Olhar de Cinema exibe “Tardes de Solidão”, filme que encantou a crítica e enfureceu combatentes da prática da Tauromaquia

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba (PR)

O Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba realizou a primeira sessão, em solo brasileiro, do formidável “Tardes de Solidão”, nono filme do catalão Albert Serra, de 49 anos.

“Tardes de Soledad” é um longa documental-performático, que além de fazer jus à Concha de Ouro, prêmio máximo do Festival de San Sebastián, no País Basco, deixou a crítica espanhola e, em especial, a francesa em estado de êxtase.

A revista Cahiers du Cinéma atribuiu-lhe sua cotação máxima, 5 estrelas, e dedicou-lhe apaixonante capa e muitas páginas. E não foi um ato isolado (ou idiossincrático) da bíblia da cinefilia, já que sua avaliação foi a mesma de outros veículos de imenso prestígio (Le Monde, Libération, L’Humanité, Figaro, Les Inrock), que festejaram o filme de Albert Serra com quatro ou cinco estrelas.

“Tardes de Solidão” acompanha “corridas de toro” em arenas de Madri, Sevilha, Bilbao e Segóvia, onde reina, absoluto, o toureiro peruano Andrés Roca Rey, hoje com 28 anos, um monumento de beleza bruta, pele morena, cabelos fartos, olhos negros e 1m88 de altura. E tomado por ousadia selvagem, um bárbaro, que só pensa em cravar sua espada no touro, até aniquilá-lo.

Se a crítica consagrou o filme, o mesmo não aconteceu entre os que lutam pela extinção das touradas. Estes inundaram redações de jornais e revistas com centenas de cartas. O veículo mais questionado foi a Cahiers de Cinéma, que deu tratamento farto e nobre a “Tardes de Solidão”. Por isso, a revista se viu obrigada a dedicar incisivo editorial ao tema (e a seus detratores), destacando que são muito diferentes os critérios de avaliação de um filme. Ou seja, a Cahiers analisa a obra como construção estética, como objeto de linguagem. Os anti-Tauromaquia, por sua vez, defendem uma causa. Aliás, boa parte dos protestos veio daqueles que se negaram a assistir ao filme, por intuírem a violência nele contida, bastando para tanto a leitura das fartas críticas publicadas pela imprensa.

Aqueles que — ao contrário de Ernest Hemingway, Orson Welles e outros adictos das touradas — dedicam-se a combater o brutal espetáculo das arenas deveriam assistir ao filme e agradecer a Albert Serra. O cineasta, afinal, constrói, ao longo de densos (e apaixonantes) 125 minutos, narrativa capaz de converter o mais empedernido dos amantes das “corridas de toro”.

E por que?

Porque “Tardes de Solidão” é banhado em sangue, brutalidade e selvageria. Nos mostra um culto primitivo oficiado por um famoso toureiro e seus auxiliares, que enfurecem um animal até, se não houver um revés, matá-lo, e, depois de arrancar seus chifres (exibidos como troféu), arrastá-lo pela arena. Tudo sob aplausos de multidão igualmente bárbara (uma elipse intencional no filme), pois Albert Serra preferiu estabelecer um corpo-a-corpo centrado em seu protagonista, Andrés Roca Rey.

Veremos o “Rey das arenas”, neto e filho de toureiros, nascido na capital peruana, vestido em trajes justíssimos de cor branca, vermelha ou preta, cobertos com enfeites dourados, de imenso requinte. Mas, ao contrário dos filmes de outrora (até Rodolfo Valentino, ainda na era silenciosa, foi toureiro de melodrama), o que veremos nos espanta pelo realismo, pelo sangue que escorre, abundante, das costas do touro. E que mancha os justíssimos trajes do “herói” da plaza de toros. Sim, há sangue no uniforme do toureiro. E até rasgos em suas sedutoras vestes, chifradas pelo animal.

Na mais inimaginável sequência do filme, veremos o “deus mestiço limenho” inovando o ritual do vestir a justíssima “farda” de toureiro. Ele começa a cobrir seu corpo com finíssima malha-calça muito alva. Ajeita cuidadosamente o pênis para uma das partes laterais de seu corpo. Aí entra em cena seu inseparável e utilíssimo ajudante. Que lhe meterá a calça bordada pelo pés. E, para encaixá-la nas pernas longilíneas do toureiro, o ajudante o erguerá bem alto e, por três vezes, num esforço hercúleo. Só aí o toureiro poderá vestir, sempre com a contribuição do auxiliar, os outros itens, incluindo o belíssimo “bolero” de mangas longas, bordado como um riquíssimo vestido de princesa oriunda de realezas tradicionais.

Pois, em “Tardes de Solidão”, tais vestimentas serão vistas com manchas de sangue e rasgos. Sim, eles chegam também ao corpo do toureiro. Mas a brutalidade suprema será vista nas toneladas de carne e músculos dos touros. E no sangue que jorrará deles, depois de atingidos pelas “banderillas” lançadas pelos auxiliares do toureiro (também vestidos de gala, mas jamais com o requinte do “matador”). Tais “banderillas” farão escoar 18% do sangue do animal. Que sofrerá perda parcial de sentidos e, inclusive, parte de sua respiração. Em síntese, um brutal processo de tortura.

Tudo isso é mostrado, de perto, bem perto, pelas múltiplas câmaras utilizadas pelo cineasta e sua equipe. E o que veremos é de crueza aterradora. E as contorções corporais do toureiro (inclusive de lábios e sobrancelhas), marcadas pela repetição, nos deixarão em estado de inquietação. E o filme traz laivos de escatologia (como xingam os toureiros, em especial Roca Rey!), morbidez, arcaísmo e um quê de erotismo (e homoafetividade).

Em seus enfrentamentos (vinte minutos, filmados em tempo real), Andrés Roca Rey nos parecerá um monstro narcisista, obcecado pela vitória, decidido a tudo. Quando o touro o enquadra entre seus chifres, ele é salvo pelos auxiliares. E mesmo com a calça rasgada (veremos grande fenda na região de sua virilha), ele voltará à arena para mostrar que é um verdadeiro e atrevido matador. Um crítico francês foi muito feliz ao definir a natureza estética do longa documental de Albert Serra como “uma instalação experimental”.

Que ninguém pense que Serra voltou aos tempos de suas primeiras (e experimentais) realizações da fase catalã, aqueles que passavam na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (“Honor de Cavaleria”, “El Canto dels Ocells”, “O Senhor Fez Maravilhas” e “Histórias de Minha Morte”). Estes são filmes dos tempos em que ele era habituê do Festival de Locarno.

Depois de “A Morte de Luís XIV”, com Jean-Pierre Léaud no papel do soberano, ele tornou-se presença marcante no Festival de Cannes. Com “Liberté”, ganhou prêmio especial na mostra Un Certain Regard. Com “Pacifiction”, protagonizado por Benoît Magimel, disputou a Palma de Ouro. E foi consagrado pela crítica francesa. Repete, como já lembramos, o mesmo feito.

Com “Tardes de Solidão”, mesmo no Brasil, Albert Serra começa a ganhar o merecido relevo no circuito de arte e ensaio. Já ultrapassou as telas restritas dos festivais. Resta saber se algum de nossos exibidores terá coragem de programar sua “performance experimental”, marcada pela brutalidade e pelo arcaísmo primal.

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