Abbas (Suíça) – melhor curta-metragem
. “Caminhos Cruzados”, de Levan Akin (Geórgia, Turquia, Suécia) – melhor longa pelo Júri Popular

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