A cangaceira Maria Bonita protagoniza série que tem a maternidade e a violência como forças propulsoras

Por Maria do Rosário Caetano

A série “Maria e o Cangaço”, de Sérgio Machado – disponibilizada há um mês no streaming, pelo Disney Channel – sintonizou sua proposta com a sensibilidade dos dias que correm. Ou seja, tirou Lampião do título e do foco narrativo. E colocou Maria Bonita, a jovem baiana, de 19 anos, que abandonou o marido, um sapateiro mais velho, por quem não tinha nenhuma estima, para viver história de amor e muitos percalços com Virgulino Ferreira, “o rei do Cangaço”. Uma história que durou pouco mais de 10 anos e teve fim trágico.

Os dois cangaceiros morreram juntos, na Gruta de Angico, em Sergipe. Maria tinha 28 anos. Virgulino, 38 (ou 40). Morreram em combate, ao lado de nove companheiros (a jovem Enedina, mais Luís Pedro, Mergulhão, Elétrico, Moeda, Alecrim, Colchete, Quinta-Feira e Macela).

Além do protagonismo feminino, a série da Disney+ dá significativo destaque a tema fundamental para as 60 mulheres, que uniram suas vidas ao cangaço – a maternidade. E suas derivações: o parto em condições adversas, a doação dos filhos para terceiros e o consequente desejo de recobrar vida estável, na qual o filho (ou a filha) pudesse ser resgatado(a).

Já foram realizadas dezenas de filmes, ficcionais e documentais, sobre o fenômeno do cangaço. O crítico potiguar Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923-2000) até cunhou neologismo para agrupá-los – “Nordestern”, o western cangaceiro. No núcleo duro do movimento estavam filmes que mostravam cangaceiros enfrentando volantes (formações policiais), incapazes de dar fim aos bandoleiros.

Como demonstraram Lucila Ribeiro Bernardet e Francisco Ramalho Jr, em estudo realizado na década de 1960 (e publicado no livro “Nordestern, o Cangaço no Cinema Brasileiro”, Avathar, 2005), tais filmes se construíam com fórmula recorrente. A ver.

Os “nordesterns” eram protagonizados por cangaceiros que roubavam, estupravam mulheres e matavam, a sangue frio e com requintes de violência, a todos que tentassem impedir suas empreitadas. O símbolo máximo desse tipo de personagem cinematográfico foi encarnado por Milton Ribeiro, o Galdino de “O Cangaceiro” (Lima Barreto, 1953), ficção que conquistou prêmio de melhor “filme de aventura” no Festival de Cannes. Isso, numa edição em que a premiação se fez por gêneros (drama, comédia, ‘legendário’, de ‘exploração’, de ‘narrativa por imagens’ etc.).

Como conseguir a simpatia do público, se tais bandoleiros eram sanguinários, estupradores, sequestradores, inclusive de mulheres de pequenos vilarejos, obrigadas a acompanha-los como “esposas”?

A solução veio do festejado “O Cangaceiro”, cujo roteiro, transformado em paradigma, foi escrito por Lima Barreto: um bandoleiro de boa índole se revoltaria contra as práticas brutais do grupo. Tornando-se, portanto, um dissidente.

Coube ao belo Alberto Ruschell desempenhar tal papel no primeiro sucesso internacional do cinema brasileiro. Seu personagem, Teodoro, se apaixonaria pela jovem professora Olívia (Marisa Prado) e, transformado em defensor das instituições, incorporaria as necessárias características de um herói. Muitos outros filmes — mostram Lucila e Ramalho – seguiram, com fidelidade canina, esse modelo. “Entre o Amor e o Cangaço” (com o mocinho Joaviano e o malvado Antônio Rufino), “O Cabeleira” (com Cabeleira e o cara-dura Joaquim), “Três Cabras de Lampião” (com o heróico Arvoredo e o malvadeza Gavião), “A Lei do Sertão” (Tonico, representando o bem, e Trovoada, o mal) e “A Morte Comanda o Cangaço” (Raimundo contra o facínora Silvério).

A série “Maria e o Cangaço” rompe com esse paradigma, como antes haviam feito “Baile Perfumado” (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1996) e outras produções cangaceiras realizadas nas três últimas décadas. O duelo se dará entre os cangaceiros (nunca heroificados) e a volante (representada pelo sádico personagem de Rômulo Braga, que na fase final receberá ajuda do Tenente Durant, devidamente fardado).

Os roteiristas convocados por Sérgio Machado para ajudá-lo em sua narrativa ficcional – o cearense Armando Praça e as baianas Letícia Simões e Sandra Delgado – partiram do livro “Sexo, Violência e Mulher no Cangaço”, da jornalista Adriana Negreiros. O quarteto recriou, com total liberdade, o texto-fonte. Tomaram como consultor o recifense Frederico Pernambucano de Mello, autor do livro “Guerreiros do Sol – Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil”, ponto de partida de telenovela curta concebida por George Moura e Sérgio Goldenberg, cuja estreia se dará no dia 11 de junho próximo. O folhetim “Guerreiros do Sol” será a novidade, a cereja do bolo, de novo canal – o Globoplay Novelas, que substituirá o Viva.

O cearense Hermano Penna foi o primeiro cineasta brasileiro a dar imenso destaque às mulheres cangaceiras. Aquelas que, por amor ou por rapto, deixaram suas famílias para viver vida bandida. Maria Bonita o fez por amor. Dadá, raptada aos 12 anos, acabaria se apaixonando por Corisco, seu raptor.        Hermano dirigiu, para o “Globo Repórter”, em 1976, um híbrido de ficção e documentário chamado “Mulheres no Cangaço”. Com depoimentos de Dadá, Sila e mais duas companheiras, o cineasta abordou a dura vida das cangaceiras nordestinas.

Algumas escolheram a vida em bando para fugir da vigilância castradora dos pais. No melhor depoimento do filme, uma ex-cangaceira contará que conheceria, junto aos bandoleiros, uma nova vida, mais livre, com o direito de passar “batom nos beiços”, dançar, fazer o que tivesse vontade. Mas não encontrariam vida fácil. Fugas inesperadas, gravidez num tempo em que nem se sonhava com a pílula anticoncepcional, filhos entregues a parentes ou coiteiros, fome e sede nos momentos mais difíceis. Dadá lembrará dias áridos no Raso da Catarina, território baiano, em que, sem uma gota de água, buscavam o líquido nos gravatás. O que encontravam era quase nada.

Nos seis capítulos de “Maria e o Cangaço”, filmado na paraibana Cabaceiras e em seu imponente Lajedo do Pai Mateus (sede da Hollywood Nordestina), veremos Maria Gomes de Oliveira, a protagonista, encarnada em Isis Valverde, mineira de Aiuruoca, 38 anos. Maria media 1m56. Isis é sete centímetros mais alta. Mesmo assim, de tipo mignon. Com forte maquiagem e prótese nos dentes, a atriz ganhou imagem mais consistente e convincente. E enfrentou cenas que nada lembram suas participações em telenovelas ou filmes (caso de “Ângela”, no qual interpretou a pantera do high society mineiro, Ângela Diniz, ou de “Simonal”).

Na cena em que irá parir a única filha, Expedita, o realismo se faz notar. O afastamento da criança, entregue a parentes, a perturbará de forma significativa. Lampião (Júlio Andrade), aos trinta e tantos anos, começa a apresentar quadro médico dos mais preocupantes. Tosse sangue e já não parece apto a enfrentar o cerco da Polícia de Getúlio Vargas. O ditador se enfurece com a ousadia do bando, que posara para fotos fixas e filmagem do mascate-fotógrafo-documentarista libanês Benjamin Abrahão. Um protegido de Padre Cícero.

As fotos ganharam as páginas de grandes jornais. O filme acabaria interditado pelo Estado Novo. E aí Vargas daria o ultimato. Queria os bandos de cangaceiros exterminados.

Em muitos filmes brasileiros – inclusive no documentário “Lampião, o Governador do Sertão”, de Wolney Oliveira, recém-lançado – vemos trechos das imagens originais captadas por Abrahão. Em “Maria e o Cangaço”, Sérgio Machado abriu mão de tal uso. Resolveu reencenar a filmagem empreendida pelo mascate, em 1936, com suporte técnico da cearense Aba Filmes, de Adhemar Albuquerque.

Os espectadores assistirão aos atores da série revivendo o que teria se passado no sertão, naquela temporada cinematográfica do atrevido libanês. Que aliás, pagaria caro por sua ousadia. Morreria jovem, assassinado, supostamente por um pobre marido traído. Tinha 47 anos, se aceitarmos a suposta data de seu nascimento, em Zalé, no Líbano, por volta de 1890. O papel de Benjamin Abrahão, protagonista de “Baile Perfumado”, foi interpretado por Duda Mamberti. Em “Maria e o Cangaço”, o pernambucano Bruno Goya dá vida ao “turco”. As filmagens são a razão de ser do quinto episódio, o penúltimo capítulo da série.

O capítulo final é dedicado ao massacre da Gruta de Angico, quando mais de 40 soldados atacaram Maria Bonita, Lampião, Enedina e oito cangaceiros, e ninguém sobreviveu para contar o que ali acontecera. As onze cabeças cangaceiras foram cortadas e expostas em escadaria da alagoana Piranhas. Um altar macabro.

O trágico acontecimento aparece na trama em montagem alternada. Corisco e Dadá, ela estava para parir a qualquer momento, ficam de se encontrar com o pequeno grupo de Lampião, tão logo a criança nascesse. Ele mesmo será obrigado a fazer o parto, pois a hora é chegada, Dadá se contorce em dores e não há socorro à vista. Cenas de morte (o massacre) e de vida (o parto improvisado de Dadá) se oferecem ao espectador.

Corisco e Dadá ainda viveriam do ofício cangaceiro. Ele, por pouco tempo. Como cantou Sérgio Ricardo em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), um antinordestern – “Mataram Corisco, balearam Dadá”. Ele perdeu a vida, ela perdeu uma perna. Viveria com auxílio de muletas, em Salvador, até sua morte, em fevereiro de 1994 (em abril completaria 79 anos).

O tom da série que Sérgio Machado dirigiu em parceria com Thalita Rubio e Adrian Teijido (o fotógrafo do oscarizado “Ainda Estou Aqui”) é sombrio. As cores são terrosas, o sertão é árido e hostil. Nada a ver com o “sertão líquido” e pop de “Baile Perfumado”.

Também pudera: com um Lampião turberculoso, Maria Bonita obcecada para encontrar refúgio no Sul (onde pudesse criar a pequena “Dita”) e a polícia de Vargas instigada a dar cabo dos bandoleiros, as chances de seguir “governando o sertão” haviam se reduzido de forma drástica. Em 1940, Vargas comemorou o fim do Cangaço. E Lampião, Maria Bonita e seus liderados viraram personagens de literatura de cordel.

 

Maria e o Cangaço
Brasil, 2025, série em seis capítulos, média de 50 minutos cada
Direção: Sérgio Machado, Thalita Rubio e Adrian Teijido
Elenco: Isis Valverde, Júlio Andrade, Rômulo Braga, Thayná Duarte, Clébia Sousa, Chandelly Braz, Ana Paula Bouzas, Mohana Uchôa, Laila Garin, Nash Laila, Jorge Paz, Dan Ferreira, Ariclenes Barroso, Zezita Mattos, Buda Lira, Bruno Goya, Germano Haiut, Geyson Luiz
Roteiro: Armando Praça, Letícia Simões, Sandra Delgado e Sérgio Machado
Fotografia: Adrian Teijido e equipe
Montagem: Paulo de Barros
Onde assistir: Disney+

Guerreiros do Sol
Novela curta (45 capítulos) de George Moura e Sergio Goldenberg
Direção: Rogério Gomes
Elenco: Isadora Cruz, Thomás Aquino, Alice Carvalho, Marcélia Cartaxo, José de Abreu, Aline Morais, Alexandre Nero, Irandhir Santos, Daniel Oliveira, Luiz Carlos Vasconcelos
Onde assistir: no Globoplay Novelas (ex-Viva), a partir de 11 de junho

Lampião, o Governador do Sertão
Ceará, documentário, 90 minutos
Direção: Wolney Oliveira
Já lançado em SP, Rio e Fortaleza, o filme faz carreira em outras cidades ao longo desse ano

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