“O Último Azul” conduz Mascaro, Denise Weinberg, Santoro e Adanilo ao palco de Gramado ao som de “Rosa dos Ventos”, de Chico Buarque e Bethânia
Foto: Equipe de “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro © Edison Vara/Ag.Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano
A noite de abertura da quinquagésima-terceira edição do Festival de Cinema de Gramado foi embalada por versos de Chico Buarque, registrados em tom épico por gravação de Maria Bethânia: “Numa enchente amazônica/ Numa explosão atlântica/ E a multidão vendo em pânico/ E a multidão vendo atônita/ Ainda que tarde/ O seu despertar”.
No tapete vermelho (excepcionalmente azul), as atenções estavam concentradas em Rodrigo Santoro, um dos atores de “O Último Azul”, filme de Gabriel Mascaro, premiado com o Urso de Prata em Berlim, e convidado de honra do festival gaúcho. Por isso, em caráter hors concours.
O cineasta recifense se fez acompanhar de sua protagonista, Denise Weinberg, de Santoro, que receberia dali a pouco o Kikito de Cristal (trajetória no cinema internacional), e por seu elenco amazônico, liderado pelo ator indígena Adanilo.
No Tapete Azul, Santoro foi festejado por centenas de tietes, posou para uma multidão de fotógrafos e fez selfies com fãs. Vestido elegantemente de preto, o ator dividiu o cenário com a discreta Denise Weinberg, também de preto, com Gabriel Mascaro (idem) e com os colegas amazônicos. Estes sim, vestidos em cores alegres, com colares e enfeites. Adanilo, o mais conhecido deles, então, arrasou em traje étnico-futurista, que lembrava um (comportado) parangolé de Hélio Oiticica. Azul, claro! E, para completar, enfeitou uma das orelhas com arranjo de penas (azuis). Causou sensação.
Quem assistiu às poderosas e sintéticas (apenas 87 minutos) imagens de “O Último Azul” entendeu porque os versos buarqueanos de “Rosa dos Ventos” compuseram o fundo musical da midiática e longa marcha pelo “tapete azul”. A histórica gravação feita por Bethânia (em disco de 1971) serve de arremate à vibrante e calorosa trilha sonora do filme produzido por brasileiros, chilenos, mexicanos e holandeses.
O oitavo longa-metragem (o quarto ficcional) de Mascaro vem causando sensação desde sua estreia (e premiação) em Berlim. Já participou de 40 festivais e está a caminho de Toronto, no Canadá (começo de setembro). No Brasil, o filme inicia semanas de pré-estreias, seguidas de debates, para chegar aos cinemas (e ao público) dia 28 próximo.
“O Último Azul” espera decisão de júri (indicado pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Visuais), responsável pela escolha do título brasileiro que iniciará sua trajetória rumo ao Oscar internacional. Aquele que parecer mais adequado a disputar a cobiçada vaga. São 16 concorrentes. Dois deles (“O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça, e “Manas”, de Mariana Brennand) são pernambucanos.
“O Último Azul” merece os louros que vem recebendo?
Merece e com louvor. O filme, uma distopia com algo de futurista, impregnada paradoxalmente por nossa realidade sócio-política, sustenta-se em roteiro de grande originalidade. Escrita por Mascaro, em parceria com Tibério Azul, a trama acompanha a jornada de Tereza, de 77 anos, trabalhadora de frigorífico de beneficiamento de carne de jacaré. Ela será, compulsoriamente, enviada a uma colônia de idosos. Assim exige o governo.
A idade do confinamento era de 80 anos, mas caiu para 75. Tereza, porém, lúcida e com pique para o trabalho, não deseja este exílio compulsório. Tem um sonho, pequenas economias e está disposta a tudo para cumpri-lo. Foge, o quanto pode, das imposições do governo e da vigilância de seus agentes.
O filme, um ‘river movie’, acompanhará a fuga de Tereza, Amazônia adentro. Três personagens serão essenciais à narrativa. Cadu, o piloto de barco interpretado por Santoro (em transformação física das mais convincentes), o desatinado Ludemir (Adanilo), que promove vôos de ULM (ultra leve motorizado, dos mais precários) e, outra navegadora, a “freira” Roberta (a hispano-americana Miriam Socarrás). Ela também pilota um barco e vende bíblias condensadas em fino suporte digital.
Mascaro conseguiu realizar um filme que hibridiza gêneros e tem final libertário e (alvíssaras) feliz. Ele faz da paisagem amazônica um personagem e, longe do exotismo, ignora bichos ferozes, para concentrar-se em caramujo de baba azul-colírio e peixinhos que terão importância imensa na trama, pois são a razão central da estranha casa de apostas Peixe Dourado.
Denise Weinberg, protagonista absoluta do filme azul, tem desempenho notável, silencioso, minimalista. Fez por merecer o prêmio de melhor atriz no Festival de Guadalajara, no México. Rodrigo Santoro se entrega de corpo e alma ao barqueiro Cadu, portador de dores de amor, que vê, de coração partido, seu barco como uma prisão. Ele participa, se tanto, de 15 minutos da trama. Mas, como Marília Pera, em “Pixote”, permanece em nossa memória. Sem nenhum glamour, com a pele tostada, nos convence como um legítimo nativo da Amazônia de tantos rios.
Adanilo, manauara de feições indígenas, faz mais um homem dilacerado. Viciado em jogos de azar (no Peixe Dourado) e em álcool. Está perfeito.
Por fim, surge a mais inesperada das personagens, uma freira fora do esquadro, que mal acredita em Deus. Ela é interpretada pela atriz afro-cubana, Miriam Socarrás, uma força da natureza.
A produtora de “O Último Azul”, Rachel Daisy Ellis, contou, durante o debate do filme (em salão abarrotado do Clube Recreativo Gramadense), que antes de escolhê-la havia certa apreensão na equipe de Mascaro. Seria viável trazer uma atriz octogenária de Cuba e enfiá-la num barco circulante por águas cercadas de igarapés amazônicos?
O temor caiu por terra quando chegou o vídeo-teste, enviado de Havana: as imagens mostravam Miriam montada a cavalo e esbanjando energia. Foi escolhida. O que vemos na tela é uma coroa cheia de vida, que joga um bolão com a brasileira Denise Weinberg.

Antes da exibição de “O Último Azul”, Rodrigo Santoro subiu ao palco para receber o Kikito de Cristal. Agradeceu a láurea, destinada inicialmente a atores e diretores ibero-americanos, e agora redirecionada a brasileiros que fazem carreira aqui e no exterior. Caso de Santoro, que, no próximo dia 22 desse mês de agosto, fará 50 anos, e vem somando trabalhos internacionais como “300”, “Simplesmente Amor”, “Che”, “Os 33”, “O Tradutor”, “O Golpista do Ano”, entre outros.
O ator relembrou o primeiro longa de sua carreira, “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky, e sua entrega ao longa “Abril Despedaçado”, de Walter Salles. Agradeceu as oportunidades que teve (e continua tendo) nos EUA, na Europa e na América Hispânica, mas reafirmou seu imenso prazer em trabalhar no Brasil. No debate, na manhã seguinte, deixou claro que não mede a escolha de um personagem “pelo tempo que passará na tela”, mas, sim, “pelos desafios que ele traz”.
Registre-se, aqui, que o intérprete do barqueiro de “O Último Azul” estará em breve nas telas e telinhas (via Netflix) com outro longa-metragem, “O Filho de Mil Homens”, adaptação de Daniel Rezende (montador de “Cidade de Deus”) para romance do lusitano Valter Hugo Mãe.
O personagem de Rodrigo Santoro, o protagonista Crisóstomo, estará, mais uma vez, envolvido com as águas. Trata-se de um pescador. O filme, que une culturalmente o Brasil a Portugal, é um dos 16 integrantes da substantiva lista de candidatos à possível vaga brasileira na disputa pelo Oscar internacional.
Rodrigo fez questão de relembrar seu encontro com o escritor Valter Hugo Mãe, semanas atrás, na Flip, a Feira Literária de Paraty. Contou que “Valter Hugo ficou muito emocionado com nosso filme e disse, em público, que o achava melhor que o livro”. Para o ator, tudo indicava que o romancista português desejava, apenas, ser simpático. Mas, depois, em encontro privado, ouviu a mesma opinião do autor de “O Filho de Mil Homens”.
O ator indígena Adanilo, de 33 anos, voltou em grande estilo ao Festival de Gramado. Ano passado, ele teve a alegria de contar com dois filmes em competições diferentes — o curta “Castanho”, que ele dirigiu, e o longa “Oeste Outra Vez”, que se sagraria o grande vencedor do Troféu Kikito, e no qual interpreta um pistoleiro.
Adanilo, porém, não pôde participar do festival, pois interpretava Sidney, um “motorista de busão, pagodeiro, bate-bola e cheio de xaveco” na telenovela “Volta por Cima”, da Globo. E a agenda de gravações era intensa. Além do mais, Gramado vivia o momento de reconstrução dos estragos causados pelas enchentes. As águas inviabilizaram o uso do Aeroporto Salgado Filho (de Porto Alegre) e fez-se necessário montar esquema paralelo de transporte, usando a Base Aérea e o aeroporto alternativo de Caxias do Sul.
Agora Adanilo está em Gramado com a equipe de “O Último Azul” e feliz por ter cruzado o Tapete Azul ao lado dos colegas. Feliz, também, com os elogios recebidos por seu traje singular e pelo enfeite feito de penas, em formato de vistoso e delicado leque.
O amazonense Adanilo dá vida a Ludemir, um rapaz que vive do pouco que obtém da exploração de precário ultraleve. Tem vícios e sofreres para atravancar sua existência. Foi assim em “Noites Alienígenas”, de Sergio de Carvalho, vencedor acreano de Gramado 2022. E, também, no vencedor goiano do mesmo Kikito, “Oeste Outra Vez” (2024).
Está na hora do ator interpretar um personagem menos sofrido, não?
Ele sorri e diz que está pronto para qualquer desafio. Em breve, o veremos no novo longa-metragem do argentino Lisandro Alonso, chamado “Eureka”. Alonso, registre-de, é diretor de filmes de pesquisa de linguagem e temas, muito respeitado no país vizinho.
No momento presente, porém, Adanilo só pensa no “O Último Azul”.
O Último Azul
Brasil, Chile, México, Holanda, 2025, 87 minutos
Direção: Gabriel Mascaro
Elenco: Denise Weinberg, Rodrigo Santoro, Adanilo, Miriam Socarrás, Rosa Malagueta, Maria Alice Gomes, Wallace Abreu
Roteiro: Gabriel Mascaro e Tibério Azul
Fotografia: Guillermo Garza (México)
Montagem: Sebastián Sepúlveda (Chile) e Omar Guzmán (México)
Música: Memo Guerra
Locações: Manacapuru, Manaus, Novo Airão e vários igarapés
Produção: Rachel Daisy Ellis e Sandino Saraiva Vinay
Distribuição: Vitrine Filmes
Data de estreia: 28 de agosto
FILMOGRAFIA
Gabriel Mascaro é diretor e roteirista, nascido Recife-Pernambuco, em 24 de setembro de 1983
2010 – “KMF 1348 (doc, codireção de Marcelo Pedroso)
2009 – “Um Lugar ao Sol” (doc)
2010 – “Avenida Brasília Formosa” (doc)
2010 – “Doméstica” (doc)
2014 – “Ventos de Agosto” (ficção)
2016 – “Boi Neon” (ficção)
2019 – “Amor Divino” (ficção)
2025 – “O Último Azul” (ficção)
