O universo particular de Miranda July

Por Caio Tseng

Está escuro. Começa baixinho uma das clássicas do Beach House e uma mulher se move devagar pelo seu apartamento, como se a assistíssemos em câmera lenta. Para em frente a uma camiseta amarela de lycra, largada no chão da sala. Devagar e sutilmente, no ritmo da música, ela começa a vesti-la, sentada no chão. Primeiro as pernas, depois a estica até a cabeça, agora deitada. Em seguida, as pernas pelas mangas, se levanta, a cabeça toda coberta, como um grande boneco cor de mostarda, e começa a dançar, levantando os pés como uma bailarina, rodopiando lenta, solta pelo espaço da sala, esbarrando nas paredes.

A esquisitice descrita acima é uma cena de The Future (foto, 2011), um dos filmes dirigidos, roteirizados e protagonizados por Miranda July.

Escritora, atriz, roteirista, diretora, dramaturga, performancer, de olhos bem azuis, Miranda July já passou pelas mais diversas formas de expressão artística, e recentemente explodiu em sucesso com seu último romance, De quatro, publicado no Brasil pela Amarcord, fenômeno de crítica e público, finalista do National Book Award em Ficção em 2024 e indicado ao Women’s Prize for Fiction em 2025.

Para além da prosa instigante e já conhecida de July, o romance teve uma recepção calorosa no Brasil e no mundo também por conta de um tema cada vez mais representado na literatura: a crise em torno da menopausa. No livro, acompanhamos uma artista de meia idade, casada e com filhos, que, sentindo a necessidade de romper com a sua rotina, parte numa viagem de carro de Los Angeles a Nova Iorque, se enredando em experiências que a levam a questionar seus desejos e escolhas.

Miranda começou a escrever muito cedo. Aos 16 anos, escreveu sua primeira peça de teatro. Desde o início apresentava monólogos e peças para pequenas audiências, e se mostrava já muito próxima da arte performática, isto é, de usar o próprio corpo como veículo de expressão.

Na época da pandemia da COVID-19, passou a postar vídeos com frequência no seu Instagram. No meio da sua sala de estar — qualquer semelhança com The Future não é mera coincidência —, ela canta, performa e recita poemas nos mais diversos figurinos: embalada em plástico, seminua em saltos, de ponta cabeça, e por aí vai.

O caráter “experimental” de Miranda, isto é, o abstrato, o avant-gard, ou o que taxei no início do texo como esquisito, se mostra em praticamente todas as suas obras. A performance sonorizada pelo Beach House, incluída num dos seus longas, é um retrato daquilo que há de mais autêntico nos seus trabalhos, e de como ele pode muito bem se encaixar dentro e fora da ficção.

No conto Alguma coisa que não precisa de coisa alguma, do livro No one belongs here more than you, feliz ou infelizmente traduzido como É claro que você sabe do que estou falando pela editora Agir, fica evidente a mesma e caricata cena característica de July:

“No calor empoeirado do banheiro eu me senti eufórica. Estar sozinha parecia de repente ser o máximo. Tranquei a porta e fiz uma série de gestos barrocos e involuntários no espelho. Acenei para mim mesma que nem uma maníaca e contorci meu rosto em expressões medonhas e desagradáveis. Lavei as mãos como se elas fossem crianças, embalando uma e depois a outra. Eu estava sentindo um paroxismo de individualidade. O nome científico desse espasmo é Último Viva. A sensação passou logo. Sequei minhas mãos numa minúscula toalha azul e voltei para o quarto.”

Para além do caráter performático, é possível apontar um tema recorrente na sua ficção, mencionado pela própria Miranda em entrevista: “people trying to connect” — o que, na verdade, pode ser facilmente tomado como algo universal à qualquer ser humano minimamente sensível.

Em Eu, você e todos que conhecemos, primeiro e mais conhecido filme da sua carreira, já de cara premiado no Festival de Cannes em 2005, acompanhamos um encontro ao acaso da protagonista — cujo papel é feito pela própria Miranda —, e um vendedor de sapatos, se aproximando aos poucos, sem jeito, cada um com as suas esquisitices. Uma sutil conexão, percorrida por humor, ternura e, sobretudo, leveza.

A cada novo trabalho, Miranda July nos mostra que qualquer produção artística, quando é carregada da mais sensível autenticidade, incluindo suas bizarrices e manias, pode ser um veículo poderoso de comunicação. Abrir-se do avesso, usar a si como um todo — não só história, mas corpo — é, para além de inevitável à quem cria, o único caminho para a produção de obras verdadeiramente profundas.

 

Caio Tseng (1998) é escritor e psicólogo, formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autor de Lá, onde os tigres amam, livro de contos publicado pela Editora Patuá em 2024.

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