“Bernadette” registra em tom de comédia a transformação de Madame Chirac em ícone pop
Por Maria do Rosário Caetano
“Bernadette”, comédia que marca a estreia da atriz Léa Domenach na direção e traz Catherine Deneuve em saborosa recriação da ex-primeira- dama francesa, Madame Chirac (esposa do presidente François Chirac), estreia nessa quinta-feira, 29 de agosto, nos cinemas brasileiros.
Bernadette Thérèse Marie Chodron de Courcel Chirac, hoje com 91 anos, deve ter amado o filme. Afinal, a austera senhora ganhou representação das mais fashion.
Quem, vale perguntar, não deseja ser tema de um longa-metragem leve, divertido e feminista, tendo Catherine Deneuve, uma das mais belas atrizes do cinema francês (e planetário), no papel principal?
A jovem Bernadette cresceu no seio de família muito católica e bem situada na escala social. Recebeu formação das mais rígidas. Quando seu marido, de origem modesta, Jacques Chirac (1932-2019), foi eleito para ocupar a presidência da República (mandato de 1995 a 2007), ela acabou reduzida à função de simples esposa, daquelas que vivem à sombra do cônjuge.
O marido, que fora prefeito de Paris e primeiro-ministro, ao atingir o ponto mais cobiçado da política francesa, vira chegada a hora de desfrutar do cargo que interessa ao filme, o de presidente eleito. No caso dele, pela UMP, agremiação de centro-direita.
A esposa bem-nascida, que o ajudara a subir na vida, acabaria escanteada. Monsieur, le président, não queria levá-la à Ópera (estava sempre cansado) e a via como um acessório palaciano. Para piorar, jornal de fofoca noticiava que o presidente andava usufruindo de outras companhias, inclusive a de uma atriz italiana (não saberemos qual delas).
Que ninguém espere um filme politizado. “Bernadette” é uma comédia que, graciosamente, ganhou do irreverente e exigente Les Inrock (Inrockuptibles) uma mísera estrela. Além de comparação das mais pertinentes: “Barbie, Bernadette: a construção do roteiro é a mesma, os projetos visuais não se distanciam (cores vivas, vocabulário publicitário). A pegada política é a mesma – resgatar para o feminismo qualquer figura ‘iconizável’. Qualquer que seja seu conteúdo, alienante ou reacionário”.
Cahiers du Cinéma e Libération também destinaram uma única estrela ao filme. Le Monde, depois de observar que Domenach transforma Bernadette Chirac em “heroína vintage”, cravou deux étoiles. Mas houve quem gostasse. Em especial, os críticos dos jornais e revistas atentos ao feminismo (caso da Marie Claire e Femme Actuelle). Foram generosos e cravaram quatro estrelas. Também o Le Figaro, tradicional e conservador, atuou em escala igualmente generosa. Assim com o L’Obs.
Para a noite dos Prêmios César, o Oscar francês, o filme recebeu mísera vaga: melhor realização de diretor estreante. Mas perdeu o troféu para o denso “Cão de Caça”, de Jean-Baptiste Durand. Nem Catherine Deneuve, que brilha na pele da primeira-dama ignorada por Monsieur, le président, foi lembrada pela Academia Francesa.
A trama de “Bernadette” começa, claro, no Palácio do Eliseu. Depois de ajudar o marido na campanha que o levou ao cargo máximo da política francesa, a primeira-dama imagina que será reconhecida e festejada. Mas acontece o oposto. Seus esforços realizados junto aos moradores (sem glamour) do Departamento de Corrèze, região natal do presidente, nada significam. Para agravar, a sexagenária primeira-dama é considerada muito antiquada. Ela resolve, então, construir sua vingança. Que consiste em transformar-se em figura pública e respeitada. Para tanto, contará com o providencial auxílio de seu conselheiro pessoal, Bernard Niquet (o ótimo Denis Podalydès).
Quando o presidente Chirac, interpretado com traços caricaturais por Michel Vuillermoz, der por si, verá sua opaca consorte transformada na queridinha da França.
Para simbolizar a “volta por cima”, o “patinho feio” receberá a primeira-dama dos EUA, Hillary Clinton, e juntas causarão imenso frisson midiático. O presidente Chirac só saberá do encontro pela TV. O filme arrancará risos brincando — com ajuda de efeitos especiais — com o encontro de Bernadette-Deneuve com a verdadeira Senhora Bill Clinton.
Outros personagens reais aparecerão na inofensiva comédia de Léa Domenach representados com imensa semelhança (caso do estilista Karl Lagerfeld, que veste a primeira-dama) ou sem nenhuma semelhança (caso de Laurent Stocker, na pele de Nicolas Sarkozy). O futuro presidente da França, marido da modelo e atriz Carla Bruni, será visto com pitadas (e cutucadas) de humor. Madame Chirac, que não nutre nenhuma simpatia por ele, acabará, por pragmatismo, mostrando o quão fluidas são as relações políticas (no mundo real).
Em suas entrevistas sobre sua comédia, feminista e despolitizada, Léa Domenach contou que o pai, jornalista político, tornou-se especialista nos Anos Chirac. Natural, portanto, que ela escolhesse a mulher do presidente, embora a conhecesse pouco, como tema de seu filme de estreia.
O interesse da cineasta se tornaria mais sólido quando ela se deparasse com o documentário “Bernadette Chirac, Memória de uma Mulher Livre”, de Anne Barrère. Gostou tanto, que transformou a documentarista em sua consultora.
Para Léa Domenach, de 41 anos, a vida de Bernadette Chirac “se assemelha à de muitas mulheres, que são tão preparadas quanto seus maridos”, mas “acabam se retirando para deixar todo o espaço para eles”. Frente a tal constatação, ela resolveu adotar o ângulo da “revanche”.
Ao assinar o roteiro (em parceria com Clémence Dargent), a atriz-cineasta tomou todas as liberdades ficcionais desejadas. E externou seu orgulho por ter criado papel de protagonista para uma mulher já sexagenária.
Quando Catherine Deneuve, já beirando os 80 (que completou em 23 de outubro do ano passado) disse sim, Domenach conquistou seu maior trunfo. Quem resiste ao charme da estrela de Jacques Demy, Polanski, Buñuel, Truffaut e Techiné?
Só brutos e insensíveis.
Bernardette – A Mulher do Presidente | Bernardette
França, 2023, 95 minutos
Direção: Léa Domenach
Elenco: Catherine Deneuve, Denis Podalydès, Michel Vuillermoz, Sara Giraudeau, Barbara Schulz, Maud Wyler, François Vincentelli, Lionel Abelanski, Jacky Nercessian, Olivier Breitman, Laurent Stocker
Roteiro: Clémence Dargent e Léa Domenach
Fotografia: Elin Kirschfink
Trilha sonora: Anne-Sophie Versnaeyen
Direção de arte: Jean-Marc Tran Tan Ba
Montagem: Christel Dewynte
Distribuição: Imovision