“A Semente do Fruto Sagrado” e “Meu Bolo Favorito” mostram a vida sob o governo teocrático do Irã
Por Maria do Rosário Caetano
Dois filmes iranianos chegam aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 9 de janeiro, em plena temporada de estreias de produções que disputam o Oscar. O primeiro é “A Semente do Fruto Sagrado” (foto acima), de Mohammad Rasoulof, que deve integrar a lista de candidatos a melhor filme internacional. O segundo, “Meu Bolo Favorito”, da dupla Maryam Moghhadam e Behtash Sanaeeha, não está na corrida pela estatueta dourada. Mas busca seu público no circuito de arte com história sensível e supreendente.
“A Semente do Fruto Sagrado”, Prêmio do Júri em Cannes (embora muitos o quisessem como detentor da Palma de Ouro, no lugar da comédia “Anora”, de San Baker), chegou ao Oscar sob bandeira alemã. Tal nacionalidade se fez possível por motivos financeiros (Alemanha e França ajudaram a produzi-lo) e políticos (o cineasta, perseguido, asilou-se no território germânico).
Quem for assistir ao “Fruto Sagrado” irá deparar-se com narrativa 100% iraniana. História, idioma (o farsi), atores, técnicos e diretor impregnados pela milenar cultura do país do Oriente Médio.
Mohammad Rasoulof, premiado no Festival de Berlim com seu filme anterior (“Não Há Mal Algum”, 2020), realizou “A Semente do Fruto Sagrado” de forma clandestina. Ou seja, sem permissão dos organismos que comandam o cinema iraniano. Isso só foi possível porque seu filme se passa, quase inteiro, dentro de um apartamento (num verdadeiro huis clos) e as imagens dos fatos políticos (a rebelião “Mulher, Vida, Liberdade”) foram registradas com celulares por seus próprios participantes. E captados na internet.
Antes de mergulharmos na densa e complexa história de uma família iraniana, que tem como pano de fundo a rebelião ocorrida há exatos dois anos (portanto no calor da hora), uma epígrafe justificará o título original (“A Semente do Ficus Sagrado”).
Diz o enigmático texto introdutório: “Ficus Religiosa é uma árvore com ciclo de vida incomum. Suas sementes, contidas nas fezes de aves, caem sobre outras árvores. Brotam, então, raízes aéreas, que crescem em direção ao solo. Estes galhos se enrolarão na árvore-hospedeira até estrangulá-la. Finalmente, o Ficus Sagrado se manterá por si mesmo”.
Essa epígrafe simboliza os tentáculos do poder teocrático?? Ou a resistência de quem luta por liberdade? A questão fica colocada para o público, que, durante quase três horas, assistirá a esse drama político-social (com alta dosagem de suspense), filmado, quase inteiro, na residência de Iman, um homem de meia-idade, recém-promovido a juiz de instrução. Ele vive com a esposa (Najmeh) e duas filhas (Rezvan e Sana). Lá fora, o país ferve com a rebelião de jovens indignados com a morte de moça que não estaria usando a hijab.
Ao conquistar cargo na hierarquia jurídica do Estado (o Irã é uma teocracia liderada por aiatolás), Iman irá se deparar com série rigorosa de exigências morais. A pior delas: autorizar condenações à pena de morte sem levar em conta os autos do processo.
Disposto a progredir na carreira, ele entrará em pânico ao deduzir que suas filhas estão envolvidas com o movimento contestório (elas abrigam colega ferida durante as manifestações). Iman será tomado por estado de absoluta tensão. A esposa tentará intermediar a situação, agindo como ponto de equilíbrio. Mas o quadro só faz agravar-se, pois a arma pessoal do juiz desaparece de forma misteriosa.
Dali em diante, Iman entrará em estado de paranóia. Desconfiará das filhas e da esposa, a ponto de convidar um amigo para submetê-las a procedimentos aterradores (inclusive interrogatório que usa a psicoterapia como instrumento de investigação).
O poder do patriarca só fará crescer. Ele assumirá o controle de cada movimento das três mulheres, pessoas a quem ama. Sua residência transformar-se-á num tribunal de exceção.
“A Semente do Fruto Proibido” nos lembra os dramas morais que fizeram a fama de Asghar Farhadi (“A Separação”, “O Apartamento”, “Um Herói”). Hoje, porém, esses dramas estão sendo feitos majoritariamente por cineastas exilados em seu próprio país. Ou no exterior, caso do próprio Rasoulof, que encontrou abrigo na Alemanha.
Já “Meu Bolo Favorito” é fruto do labor da dupla Maryam Moghhadam e Behtash Sanaeeha, autora do denso e envolvente drama “O Perdão” (2020). O casal (na vida civil e profissional) vive, por sua vez, em espécie de “exílio doméstico”.
O filme, que conquistou o Prêmio Fipresci (da Crítica Internacional) e o do Júri Ecumênino, no Festival de Berlim, se passa, também, entre quatro paredes, embora conte com sequências realizadas em espaços externos (avenidas, restaurante de aposentados etc.). Mas sua parte mais substantiva é mesmo ambientada na bela casa da viúva Mahim (Lily Farhadpour).
A trama parece simples, mas só à primeira vista. Mahim, já entrada nos anos, vive sozinha (a filha reside no exterior e tem pouco tempo para dedicar à mãe). Só resta à viúva divertir-se quando recebe amigas, também idosas, em sua casa, para jogar conversa fora.
Mahim não deseja encerrar sua existência com tão poucos momentos de descontração e alegria. Quer ser livre, dona do próprio destino. Um dia, no restaurante dos aposentados, ouve conversa entre homens, em mesa próxima, e descobre que um deles, motorista de táxi, também vive sozinho. Resolve abordá-lo. Ele, Faramarz (Esmail Mehrabi), aceitará o convite para conhecer a espaçosa casa da cativante e desenvolta senhora.
Anna Muylaert, quando realizou seu primeiro longa-metragem (“Durval Discos”, 2003), resolveu dividir sua trama em “Lado A” (a parte alegre, com passeio de charrete em movimentada rua da metrópole paulistana) e a “Parte B” (inesperada e com pitadas surrealistas). “Meu Bolo Favorito” tem uma primeira parte encantadora. O chá da tarde que reúne Mahim e suas amigas constrói-se com diálogos divertidíssimos. Sintéticos e muito bem-humorados. A ida dela ao restaurante, onde conhecerá o Sr. Faramarz, nos seduz. Torcemos para que encontre o par que tanto deseja.
Quando os dois idosos se encerram entre as quatro paredes da casa da viúva (depois de passar por uma farmácia), fatos simples continuarão nos cativando. Inclusive pequenas transgressões. Não se deve beber num lar iraniano. Pois a viúva tem um garrafão de vinho artesanal, que ganhou de presente de uma amiga. Mahim e Faramarz irão sorvê-lo com vontade. E ela, por fim, irá preparar receita de seu bolo preferido (daí o título do filme) para proporcionar prazer gastronômico ao novo parceiro.
Quando o Lado B do sintético drama romântico, digamos assim, materializar-se na tela, a surpresa será inevitável. Não que o filme se propusesse a ser apenas uma história de amor na terceira idade. Aliás, algumas das amigas de Mahim provocam-se umas às outras e contam piadas durante o animado chá da tarde. Lembram até a necessidade de fraldas geriátricas para aqueles que se encontram em faixa etária avançada. A delas.
No trajeto para casa, Mahim verá uma adolescente de cabelos coloridos ser detida pela Guarda de Costumes iraniana. Seu crime: deixar algumas mechas expostas fora do véu. E a senhora idosa se revoltará com o que vê. Ou seja, com a repressão descabida.
Sutilmente, o filme de nome tão doméstico nos oferece indícios do que é a vida num país regido por rigorosos padrões morais, advindos de ordem sedimentada na religião.
A Semente do Fruto Sagrado
Alemanha, França, Irã, 2024, 167 minutos
Direção e roteiro: Mohammad Rasoulof
Elenco: Mahsa Rostami, Setareh Maleki, Niousha Akhshi, Misagh Zare, Reza Akhlaghirad
Idioma: farsi
Distribuição: Mares Filmes
Meu Bolo Favorito | Keyke Mahboobe Man
Irã, França, Suécia, Alemanha, 2024, 96 minutos
Direção e roteiro: Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha
Elenco: Lily Farhadpour, Esmail Mehrabi
Fotografia: Mohammad Haddadi
Música: Henrik Nagy
Edição: Ata Mehrad, Behtash Sanaeeha, Ricardo Saraiva
Idioma: farsi
Distribuição: Imovision