Astérix… como nos velhos tempos
Quando René Goscinny, autor das histórias de Astérix, faleceu prematuramente em 1977, com apenas 51 anos de idade, temeu-se pela continuidade da qualidade dos roteiros dos quadrinhos do personagem, sempre bastante alta. Foram 23 títulos que oscilaram entre o ótimo e o excelente. Sem Goscinny, Albert Uderzo se comprometeu a prosseguir com a criação das famosas historietas da aldeia gaulesa que resistia heroicamente aos romanos dominadores, mas muita gente torceu o nariz. Afinal, Uderzo era “apenas” o desenhista, e não o argumentista.
Os caprichados álbuns do personagem continuaram a ser publicados, talvez sem o mesmo brilho de antes, isto é discutível, mas o fato é que – tal como um gaulês irredutível – Uderzo publicou mais 11 títulos, entre 1979 e 2009, e no ano seguinte anunciou sua aposentadoria. Em 2013, foi lançado o primeiro álbum desenvolvido por outros artistas, “Astérix entre os Pictos”, de Jean-Yves Ferri e Didier Conrad.
O gigantesco sucesso editorial foi adaptado para os cinemas em uma dúzia de oportunidades, sendo oito delas em longas de animação e quatro em live action. As animações nunca chegaram a empolgar muito, e os live action até ganharam uma boa repercussão, mesmo porque era, no mínimo, divertido, ver o astro Gérard Depardieu encarnando o impagável glutão Obélix.
A décima terceira adaptação de Astérix para as telas chega agora aos cinemas brasileiros, e a notícia é das melhores: o resultado ficou ótimo. Feita em 2014, a partir do álbum “Astérix e o Domínio dos Deuses”, de 1971, o longa animado de mesmo nome retoma o humor ácido de Goscinny e traz uma trama simplesmente genial. O ponto de partida, claro, é sempre o mesmo: César quer dominar a aldeia dos irredutíveis gauleses, mas desta vez ele tem um plano de fato dos mais perigosos para levar a cabo suas imperialistas intenções. Sabedor de que não há força física capaz de derrotar os gauleses, já que eles detêm a fórmula da invencível poção mágica, o imperador de Roma decide, então, contaminar a aldeia com um vírus poderoso, uma doença corrosiva que destrói os mais importantes valores de toda e qualquer sociedade, um flagelo para o qual não há cura nem vacina: o consumismo. Desta forma, Roma manda construir bem ao lado da aldeia de Astérix – com trabalho escravo, obviamente – nada menos que um condomínio de luxo, para onde se mudam os habitantes mais burgueses e desagradáveis da metrópole. Com a presença do condomínio, logo a aldeia se torna um caos social: os preços quadruplicam, a mentira e a concorrência desleal se estabelecem, e a ganância mina os valores da identidade cultural dos gauleses que, agora, ao invés de combaterem os romanos, querem ser iguais a eles. De quebra, a história ainda desenvolve uma subtrama relacionada à exploração do trabalho escravo que é impossível não relacionar com a atual situação dos imigrantes e refugiados não apenas na Gália… ou melhor, na França, como também em todo o Império Rom… ops… em toda a Europa.
Além do ótimo roteiro, a qualidade da animação também é das melhores graças ao seu equilíbrio. O longa passa longe do traço duro e pouco dinâmico das primeiras adaptações, ao mesmo tempo em que resiste bravamente às facilidades de espetacularização gratuita que as modernas técnicas permitem, obtendo-se assim um resultado muito mais próximo e fiel do estilo de Uderzo, que nos acostumamos a apreciar em todas estas décadas dos álbuns originais. Mérito para a direção e adaptação de Alexandre Astier, criador da premiada série da TV francesa “Kamelott”.
Em tempos de megaproduções de megaestúdios interpretadas por megaherois, provavelmente, “Astérix e o Domínio dos Deuses” fará uma passagem meteoricamente cult pelos cinemas brasileiros. Não importa. Vale pela sempre ativa resistência francesa.
Astérix e o Domínio dos Deuses | Astérix – Le Domaine des Dieux
(França, 86 min., 2014)
Direção: Louis Clichy
Distribuição: Bonfilm
Estreia: 7 de abril
Por Celso Sabadin, crítico de cinema