“Cem Anos de Solidão”, notável série Netflix, parte do temor ao “monstro biológico” e chega à “monstruosidade política”
Por Maria do Rosário Caetano
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.
“Macondo era então uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídas na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”.
Esta é a abertura do livro “Cem Anos de Solidão”, que Gabriel García Márquez, o Gabo, publicou em sua língua materna em 1967, e que foi editado no Brasil, pela Editora Sabiá, um ano depois. É considerada, por muitos e sábios, uma das mais belas introduções já escritas por um ficcionista para seduzir seu leitor e motivá-lo a seguir em frente.
Nada mais natural, portanto, que a série “Cem Anos de Solidão” — roteirizada por José Rivera e parceiras e dirigida pela dupla Laura Mora e Alex García Lopez — abrisse com essa evocação de um pelotão de fuzilamento e com o primeiro contato de um menino com o gelo.
Já a sintética descrição do povoado de Macondo, próximo de rio cujas pedras brancas lembravam um ovo pré-histórico, não será enunciada pelo narrador onisciente (voz de Jesus Reyes). Será mostrada em imagens épicas, em todos os capítulos dessa série que, aos poucos, vai conquistando novos espectadores. E que já encontrou quem a tenha na conta de “a melhor do ano que se encerra”.
A primeira temporada de “Cem Anos de Solidão”, composta de oito capítulos, está disponibilizada, por inteiro, na Netflix. A segunda temporada, com os oito derradeiros episódios, está prevista para 2025.
A trama gira em torno dos primos José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, que se casam para desespero da mãe da moça, temerosa de que ela gere rebentos deformados. Um dos filhos — nascerão todos perfeitos na conformação física — se destacará na trama. Aureliano Buendía (Claudio Cataño), rapaz pacato, propenso à premonição, acabará se transformando em coronel rebelde, que se envolverá em dezenas de guerras revolucionárias.
A mãe de Úrsula temia que o casamento intrafamiliar gerasse um monstro biológico. Um neto com rabo de iguana ou porco. O que Gabo mostrará em seu magistral romance, é que não nascerão crianças monstruosas. Ao final da primeira temporada, conheceremos outro tipo de “monstruosidade”, a dos políticos. Homens que, sob a bandeira do Liberalismo ou do Conservadorismo, se transmutarão, de posse do poder, em tiranos e exploradores do povo.
Os filhos do casal Buendía nascerão perfeitos, sem rabo de porco e deformações assemelhadas. Isso, porém, não quer dizer que estarão livres de dores e sofrimentos profundos. Alguns deles serão atraídos pela “monstruosidade política”.
Destino trágico terá, também, o velho patriarca, José Arcádio, depois de envolver-se com práticas da Alquimia, aprendidas com o cigano Melquíades. Ele acabará louco de pedra e amarrado ao tronco de frondosa árvore plantada no quintal do imenso casarão dos Buendía.
Como Gabo foi nome estelar do chamado Realismo Mágico e produziu, com “Cem Anos de Solidão”, sua obra maestra, somos obrigados a lembrar que ele tinha visão peculiar da presença da magia em suas tramas. Influenciado por ideias literárias do cubano Alejo Carpentier (1904-1980), o colombiano fazia questão de separar o Realismo Mágico, de origem e expressão latino-americana, do Realismo Fantástico (ou Surrealismo), europeu por excelência.
No prefácio do livro “O Reino deste Mundo” (1949), Carpentier teorizou sobre o assunto. Contou que, em suas andanças pelo Haiti (a Revolução oitocentista de escravizados do país centro-americano é tema de seu “Reino”), manteve contato diário com a gente haitiana e “com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhosa”. “Eu pisava terra onde milhares de homens ansiosos pela liberdade acreditaram nos poderes licantrópicos de Mackandal, a tal ponto, que essa fé produziu um milagres no dia da sua execução”.
A cada passo, Carpentier “encontrava a Realidade Maravilhosa”. E concluía que “essa presença e vigência da Realidade Maravilhosa não era privilégio único do Haiti, senão um patrimônio de toda a América Latina, onde ainda não se concluiu, por exemplo, um inventário de cosmogonias”. Para, depois de novas reflexões, concluir: “Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da Realidade Maravilhosa?”
Gabo, que escutou dos avós, que o criaram, histórias extraordinárias “acontecidas” na Colômbia caribenha, impregnou seu imaginário com ideias semelhantes às de Carpentier. As histórias que fertilizaram sua narrativa (e seu livro mais famoso) podem parecer a nós (ao menos aos racionais ou agnósticos) espantosas, mágicas. O colombiano, porém, as tomava como parte da vida cotidiana de seus personagens.
Quem assistir à série verá berços suspensos no ar (“propriedade da matéria” dirá o alquimista José Arcádio Buendía), chuva de pétalas amarelas cobrindo Macondo (“Tantas Flores Caíram do Céu”), uma menina (depois moça feita), Rebeca, comendo fartas porções de terra, pessoas levitando, como o padre do povoado. Mas a pegada da série produzida pelos irmãos Gonzalo García Bacha e Rodrigo García, filhos de Gabo, é mais realista que mágica. Assim como o livro.
O escritor colombiano quis traçar um politizado e alucinante painel de seu país, historicamente dilacerado por facções envolvidas em guerra permanente. E o fez ao longo de 100 anos de solidão, desamparo e conflitos fratricidas. Guerras que deixaram trágico rastro de sangue no país sul-americano. Semelhante ao que, como um rubro e serpenteante fio de Ariadne, leva a matriarca Úrsula até o cadáver ensanguentado de um de seus filhos, o primogênito.
A segunda metade da primeira temporada centra sua ação nos sangrentos conflitos entre Conservadores e Liberais, estes com “exércitos” improvisados, que mobilizam adolescentes e crianças. Sim, meninos de dez anos empunham armas e lutam ao lado de adultos. Os Conservadores, no poder na maioria dos séculos, têm seus exércitos regulares, formados com jovens mestiços, que mal sabem que causa defendem.
Aliás, resulta impressionante a escolha do elenco de “Cem Anos de Solidão”, romance levado pela primeira vez ao audiovisual – e como só podia ser, em superprodução cuja primeira temporada dura 8 horas e 31 minutos (capítulos com mais de uma hora cada). E muito realista. Além de muito bem filmada (em especial as cenas épicas), cada segmento de “Cem Anos de Solidão” conta com atores carismáticos, morenos, mestiços e aliciantes. Ninguém tem pinta de galã de telenovela.
Dois belos atores, de fina estampa – o jovem José Arcádio Buendía (Marco González Ospina) e o seu filho Aureliano (na fase adulta, interpretado por Claudio Cataño) – são marcados por traços que os integram à paisagem humana da Colômbia miscigenada do final do século XIX e começos do XX.
Aureliano, o Buendía que enviúva de Remédios Moscote, a grande paixão de sua vida (morta ao tentar parir gêmeos), será marcado por olhos profundos e tristes, impressos em rosto arrematado por imenso bigodón. Depois, ao tornar-se rebelde e liderar os Liberais em guerras infinitas, veremos seu rosto duro e “metálico”.
Outro personagem de grande beleza (acrescida de densa carga erótica) é o de José Arcádio, o primogênito de Úrsula Iguarán e José Arcádio (haverá outros, de mesmo nome, em novas gerações dos Buendía, filhos legítimos ou bastardos). Arcádio, o primogênito, fugirá com os ciganos e deixará sua mãe em estado da mais profunda aflição. Deixará, também, um filho bastardo (com a prostituta Pilar Terneira, a esfuziante Viña Machado). O menino se chamará Arcádio, será professor e depois um tiranete de feitio napoleônico.
O primogênito regressará a Macondo como insana mistura de torpedo hormonal e homem bruto, que irá explorar pequenos lavradores e criadores de minúsculos rebanhos. Transformará radicalmente a vida sentimental da comedora de terra Rebeca (Laura Sofía Gruezo, a cantora Akima), amada pelo italiano Pietro Crespi (Ruggero Pasquarelli), que por sua vez objeto de alucinada paixão de Amaranta (Loren Sofía). Rivais eternas, a filha bastarda (Rebeca) e a filha legítima (Amaranta) vão enfrentar-se sem trégua.
Do elenco feminino, a presença mais aliciante é a da veterana Marleyda Soto, que interpreta a matriarca Úrsula Iguarán. Onipresente na trama, ela vai magnetizar nosso olhar em cada aparição. E formar dupla arrebatadora com o marido, o patriarca Buendía (Diego Vazquez), louco de pedra, amarrado a um castanheiro e usando o latim como idioma. Ao invés de transformar metais ordinários em ouro, segundo os tratados da Alquimia aprendida com o cigano Melquíades, ele transformará sua existência em martírio alucinatório. Carrega o remorso de ter matado homem que ousou duvidar de sua masculinidade, já que a jovem Úrsula não engravidava. E nem podia, pois dormia com um cinto de castidade, presente da mãe, aquela que temia ser avó de neto com rabo de iguana. Ou porco.
Melquíades, também, ganha representação nos corpos de dois atores formidáveis, Moreno Borja e Gino Montesinos. Eles têm presença secundária, se comparada à dos protagonistas Marleyda Soto, Claudio Cataño e Diego Vásquez. Mas suas aparições são inesquecíveis. E as sequências circenses protagonizadas pelos saltimbancos que visitam Macondo são, também, inesquecíveis. E fundamentais, pois será numa feira de variedades, promovida por eles, que o menino Aureliano Buendía conhecerá o gelo. Que o pai supusera ser diamante de imensas proporções.
Gabo, que escreveu dezenas de roteiros e cedeu quase todos os seus contos, novelas e romances aos mais diversos cineastas (Ripstein, Ruy Guerra, Tomas Gutierrez Alea, Francesco Rosi, Mike Newell), nunca vendeu os direitos autorais de “Cem Anos de Solidão” a nenhum produtor. Sabia que só magnatas hollywoodianos teriam cacife para transpor sua épica ao cinema. E que, na mão de um magnata estadunidense, seu livro corria o risco de transformar-se em pastiche comprimido em menos de três horas, quem sabe duas. E seria falado em inglês e interpretado por astros hollywoodianos.
Dez anos depois da morte do escritor, seus filhos aceitaram a proposta milionária da Netflix, mas estabeleceram parâmetros rigorosos. Idioma obrigatório: o espanhol com seu acento colombiano; atores do país natal do escritor, locações idem, ou seja, paisagens autênticas. E duração que impedisse resumo simplificador.
A Netflix aceitou todas as condições. E, somadas as duas temporadas, a épica dos Buendía deverá ultrapassar 16 horas de duração. E, o melhor de tudo, a poderosa plataforma de streaming não impediu nenhum tema polêmico. Estão lá suicídios, automutilações, incestos e união matrimonial de uma criança. Quando Aureliano se apaixona por Remédios Moscote (Cristal Aparício), ela é uma menina que brinca com bonecas. Os pais cederão a mão da filha, desde que o pretendente espere que ela tenha a primeira menstruação.
José Arcádio Buendía, o patriarca (veremos na lápide de seu túmulo), viveu de 1832 a 1902, existência marcada pela aventura e pela loucura. Gabriel García Márquez viveu de 1927 a 2014. Em 1982, a Academia Sueca lhe outorgou um mais que merecido Prêmio Nobel de Literatura. Como deixar sem esta láurea o mais transbordante e criativo dos narradores de Nossas Américas?
E há que se lembrar que resulta dantesco o painel da sangrenta Colômbia desenhado por Gabo. As primeira imagens da série mostram destroços de um mundo em decomposição. Cupins devoram livros, móveis, memórias. “Cem Anos de Solidão” e decadência.
Primeira Temporada:
. “Macondo” – 1h04′
. “É Como um Terremoto” – 59′
. “Um Daguerreótipo de Deus” – 1h08′
. “O Castanheiro” – 1h06′
. “Remédios Moscote” – 1h02′
. “Coronel Aureliano Buendía” – 1h03′
. “Arcádio e o Paraíso Liberal” – 1h05′
. “Tantas Flores Caíram do Céu” – 1h04′
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