A Lei Rouanet e o blog da Bethânia
Por Fabio de Sá Cesnik e José Maurício Fittipaldi
Resolvemos entrar nesse debate para subsidiar o direito que todos os cidadãos têm de conhecer diferentes pontos de vista, além de jogar um pouco de lenha na fogueira. Alguns estão vendo na discussão a pretensa confirmação da necessidade de alterar a Lei Rouanet; outros estão defendendo o direito do artista de receber pelo trabalho que realiza. De nossa parte, estamos buscando evitar que discussões menores e de curto alcance venham a nublar uma visão mais abrangente sobre os rumos da política cultural no país.
A pretensa discussão encaminhada pelo Ministério da Cultura sobre o rumos da Lei Rouanet até início do ano passado mais se aproximou de um monólogo. A proposta de alteração da Lei Rouanet formulada naquele período era sofrível sob todos os pontos de vista: técnico-legislativo, político, de mercado, dos artistas, da população e de quem mais se possa imaginar. Aqueles que possam discordar já do primeiro parágrafo, atenção: não estamos criticando o discurso do Ministério do ponto de vista conceitual, mas sim a baixa qualidade técnica do texto que pretendia dar cabo às mudanças. Este continha ofensas seguidas ao principio da legalidade e não atingia a nenhum dos problemas apontados no discurso. Repetimos: não atingia a nenhum dos problemas apontados no discurso utilizado para fundamentá-lo.
O discurso era apresentado em duas facetas: uma voltada para mídia, buscando mostrar o quão nefasta e perversa era a Lei Rouanet, dominada pelos “homens de marketing”; e outra que apresentava as modificações propostas, como o aumento da ingerência do Estado nas decisões e o tolhimento da participação da sociedade atualmente garantida pela Lei Rouanet. A partir disso tudo mudaria, como num passe de mágica, com o assim batizado Procultura. Era um engodo. O texto protocolado na Câmara era, como dissemos, um desastre.
Para sorte de todos, ao longo de 2010, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara coletou opiniões mais heterogêneas no mercado e, ajudados por uma importante lucidez que surge no Ministério da Cultura nesse período, tivemos o substitutivo ao texto do governo aprovado na Comissão de Educação e Cultura. A autora do substitutivo, deputada Alice Portugal, realmente acertou a mão nas modificações realizadas e hoje temos um bom projeto tramitando no Congresso Nacional. Ressalte-se: completamente diferente do texto original (pode ter ajustes e melhoras pontuais ainda ao longo de sua tramitação, mas o texto que circula é muito melhor em todos os sentidos e muito mais afinado com o discurso original que todos aplaudiam).
Percebendo que do ponto de vista técnico-legislativo o projeto avançou, como fica o resíduo do discurso? Sobrou para a população comum a percepção de que a Lei Rouanet é uma perversidade e ponto. O pior é que o “tiro no pé” sai da boca justo das pessoas do meio cultural, e não representa a verdade. Senão vejamos: de todos os incentivos concedidos pela União, a Rouanet representa cerca de 1,2% do total. A calha sob a qual as pessoas físicas ou empresas podem destinar recursos a atividades culturais concorre com inúmeras outras atividades, dentre as quais o cinema e audiovisual, esporte e assistência social (fundos da criança e adolescente e fundos de amparo ao idoso). Destes todos, só a Lei Rouanet confere aos doadores e patrocinadores benefício fiscal inferior a 100% (em grande parte dos casos como uso de Rouanet o benefício é da ordem de 64% do valor patrocinado, e o patrocinador arca com os 36% restantes).
A primeira questão que se coloca, do ponto de vista da renúncia fiscal da União, então, é: se a ideia é acabar com a Lei Rouanet, porque não acabar junto com todas as outras? É óbvio que só ela é mencionada pois somente ela foi alvejada pelo irresponsável discurso. Virou a grande vilã não apenas do setor cultural, mas de todas as políticas do Governo Federal. Nada mais injusto.
E o resultado da aplicação de recursos? Está patente para todos os cidadãos: filmes no cinema ocupando mais de 20% do market share, programação extensa de teatro e espetáculos de música, exposições da maior importância, projetos sócio-culturais belíssimos: Sinfônica de Heliópolis (trabalho brilhante do Instituto Bacarelli), projeto de leitura na Amazônia “Vagalume” e outras centenas, senão milhares, que não caberiam neste artigo.
Especificamente em relação ao blog da Bethânia, perguntamos: por que não mais um belo projeto de poesia a ser difundido via internet de forma aberta a toda população? A ideia em si é excelente, e plenamente adequada aos objetivos da Lei Rouanet. Relegada às relações de mercado, uma artista como a Bethânia poderia dedicar-se seriamente à difusão da poesia? Não estaria aqui a Lei Rouanet cumprindo seu papel? Não conhecemos o conteúdo do projeto no seu detalhe e nem dele somos parte, para aqueles que já pensem no petardo leviano de defesa em causa própria.
Para além da questão do blog da Bethânia, está em discussão um modelo bem-sucedido de financiamento conjunto, parceria entre Estado e iniciativa privada, que funciona. Recomendamos: ampliemos o foco.
Do contrário, talvez valha a pena aos críticos de plantão defender, junto com o fim da Lei Rouanet, o exame de renda das pessoas que compraram automóveis com isenção de IPI, pois no caso é renúncia fiscal para estimular o aumento do patrimônio daqueles que podem comprar um automóvel (!). Mais: defendam que os carros adquiridos com isenção de IPI circulem com a bandeira do Brasil e logomarca do Governo Federal, e seus proprietários obrigados a dar carona para a população brasileira que padece de um bom sistema de transporte público. E por fim: a imunidade tributária de papel para impressão de livros, defendida por Jorge Amado na década de 40 como universal, seja restrita a livros de destinação social. Ora, faça-nos o favor.
Fabio de Sá Cesnik e José Maurício Fittipaldi são advogados sócios do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados. Fabio é autor do livro “Guia de Incentivo à Cultura” e coautor dos livros “Projetos Culturais” e “Globalização da Cultura”.