“Misericórdia”, nova transgressão de Alain Guiraudie e “filme do ano” da Cahiers du Cinéma, chega ao circuito de arte brasileiro

Por Maria do Rosário Caetano

“Misericórdia”, filme que críticos (e ousados leitores) da revista Cahiers du Cinéma elegeram como o melhor de 2024, chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 16 de janeiro. Seu realizador, o sexagenário Alain Guiraudie, é romancista, ator, roteirista e diretor (de doze longas-metragens) conhecidíssimo na França e no circuito de festivais europeus.

No Brasil, pelo menos um de seus filmes causou sensação – “Um Estranho no Lago” (2012). Não mobilizou grande público, mas serviu como amostragem do projeto artístico do cineasta, devoto seguidor de outra matriz do pensamento literário-filosófico francês, Georges Bataille (1897-1962).

“Um Estranho no Lago” transformou-se, entre os cinéfilos brasileiros, em cult transgressor. Mesmo destino parece reservado ao novíssimo “Misericórdia”, que podemos definir como um polar filosófico. Dessa vez, dá para arriscar, o público deve ser mais afluente, primeiro pela consagração vinda dos críticos da Cahiers du Cinéma, e segundo, pela fascinante e original construção do roteiro (do próprio Guiraudie).

“Um Estranho no Lago” (disponível na Apple TV e Globoplay) somou personagens homoafetivos, reunindo-os em aprazível campo de nudismo. Ali eles se olhavam e se atraíam. E utilizavam o bosque, às margens do espelho d’água, para práticas sexuais. Como gosta de dialogar com filmes de suspense – Guiraudie pode ser visto como um Chabrol contemporâneo dedicado full time a personagens homoafetivos –, o cineasta-roteirista construirá sua narrativa em diálogo com o “polar” (assim os franceses chamam os ‘films noir’, aqueles de tramas policiais mergulhadas em sombras).

“Misericórdia” é um polar, mas não de modelo clássico. A narrativa, impregnada pela subversão sexual, inicia-se com o regresso à terra natal do jovem Jérémie (Félix Kysyl). E ele chega ao interior da França para visitar Martine (Catherine Frot), que acaba de perder o marido, um padeiro com quem Jérémie trabalhara até radicar-se em Toulouse.

A viúva tem imensa estima pelo jovem. O mesmo não acontece com seu filho Vincent (Jean-Baptista Durand), casado com Annie e de temperamento descompensado e bruto. Como Jérémie passa a ocupar, a cada dia, mais espaço na casa de Martine, as relações tornam-se cada vez mais crispadas. Haverá tensão erótica entre todos os moradores da pequena cidade com quem o jovem padeiro retomará contato.

Guiraudie faz de “Misericórdia” (título magistral, sintético e eloquente!), uma reflexão sobre a natureza humana, a religião e a morte. Uma reflexão, registre-se, impregnada de fino humor. E que atinge seu ápice em duas sequências antológicas. Ambas ambientadas em locais inusitados – o confessionário da igreja municipal e um cemitério. Neste campo santo, o engenhoso Guiraudie construirá uma das mais geniais (e originais) soluções já encontradas por um ‘film polar’.

A paisagem outonal, magnificamente fotografada por Claire Mathon, nos conduz a uma França de árvores douradas e vermelhas. E, principalmente, ao interior de um bosque onde os desejos se exacerbam. Mas não há cenas de sexo explícito no filme (em outros de Guiraudie, sim!). Sobre as folhas secas que recobrem o chão, os homens caminham (só uma figura feminina aparecerá por lá e rapidamente, a policial interpretada por Salomé Lopes). Entre as árvores, eles discutem, brigam e… colhem cogumelos. O famoso champignon francês terá papel dos mais relevantes na trama.

Do elenco reunido por Alain Guiraudie, só um nome soa familiar aos espectadores brasileiros – o de Catherine Frot, de 68 anos. Ela, que fez sua carreira no teatro, chegou ao cinema pelas mãos de Alain Resnais (em “Meu Tio da América”, 1980). Em tempos recentes, brilhou em “Os Sabores do Palácio” e, em dupla com Catherine Deneuve, em “O Reencontro”. Mas o papel que serviu, como luva, para mostrar sua refinada veia cômica foi o de “Marguerite” (2016), história de cantora lírica muito desafinada, que insistia em fazer recitais. Mesma história, aliás, protagonizada por Meryl Streep em “Florence – Quem É essa Mulher?”.

A grande atriz francesa está cercada, em “Misericórdia”, de atores de primeira linha. O veterano Jacques Develay (da série “Baron Noir”) dá vida a um sacerdote-filósofo, capaz de defender, com tranquilidade glacial, ideias e atos dos mais transgressores. O protagonista, Félix Kysyl, de atuações secundárias em “O Formidável”, cinebiografia de Godard (Michel Hazanavicius, 2017) e “Coisas de Homem” (com Depardieu, Catherine Frot e Darroussin), tem chance plena de mostrar seu talento.

O jovem que vai assistir ao funeral do ex-patrão está, praticamente, em todas as cenas do filme e nos magnetiza a cada instante. O gordo Walter (David Ayala) brilha, assim como o bruto Vincent (J.B. Durant). Enfim, uma orquestra de intérpretes regida pelo meticuloso e aliciante Guiraudie. Misericórdia! Que filme inusual, instigante. E, ainda por cima, capaz de trazer uma nova sensibilidade ao onipresente polar.

 

Misericórdia
França, Espanha, Portugal, 2024, 103 minutos
Direção e roteiro: Alain Guiraudie
Elenco: Félix Kysyl (Jérémie), Catherine Frot (Justine), Jean-Baptista Durand (Vincent), Jacques Develay (o sacerdote Philippe Griseul), David Ayala (Walter), Tatiana Spivakova (Annie), Serge Richard (Jean-Pierre), Sébastien Faglain e Salomé Lopes (policiais)
Fotografia: Claire Mathon
Distribuição: Zeta Filmes

 

FILMOGRAFIA
Alain Guiraudie (Villefranche-de-Rouergue/França, 15 de julho de 1964)
Escritor, cineasta, ator e roteirista

2025 – “Misericórdia”
2022 – “Um Herói Anônimo” (“Viens Je T’Emmène”) – Disponível na Mubi
2016 – “Na Vertical” – Disponível na Mubi
2012 – “Um Estranho no Lago” – Disponível na Globoplay e Apple TV
2009 – “Le Roi de l’Évasion”
2007 – “On m’a Volé mon Adolescence”
2004 – “Voici Venu ls Temps”
2003 – “Pas de Repos pour les Braves”
2000 – “Ce Vieux Rêve qui Bouge”
1997 – “La Force des Choses”
1994 – “Tout Droit Jusqu’au Matin”
1993 – “Jour Perdus”

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