Fest Brasília: 2ª noite da competição mostra dois filmes pernambucanos e crônicas de uma cidade inventada
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília
A segunda noite da mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro rendeu aplausos calorosos para um curta brasiliense -“Crônica de uma Cidade Inventada”, de Luísa Caetano, autora do sensível “Entre Vãos” – e aplausos, só que menos calorosos, para duas produções pernambucanas: o curta “Sem Coração”, de Nara Normande e Tião, e o longa “Brasil S.A.”, de Marcelo Pedroso.
“Crônica de uma Cidade Inventada” convoca pessoas que circulam pelo coração do Plano Piloto, a imensa Estacão Rodoviária, a contar fragmentos de suas vidas em um filme. Convoca também atores para interpretar vivências da cidade. Por 25 minutos, moradores da “inventada” capital brasileira e atores profissionais se misturam ao vivenciar seus relatos. Um morador de rua, misto de poeta e artista plástico improvisado, declama a letra inteira que Paulo César Pinheiro escreveu para a canção “Pesadelo”, parceria com Maurício Tapajós. Tal qual um Bispo do Rosário das ruas, ele escreve os versos em um cartaz colorido. E faz instalações variadas em jardins. Outro personagem revela seu ofício – michê – sem rodeios. Se há quem venda cimento, por que ele não pode vender o corpo? O filme equilibra-se intencionalmente entre o documentário e a ficção.
“Sem Coração”, apresentado em mostra de curtas, em Cannes, é uma ficção ambientada numa vila de pescadores alagoana. Um garoto vai passar férias no local e conhece “Sem Coração”. O apelido da menina deve-se ao fato dela ter um marca-passo implantado no órgão vital. Com bela fotografia de Ivo Lopes Araújo (que assina também as imagens de “Brasil S.A.”), o filme soma memórias de Nara “Dia Estrelado” Normande, criada em praia nas Alagoas, e de Tião (M.U.R.O), que foi garoto criado no Recife, a grande metrópole nordestina.
BRASIL S.A. – Marcelo Pedroso, que dirigiu o filme do fusca — “KFZ-1348” (com Gabriel Mascaro) – e “Pacific”, ambos longas-metragens, e os curtas “Em Trânsito” e “Câmara Escura”, faz de BRASIL S.A. uma reflexão crítica sobre o Brasil contemporâneo, que encontra uma de suas matrizes em “O Homem e Sua Câmara”, longa do soviético Dziga Vertov, recém-eleito pelo BFI e revista Sigth and Sound, o melhor documentário do mundo. O ensaio poético vertoviano é o ponto mais luminoso de uma série de filmes sobre metrópoles, que vai do alemão “Berlim, Sinfonia de uma Cidade” ao paulistano “São Paulo, Sinfonia da Metrópole”. Se filiarmos o filme de Pedroso a esta tradição, poderemos vê-lo como uma espécie de “Brasil, Sinfonia de um País”. Mas uma sinfonia politizada e movida por crítica cáustica. Sem recorrer a diálogos, Pedroso constrói narrativa de 72 minutos, enriquecida com trilha sonora original, composta por Marcelo Alves, e acrescida de “The Sound of Silence”, de Simon & Garfunkell, e um rap ostentação de Snoop Dogg. O filme motivou debate dos mais produtivos, em Brasília, pois Marcelo Pedroso e sua equipe (destaque para o montador Daniel Bandeira, diretor do longa “Amigos de Risco”) explicaram, com síntese e sólida argumentação, os conceitos que embasaram a construção alegórica desta ficção. Aliás, uma ficção com sólidas bases documentais. O protagonista do filme, um cortador de cana que, substituído pela mecanização, será mais tarde engajado (como astronauta) num projeto espacial, ganha vida na pele mestiça de Edmilson Silva, caboclo de lança do Maracatu Estrela de Ouro, que nunca havia trabalhado como ator, nem entrado num cinema. “Vi um filme num cinema, pela primeira vez, na última quarta-feira, aqui no Festival”, contou ele, no debate.
CAMINHOS DE VALDEREZ – Em 1972, Jorge Bodanzky e Hermano Penna realizaram, em Brasília, um curta-metragem chamado “Caminhos de Valderez”. A protagonista era uma jovem mineira, Valderez Caetano, hoje jornalista econômica das mais experientes e atuantes. Na noite de ontem, Luísa Caetano, sobrinha de Valderez, subiu ao palco do Cine Brasília para apresentar “Crônicas de uma Cidade Inventada”. Ao final de suas considerações sobre o filme, pediu que Jorge Bodanzky, que participa da mostra REFLEXOS DO GOLPE (de 1964), com “Iracema, Uma Amazônica” (parceria com Orlando Senna), que subisse ao palco. Ela o presenteou com um cópia digital de “Caminhos de Valderez”, um filme raro.
MOSTRA HORIZONTE BRASIL – Além das mostras competitivas de curta e longa-metragem nacional e brasiliense (Mostra Brasília, iniciada no final da tarde de ontem, com o Cine Brasília lotado), o Festival candango conta com três grandes mostras informativas: REFLEXOS DO GOLPE, que reúne filmes realizados desde o triunfo do Golpe Militar de 1964; a MOSTRA EDUARDO COUTINHO, com curadoria de Vladimir Carvalho, apresenta alguns dos pontos mais luminosos da carreira do cineasta, morto tragicamente em fevereiro, e a MOSTRA HORIZONTE BRASIL, com títulos contemporâneos. Um dos filmes mais aguardados desta mostra, que acontece no Museu da República, é TUDO POR AMOR AO CINEMA, do amazonense-paulista Aurelio Michiles. O filme revisita a trajetória de Cosme Alves Netto (1936 – 1996), cinéfilo, cineclubista e curador, por longos anos, da Cinemateca do MAM-Rio.