Debate do pernambucano “A Primavera”, na Mostra Tiradentes, lembrou a fervura de “Vazante” no Festival de Brasília

Foto: Debate de “A Primavera” © Leo Fontes/Universo Produção

Por Maria do Rosário Caetano, de Tiradentes (MG)

Um filme, o pernambucano “A Primavera”, de Sérgio Bivar e Daniel Aragão — exibido no segmento Olhos Livres, revigorado pela Mostra de Cinema de Tiradentes —, causou a primeira e aguerrida polêmica do festival mineiro. Que, este ano, mostra empenho em ampliar seu alcance artístico e social. Ou seja, além de filmes disruptivos e de baixíssimo orçamento, ser vitrine de obras de realizadores experientes e, sem discriminação, veteranos.

“A Primavera” foi recebido com palmas protocolares por um Cine Tenda que começou lotado, mas perdeu parte de seu público ao longo da projeção. As defecções devem ser debitadas na conta do codiretor, fotógrafo-câmera e montador do filme, o controverso Daniel Aragão.

O histórico do cineasta, diretor de fotografia, montador e dândi recifense é marcado pela controvérsia. Seu longa de estreia, o estiloso “Boa Sorte, meu Amor” (2012), rendeu a ele o prêmio de melhor direção no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e foi selecionado pelo Festival de Locarno. Que lhe atribuiu o Prêmio do Júri Jovem. Dali em diante, com o ego inflado, Aragão começou a “causar”. Aliou-se ao colega Josias Teófilo e juntos fizeram o documentário “Jardim das Aflições” (2017), sobre o dito “filósofo” autodidata Olavo de Carvalho, então no auge como “ideólogo da extrema-direita” brasileira. E guru de Jair Bolsonaro.

O cinema pernambucano, que vivia sua segunda e seminal floração moderna (a primeira com a “Trupe Baile Perfumado” e a segunda com “O Som ao Redor”), entrou em transe. Dois cineastas do estado (Josias como diretor e Aragão como diretor de fotografia) usavam o cinema para promover forças golpistas, retrógradas e obscurantistas.

O próprio Aragão lembrou, no convulsivo debate da Mostra Tiradentes, o que teria se passado no Aeroporto de Lisboa. “Encontrei Kleber Mendonça e ele questionou o nosso trabalho. Discutimos, nos desentendemos”. Dali em diante, as redes sociais se tornaram palco de artilharia pesada (e escrita). Aragão deixou Lisboa rumo aos EUA e escreveu textos sintonizados com as forças triunfantes no golpe parlamentar de 2016.

Mendonça, que assumiria o proscênio com longas de grande visibilidade em festivais e junto ao público (além de “O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”) não deixou por menos. Defendeu as forças progressistas e a arte livre de ideólogos assemelhados a Olavo de Carvalho.

Passada quase uma década do golpe parlamentar e de suas nefastas consequências, Aragão tenta se defender com estranho argumento. Sofrera um “surto psicológico”. Quiçá psicótico. E mais: “fotografara um filme sobre Olavo de Carvalho, porque necessitava de dinheiro para pagar seus boletos” e — evocou outro atenuante — “sem realmente conhecer suas ideias”. Apostava “no futuro”, fotografando um documentário que seria revelador daqueles conturbados anos.

O cineasta e curador Eduardo Valente retrucou as colocações de Aragão lembrando que este “escrevera longos textos defendendo ideias olavistas”, durante o embate que travou com Kleber Mendonça Filho. Com seu ar de dândi e rosto escondido atrás de longos cabelos, o codiretor de “A Primavera” esquivou-se: “eu não apoiei Bolsonaro, nem o que veio com ele”. Não convenceu aos que questionaram, com vigor, suas ideias e seu novo longa-metragem.

O debate, que uniu os dois diretores e dois debatedores (Bernardo Oliveira e Bárbara Bello), já começou fervendo. Bernardo lembrou a trajetória de Aragão (a ruptura político-estética com cineastas pernambucanos de sua geração) e questionou postulados do filme. Em especial, “a postura conservadora” do protagonista, Jeová (Luiz Aquino), um poeta marginal que se coloca contra o apoio do Estado à cultura.

Bárbara aumentaria a artilharia ao definir como “publicitária” a fotografia do filme. Para ela, um “verniz publicitário” serviu de invólucro a uma narrativa que finge ser “delirante”, mas caminha para a “estabilidade prazerosa”.

Aragão, prolixo e desarticulado, não soube defender seu trabalho. Recorreu inúmeras vezes à “câmara soviética usada por Sergei Urushev”, em “Soy Cuba”, e por Tarkovski em seus filmes”. Usá-la, como ele o fez, funcionaria como panaceia, capaz de tudo justificar.

O pernambucano abandonava o núcleo central dos questionamentos dos debatedores, insistindo em recorrer a confusas postulações, salpicadas de referências cinematográficas (a Haskel Wexler, Nicolas Roeg, Orson Welles), paixão pela dança e pelo cancioneiro norte-americano. Ele tem o vício de colocar palavras, títulos e expressões em inglês a cada uma de suas intervenções.

Aragão garantiu ter adotado “perigosa e arriscada câmara na mão” em busca de fotografia documental (levara “três tombos e correra o risco de ser assaltado”). Garantiu, ainda, que ele e Bivar não haviam “explorado a imagem de moradores de rua do centro do Recife”. Assegurou, convicto, que “todos eram realmente moradores de rua” e haviam “autorizado suas participações no filme”. Colocou no “pacote da autenticidade documental” até a sequência mais alegórica (e construída) das quase duas horas de narrativa. Um homem, vestido como “um nobre” de aparência caridosa, doa uma marmita a morador de rua (que será envenenado-morto pelo alimento).

Outra doideira desinformada dita pelo sôfrego Aragão (Bivar, tímido e algo perplexo, mal conseguia articular ideias básicas) se apegou a conceito dos mais questionáveis — o da hegemonia da “branquitude armada”.

E o que seria isso? Ele tentou explicar: “filmes em que armas de fogo proliferam à moda do cinema de ação, tipo Cangaço Novo e assemelhados”. Depois de garantir que não há armas de fogo em seus filmes (nos conhecidos, que realizou no Brasil, e nos desconhecidos, que realizou nos EUA e Portugal), Aragão mostrou o quanto anda desinformado. Assegurou que não há protagonistas negros no cinema brasileiro contemporâneo. Decerto ele desconhece os filmes da mineira Filmes de Plástico (André, Gabito e Maurílio), dos diretores Joel Zito Araújo, Jeferson De, Luciano Vidigal, Glenda Nicácio e Ary Rosa, para ficar nos principais.

Feitas essas considerações, fruto de fragmentos do debate realizado na Mostra Tiradentes, vale ponderar que “A Primavera” é um filme que tem significativas qualidades. A maior delas está na organicidade originária da mistura de poesia (escrita e oralizada) e cinema. Poucas vezes um filme brasileiro representou tão bem a simbiose entre versos e imagens.

Mérito dos diretores? Também. Mas principalmente dos poetas-atores, que se entregam de corpo e alma ao filme. O protagonista Luiz Aquino é uma força da natureza. Bonito, carismático, convincente. Marlon Silva brilhou em “A Primavera” e na apaixonada defesa oral do filme (durante o fogo cruzado tiradentino). Se Aragão e Bivar tivessem o mesmo domínio da linguagem do poeta pernambucano, não teriam sido nocauteados como o foram no debate mineiro.

Um gesto de Aragão há que ser lembrado. Quando o ego não o impeliu a ser a (única) voz e estrela criativa do filme, ele conseguiu ser “generoso” e cedeu a palavra a três integrantes afro-brasileiros da equipe — Luiz Aquino, Marlon Silva e Ghilherme Mileron (sim, com dois “h”). Que narrariam a experiência vivida, as contribuições que deram ao roteiro (de “60 páginas”) do estreante Sérgio Bivar (parente do político Luciano Bivar????). E, também, o prazer de ver o filme pronto e a valorização de suas criações poéticas e existenciais.

Presente ao debate, perguntei a Bivar se ele desconhecia as contaminações estético-políticas que a presença de Daniel Aragão inevitavelmente traria ao filme. Como bem observara a crítica mineira Clara Pellegrini, em sua intervenção, era (e continua sendo) muito difícil separar o realizador de sua obra.

Marinheiro de primeira viagem em debates estético-políticos de Tiradentes, Bivar, escritor, empresário e, agora, diretor de cinema e roteirista, deu resposta insatisfatória. Candidamente confessou estar, só agora, percebendo a dimensão de seu ato. Mas garantiu ter tido ótima experiência com o mercurial Aragão. “Tenho certeza do acerto de nossa parceria”, pois “Daniel (Aragão) foi muito companheiro, amigo, me ajudou a coordenar o filme em trabalho conjunto com Ghuilherme (Mileron) e todos os atores”.

O tempo da troca de ideias já estava esgotado. Os debatedores Bernardo e Bárbara nem puderam mostrar trechos de “A Primavera”, que haviam selecionado para estimular a discussão. E os dois diretores e sua equipe, incluindo a atriz-protagonista, Eduarda Rocha, intérprete da bela garota de programa Maria Susanne, e sua “colega de ofício” Ruibene Sales, teriam muito que rebolar para enfrentar outra crítica pesada ao filme — “a exploração do corpo feminino”.

Em duas sequências de “A Primavera”, a câmara de Aragão, intencionalmente tarada, namora os corpos das garotas de programa, que se refrescam na praia. Em outra, dá close nas nádegas da protagonista. Wesley Pereira de Castro, irreverente e elétrico protagonista e codiretor de filme que concorre na Mostra Aurora (informações abaixo) assegura ter conseguido contar cada estria resultante do balançar da jovem.

Essa “Primavera” pernambucana ainda vai render muito debate. Tomara que menos polarizados e com os diretores mais preparados e municiados com argumentos, ideias. Se é que Daniel Aragão consegue se movimentar nesse terreno.

Passemos, pois e rapidamente, ao sergipano “Um Minuto É uma Eternidade para Quem Está Sofrendo”, do recém-citado Wesley Pereira de Castro em parceria com Fábio Rogério. O filme teve boa recepção da plateia, arrancou muitas risadas e aplausos entusiasmados. Em especial, do público homoafetivo, que estabeleceu fina sintonia com este sintético longa-metragem (de apenas 61 minutos).

“Um Minuto É uma Eternidade” foi classificado por seus diretores como “documentário”. O filme resulta de irreverente registro de performance de seu protagonista e codiretor, o bem-humorado e imprevisível Wesley, de 42 anos, bela estampa, voz acelerada e energia de adolescente. Graduado e pós-graduado pela Universidade Federal de Sergipe, ele é pesquisador, crítico de cinema, servidor da universidade que o formou e consumidor voraz de livros e filmes.

O espectador acompanhará a narcísica (às vezes melancólica) performance de Wesley durante a pandemia. Fechado em casa, com duas parentes, ele se divide entre o interior do lar e o quintal, povoado de galinhas, pato, um gato e um cachorro. Toma banho ao ar livre, faz comentários irreverentes, conta que dedica a ele mesmo os livros que compra, mostra as capas dos vídeos aos quais assistirá. Um deles, é o formidável “Era uma Vez na Anatólia”, do turco Nuri Bilge Ceylan. Dos livros, destaca “Cinema: A Imagem-Tempo”, de Gilles Deleuze, no qual consumiu R$59,90, valor alto para suas reduzidas reservas financeiras.

Além de suas atividades intelectuais, Wesley dedica-se aos prazeres do corpo. Durante a pandemia, por força maior, prazeres solitários. Com evidente fixação no pênis e no ânus, dedica a estes órgãos sexuais (e excretores) imenso espaço de sua performance. Fazendo, portanto, jus ao cinema de um dos realizadores a quem o filme é dedicado, Gustavo Vinagre. Outro homenageado é o cineasta, professor universitário e crítico de cinema Marcelo Ikeda, defensor incansável do “cinema de garagem”. Ou seja, de filmes que trazem expressões (subjetividades) e visões de mundo de seus criadores, sem que haja qualquer tipo de preocupação com a inserção no mercado exibidor.

O filme de Wesley (e também de Fábio Rogério) homenageia, ainda, o ator-diretor-escritor e ex-professor da USP Jean-Claude Bernardet. E imprime uma dúvida em nossos pensamentos: será que o título do filme faz sentido? O performático-protagonista está sofrendo em sua clausura doméstica gerada compulsoriamente por tempos pandêmicos? Ele pensa em encurtar sua vida? Está vivendo a “eternidade” de quem está realmente sofrendo?

A se julgar pelo que vemos na tela (imagens captadas com celular, algumas delas de grande beleza), Wesley parece mais um ser luminoso, bem-humorado, capaz de celebrar a vida a cada instante, mesmo que pareça afirmar (em trechos de seu discurso) o contrário. Já no palco do Cine Tenda, durante a apresentação do filme, ele “causou”. Pronunciou palavras divertidas, contorceu o corpo em gestos de malabarista circense, dançou no ar. O apresentador de todas as noites, o ator e DJ David Maurity, não perdeu a oportunidade. Festejou Wesley por ter proporcionado ao público “a apresentação mais divertida do festival”, até então.

A noite que começara com a irreverência de “Um Minuto É uma Eternidade para Quem Está Sofrendo” — segunda atração da Mostra Aurora (restrita a primeiros-filmes) — prosseguiu com o primeiro concorrente da mostra Olhos Livres, o terror capixaba “Prédio Vazio”, de Rodrigo Aragão. O cineasta, oriundo do município do Guarapari e discípulo assumido de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, subiu ao palco com inúmeros integrantes de sua equipe. Em especial, do elenco, no qual se destacavam as atrizes Gilda Nomacce e Rejane Arruda. E com o jovem casal que protagoniza o filme (Lorena Corrêa e Caio Macedo). Aliás, a estranha concièrge do edifício “vazio” do título (Gilda Nomacce), e a mãe (Rejane Arruda), que tudo fará para defender a filha, são também protagonistas desse terror que teima em perturbar a vida de quem quer apenas curtir as belezas e o carnaval da ensolarada Guarapari.

“Prédio Vazio” é o mais ambicioso dos filmes de Aragão, de 48 anos. Ele, que é também “maquiador de efeitos especiais”, iniciou seu projeto como oficina criativa, mobilizando 280 participantes de seu estado natal, o Espírito Santo, hoje “capital do terror brasileiro”. No palco, antes de apresentar sua equipe, ele convocou os jovens a prestigiarem filmes (do gênero que cultua e pratica) nos cinemas. “Nossos filmes de terror contam nossas histórias” e “têm muito do que os estrangeiros, hegemônicos no mercado, oferecem”.

O novo longa de Aragão (não confundir o capixaba boa-praça com o mercurial diretor pernambucano!) começa com deliciosa canção-hino, de autoria de Pedro Caetano, cujos versos tecem loas às belezas de Guarapari, “a praia dos mineiros”. Entre os atributos do lugar estão “as areias morenas e monazíticas”, orgulho capixaba. E chegamos ao último dia do Carnaval, data que lota ruas e areias da cidade.

Uma turista (Rejane Arruda) se desentende com o namorado e, ainda trajando sua melindrosa carnavalesca, sobe para o apartamento alugado num estranho prédio, que em nada lembra seus vizinhos arquitetônicos. Como dali em diante ela perderá a comunicação com a filha Luna (Lorena Corrêa), esta decidirá tomar um ônibus rumo a Guarapari. Irá com o namorado (Caio Macedo), um bobão apaixonado.

O que acontecerá dentro do prédio, povoado por almas atormentadas, divertirá e dará alguns sustos nos amantes do terror capixaba. E até as mulheres poderão gostar de ver o protagonismo absoluto das personagens femininas. Elas são cheias de iniciativa, corajosas e solidárias. Como lembrou a produtora Mayra Alarcón, no palco do Cine Tenda, “chegou a hora das mulheres darem as cartas no cinema de terror brasileiro”. Promessa cumprida. O trio Nomacce-Arruda-Lorena bota pra ferver. A tela é delas. Pelo menos por sintéticos 80 minutos.

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