Festival de Brasília apresenta longa da etnia Maxakali e curtas sobre Nêgo Bispo e Preto Sérgio

Foto: Equipe do longa “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” © Humberto Araújo

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

A terceira noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi dedicada aos povos indígenas e a dois afro-brasileiros insubmissos — o piauiense Nêgo Bispo e o pernambucano Preto Sérgio.

O longa-metragem indígena “Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá”, dirigido pelo casal Sueli e Isael Maxakali (e por Roberto Romero e Luisa Lanna), foi realizado na região de Teófilo Otoni-Minas Gerais, onde vive o povo Maxakali. Em especial, sua realizadora e personagem-chave, a arte-educadora (e doutora por notório saber pela UFMG), Sueli Maxakali.

O filme teve locações, também, em outros três territórios, todos no Mato Grosso do Sul (região de Dourados) — Panambi Lagoa Rica, Guyra Kambiy e Laranjeira Ñanderu, habitadas por Guarani-Kaiowá.

No início da narrativa, de base documental, Sueli, que atua na Aldeia Escola Floresta, evoca os anos da ditadura militar, quando seu pai, Luís Kaiowá, foi retirado da aldeia onde vivia e transferido para outro lugar. Ela era um bebê de seis meses e sua irmã, Maísa, tinha cinco anos. Por largo período, Luís prestou serviços, como tratorista, aos militares, sem a devida remuneração. Ficou distante das filhas por mais de 40 anos.

Sueli chegou a manter contatos telefônicos com o pai, mas o encontro só se concretizaria no processo de realização do filme. No palco do Cine Brasília, na apresentação do longa-metragem (o segundo vindo de Minas Gerais), a cineasta e arte-educadora evocou o filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, por ela assistido. Lembrou  as consequências do assassinato do ex-deputado Rubens Paiva no seio de sua família, em especial, na trajetória de sua viúva, Eunice. Para, em seguida, lembrar que “nós, os Maxakali, ainda estamos aqui”.

No debate do filme, que disputa o Troféu Candango com outros cinco longas-metragens, Sueli voltou a citar o longa de WSJr para lembrar que os povos indígenas também foram vítimas do arbítrio militar, foram separados ou submetidos a remoções forçadas ou a trabalho-escravo.

No início de “Meu Pai, Kaiowá”, a cineasta indígena e seus parceiros registram “foto de família” (em movimento) a ser mostrada a Luís Kaoiwá, que vive no Mato Grosso do Sul. Os parentes vão compondo o quadro. Adultos, jovens e crianças se unem. Dois dos diretores — Suely e o marido Isael — também compõem a imagem coletiva.

Duas jovens cineastas — Michele e Dani Kaiowá, que assinam a direção de fotografia de “Meu Pai” com Alexandre Maxakali e Bernard Machado — procuraram Luís, muito respeitado na comunidade Guarani-Kaiowá, para registrar o que ele guardara, na memória, dos anos da ditadura militar.

“Não foi fácil localizá-lo” — testemunharam — “pois ele vai a muitos lugares levando suas rezas e cantos”. Depois de muita insistência, as documentaristas conseguiram convencê-lo a relembrar a separação das filhas pequenas, as únicas mulheres, já que ele teria cinco filhos homens.

Sueli, por sua vez, contou que, ao encontrar o pai, ouviu pedido dele — que ficassem a sós (ele, ela e Isael). Ou seja, sem a presença da equipe de filmagem e de suas câmeras.

“Durante a pandemia” — relembrou a cineasta — “meu marido Isael teve problemas na vista. Meu pai nos ensinou rezas que nos ajudaram a resolver o problema”. Isael, por sua vez, contou que o sogro (que preservou na memória a língua e os cantos dos Maxakali) gostou muito de ouvi-lo entoando o Canto do Gavião.

“Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá” não se constrói como um filme de busca da figura paterna (como os paradigmáticos “Diário de uma Busca”, de Flávia Castro, e “Nada sobre meu Pai”, de Susanna Lira), mas sim como um registro fragmentado das lutas dos povos indígenas (em especial, os Tikmū’ūn, ou Maxacali, e os Kaiowá). Lutas em defesa de seus territórios espoliados.

O filme nos mostrará, claro, os malefícios da “interferência branca” na vida dos povos indígenas. Mas, nesse convívio entre indígenas e brancos, surge a estimulante presença do cinema, cada vez mais significativa no cotidiano das aldeias. Visto como importante instrumento de comunicação, o audiovisual indígena tem permitido às várias etnias, aquelas que resistiram ao etnocídio, expor seu ponto de vista. Ou seja, estabelecer contraposição ao racismo, que impregnou tantas representações cinematográficas (vide os faroestes estadunidenses, difundidos planetariamente).

Luís Kaiowá não foi recrutado pela famigerada GRIN (Guarda Rural Indígena), concebida e comandada pelo Capitão Pinheiro, parente do então governador de Minas, Israel Pinheiro. Esse momento trágico da relação dos militares com os povos indígenas (alguns deles foram instruídos a executar táticas de tortura, como o pau-de-arara) está registrada no filme “GRIN”, realizado em 2016, pelos cineastas Roney Freitas e Isael Maxakali.

O núcleo criativo que une Sueli e Isael a colegas brancos soma títulos como “Yãmiyhex: as Mulheres-Espírito” (2019), “Nuhu Yãgmu Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!” (2020) e “Yãy Tu Nuñãhã Payexop: Encontro de Pajés” (2021), exibidos em festivais nacionais e internacionais.

Os curtas de Dácia Ibiapina e Lia Letícia são — como “Meu Pai, Kaiowá” — documentários que dão voz a grupos e pessoas, a quem a história oficial atribuiu papeis secundários (ou invisíveis).

O protagonista de “Confluências” é Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, “intelectual dos saberes ancestrais”. Nascido no Piauí, como Dácia Ibiapina, ele tornou-se presença marcante em palestras universitárias, e, durante a pandemia, em “lives” que espalharam seus múltiplos saberes.

Nêgo Bispo trabalhou, em suas vivências no Quilombo do Saco do Curtume, conceitos como o da “contracolonização” e das “confluências”. E renegou a morte, vista pelo homem branco como o fim definitivo. Para ele, não há “começo, meio e fim”. Mas sim, “começo, meio e começo”.

Nos livros que publicou — “Quilombos, Modos e Significados” (2007), “Colonização, Quilombos: Modos e Significados” (2025) e “Terra Dá, a Terra Quer” (2023) — Nêgo Bispo desenvolveu ideias fertilizadoras. O mesmo estado das coisas se processa nas conversas que ele mantém com parentes e amigos.

O intelectual quilombola lembra que “não se tem História com uma só versão”. Quando isso acontece, o que temos “é ficção”. Para termos História, “faz-se necessário termos várias versões”.

Que ninguém espere, antes de ver o filme, uma cinebiografia de Nêgo Bispo resumida em 26 minutos. O que Dácia e sua enxuta equipe fazem é registrar momento especial na vida do pensador quilombola — sua festa de 60 anos.

Cercado de amigos e parentes e em comunhão com a equipe (até dança forró com a cineasta), Nêgo Bispo expõe suas ideias com simplicidade cristalina, pede ao filho Sabino para cantar “Sapato 36”, de Raul Seixas, composição na qual vê muita sabedoria, bebe aguardente com os amigos, exalta a vida em comunidade.

A festa natalícia de Nêgo Bispo aconteceu em 2019. Dácia regressou mais uma vez ao Piauí para novas gravações. Aí veio a pandemia. E em dezembro de 2023, poucos dias antes de completar 64 anos, o líder quilombola fez sua passagem.

Dácia e sua montadora, Cristina Amaral, definiram juntas o caminho que o filme tomaria. A festa dos 60 anos nuclearia a narrativa e buscariam revelar afetos e sensações. Não repetiriam o que já estava disponível nos livros de Nêgo Bispo (inclusive no inédito “O Feitiço e o Milagre”), nem nas “lives”.

“Mar de Dentro”, vindo de Pernambuco, é um documentário que dialoga com a performance. Sua diretora, a artista visual Lia Letícia, soma, em sintéticos oito minutos, fragmentos da vida de um rebelde, Preto Sérgio, morador da Ilha de Fernando de Noronha. Ele enfrentou o cárcere e lutou contra os poderosos.

A terça-feira, quarto dia da quinquagésima-sétima edição do Festival de Brasília, foi marcada pela exibição de dois curtas (“Caravana da Coragem” e “A sua Imagem na minha Caixa de Correio”) e do longa-metragem “Nada”, de Adriano Guimarães. Os três integram a Mostra Brasília, que há 26 anos, distribui o Prêmio Assembleia Legislativa do DF aos melhores da produção candanga.

Imenso público prestigiou a sessão na Sala Vladimir Carvalho, parte constitutiva do Cine Brasília. A estreia cinematográfica de Adriano Guimarães, força renovadora do teatro brasiliense em parceria com o irmão Fernando, causou boa impressão.

O filme, protagonizado por Ana (Bel Kowarick), evoca os dramas de Ingmar Bergman. Ao saber do grave estado de saúde da irmã Tereza (Denise Stultz), de quem mantinha distância, Ana regressará, a contragosto, à fazenda onde viveu sua infância. No começo, irrita-se com tudo que a cerca. A dificuldade de conseguir sinal para o celular, o silêncio da irmã, as acomodações e, principalmente, os mistérios que cercam moderna torre digital, plantada nas cercanias da propriedade familiar.

Com calorosa fotografia de André Carvalheira, a narrativa se constrói ao longo de 92 minutos, de forma misteriosa e envolvente. Uma estreia promissora. Aguardemos os próximos trabalhos de Adriano Guimarães.

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