“Moacyr Luz, o Embaixador dessa Cidade” soma humor, música e louvação ao Rio de Janeiro, à amizade e à vida

Por Maria do Rosário Caetano

“Moacyr Luz, o Embaixador dessa Cidade”, longa documental sobre o mais carioca dos cariocas, o autor de “Saudades da Guanabara” (com Aldir Blanc e Paulo Cesar Pinheiro), estreia nessa quinta-feira, 21 de agosto, no circuito de arte.

Trata-se de um doc comédia. Sim, existe documentário de suspense (“33”, de Kiko Goifman), documentário de animação (“Rê Bordosa”, de César Cabral) etc. etc. Por que o gênero comédia não poderia tomar conta de um doc? Aliás, já faz tempo que os documentários nos fazem rir. Um exemplo sempre evocado é “Fábio Fabuloso”, de Bocão, Cézar e Ricardo.

Claro que “Moacyr Luz, o Embaixador dessa Cidade”, escrito por Hugo Sukman e Gabriel Meyohas e dirigido por Tarsilla Alves, propõe-se como documentário musical, cinebiografia de um violonista (discípulo de Hélio Delmiro, guitarrista de Elis Regina), compositor (com parceiros da pesada como Sereno, Aldir, Pinheiro, Donato, Martinho, Joyce), agitador cultural (criador do “Samba do Trabalhador”) e “humorista amador”, disposto a alegrar bares e lares.

Moacyr nasceu em abril de 1958, no subúrbio carioca. Hoje, aos 67 anos, enfrenta muito males físicos, sendo o mais grave o Parkinson. Meses atrás, ele passou por internação hospitalar devido a edema pulmonar provocado por insuficiência cardíaca. Está proibido de beber (tenta driblar a mulher, a comentarista esportiva Marluci Martins), de fumar, de levar a vida desregrada que, tão prazerosamente, levou. Toma 30 medicamentos por dia.

Que ninguém pense que ouvirá lamentos médicos durante “Moacyr Luz, o Embaixador dessa Cidade”. Jamais. Ao longo de 95 minutos de narrativa, só ouviremos histórias engraçadas, os sons de noitadas no Samba do Trabalhador (no clube ‘black’ Renascença) e rodas de samba em bares e botecos. Sem esquecer as intervenções metalinguísticas do retratado.

Quando a mãe de Moacyr dana a elogiar a inteligência do filho (“com três anos, ele já conhecia todas as notas musicais”, “adolescente, ele já era um ótimo compositor”), o filho ordena: “corta, corta!” Quando amigo sambista, de origem paraibana, radicado no Rio e apelidado Baiano fica, por demais, em evidência, Moacyr brinca: “Baiano, esse filme é meu, aguarde o seu”. Tudo na galhofa, pois não há mal que abata o artista. Nem a tremedeira trazida pelo Parkinson.

No pockett show que realizou no Espaço Petrobras paulistano, em pré-estreia lotada por fãs conquistados na terra da garoa (“túmulo do samba”), Moacyr brincou com sua saúde. Tentava levar um copo de cerveja à boca, mas estava muito difícil. E ele mesmo descrevia o que estava acontecendo. Lembrava que, com paciência, o líquido haveria de chegar ao seu destino.

Há muitas histórias deliciosas no doc-comédia de Tarsilla Alves. A melhor delas relembra a escolha de sua composição “Coração do Agreste” para telenovela da Rede Globo. Quando se decidiu que a música teria espaço nobre na trilha do folhetim, Moacyr quase teve um troço. Duro como ele só, sonhou com cinco mil mangos, em moeda nacional, que aliviariam suas dívidas. Quando recebeu o equivalente a 15 mil dólares, tomou uma decisão: iria ao mercado com o amigo Baiano e compraria um carrinho de supérfluos. Só supérfluos — biritas e tira-gostos. Nada de produtos de primeira-necessidade. Beberiam e comeriam como se não houvesse amanhã.

Noutro momento, num estúdio, Moacyr divide espaço com Macalé, Guinga e Zé Renato, ex-Boca Livre. O quarteto prepara refinada canção. Mas Moacyr não perde a piada. Diz que, depois dos show que faziam juntos, a fila de cumprimentos no camarim reunia fauna muito especial. Macalé era procurado pelos maconheiros da velha Guarda. Guinga por maconheiros mais arrumadinhos. Ele, Moacyr, pelos cachaceiros. Já o galã Zé Renato, “pelas mulheres bonitas”.

Para não contrariar os “cruzados antispoiler”, paro por aqui. Mas aviso: não há resumo em papel que suprima o prazer de ouvir as histórias engraçadas de Moacyr, narradas por ele.

Há, no filme, momentos de tristeza, quase melancolia. E um deles terá o hilário Zeca Pagodinho em momento sério. Não falará de birita, nem de noitadas inesquecíveis. Evocará a memória do pai, já falecido, que tomava o samba “Vida da Minha Vida” como obra autobiográfica. Ficava comovido e pensativo ao ouvir os versos “Vida da minha vida/ O vento me derrubou/ A alma desprotegida/ No peito de um sonhador// Vida da minha vida/ Peço ao meu protetor/ Se for pra ser vivida/ Diga pra onde eu vou”.

Outro momento comovente se passa na biblioteca de Aldir Blanc, que partiu durante a pandemia. Amigos muito próximos e parceiros, ambos cariocas suburbanos, Moacyr e Aldir mantiveram convivência intensa. E desfrutaram de coincidência geográfica que os aproximou para o todo e o sempre.

O “Embaixador dessa Cidade” (a amada e idolatrada Rio de Janeiro) enaltece o coautor de “O Bêbado e a Equilibrista”, com os olhos marejados, ao assegurar que o guitarrista Hélio Delmiro o alfabetizou no terreno musical. E que Aldir o alfabetizou para a leitura, disponibilizando sua generosa biblioteca a um rapaz até ali de pouca leitura.

O filme compõe-se com testemunhos compartilhados. E o que é isso? São aqueles depoimentos em que “biografado” e “entrevistados” conversam, evocam juntos memórias afetivas. No caso do “Embaixador”, comungam das mesmas paixões — o samba, o amor ao Rio, as histórias engraçadas, o prazer por noitadas regadas s cerveja (e cachaça) e perigosos torresmos.

Passarão pelo filme — além de Zeca Pagodinho e do trio Macalé-Guinga-Zé Renato —  o compositor Sereno, o amigo Baiano, as cantoras Teresa Cristina e Leila Pinheiro, o afinadíssimo Moyseis Marques, a viúva de Aldir Blanc, Mary Sá Freire. E, também, Maria Bethânia e Fafá de Belém. Estas duas, na condição de intérpretes que gravaram composições do “Embaixador” (a baiana gravou “Rainha Negra”, tributo a Clementina de Jesus, e a paraense, “Coração do Agreste”, aquela que encheu o bolso do compositor). As duas não deram o melhor de si. Talvez por não terem convivido com Moacyr em sua peregrinação pelos pé-sujos da vida.

Fafá relembra a gravação que embalou a telenovela “Tieta” e os versos tão caros aos migrantes: “eu voltei pra juntar pedaços/ De tanta coisa que passei/ Da infância abriu-se o laço/ Nas mãos do homem que eu amei// O anzol dessa paixão me machucou/ Hoje sou peixe/ E sou meu próprio pescador// Rio, voltei no curso/ Revi o meu percurso/ Me perdi no leste/ E a alma renasceu/ Com flores de algodão/ No coração do agreste”.

Só que a cantora paraense não interpreta canção tão importante na vida do compositor. Uma pena num filmusical. O documentário ganharia muito se “Saudades da Guanabara”, obra-prima de Moacyr e seus parceiros, fizesse por merecer uma interpretação nos trinques. A que ouvimos se passa num bar barulhento. Assim como os números que botam fogo no Samba do Trabalhador. Sim, a turma do samba adora e canta junto, com inseparável copo de cerveja na mão. Mas o espectador quer a perfeição de um estúdio. Quer desfrutar da música em sua plenitude.

O filme, montado pelo craque Vinicius Nascimento, poderia passar por um enxugamento. Há sequências dispensáveis. Gente demais para festejar o homenageado. Gente boa até mais não poder. Claro que o editor dever ter tido vontade de investir no poder da síntese. Mas quem há de contrariar um homem de coração tão grande quanto o de Moacyr Luz?

E tome sequência de feira livre contemporânea, em paralelo com outra gravada outrora, e tome a simpatia dos escritores Ruy Castro, Heloísa Seixas e outros convivas. Que pouco acrescentam à trama. O filme, afinal, compõe-se com os dias de uma semana. E sábado é dia de feira. Como o domingo é dia de descanso. Daí a reconstrução alegórica do festejo de Momo. Com Moacyr cercado de sambistas e foliões.

Um dos pontos positivos do doc-comédia do “Embaixador” está em seu espírito crítico. Mesmo quando, extasiado pelas belezas da Cidade Maravilhosa, Moacyr ameaça cair no bairrismo excludente, o bom senso se faz sentir. Como nos versos das tantas vezes evocada “Saudades da Guanabara”:

“Reguei/ O Salgueiro pra Muda pegar outro alento/ E plantei novos brotos no Engenho de Dentro/ Pra alma não se atrofiar, Brasil// Brasil/ Tua cara ainda é o Rio de Janeiro/ Três por quatro na foto e o teu corpo inteiro/ Precisa se regenerar/// Brasil/ Tira as flechas do peito do meu Padroeiro/ Que São Sebastião do Rio de Janeiro/ Ainda pode se salvar”.

Que os espectadores não saiam do cinema antes de assistir-ouvir outra festa, essa política, dedicada a um trabalhador, que foi longe, muito longe, em sua trajetória iniciada no Nordeste.

 

Moacyr Luz, o Embaixador dessa Cidade
Brasil, 2025, 95 minutos, 12 anos
Direção: Tarsilla Alves
Roteiro: Hugo Sukman, Gabriel Meyohas
Participantes: Zeca Pagodinho, Fafá de Belém, Maria Bethânia, Teresa Cristina, Leila Pinheiro, Moyseis Marques, Jards Macalé, Guinga, Zé Renato, Baiano, entre outros
Produção Executiva: Tarsilla Alves, Pedro Gui e André Garcia
Fotografia: Rita Albano
Distribuição: Bretz Filmes

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