Olhar de Cinema premia “Luz nos Trópicos”, river movie de Paula Gaitán
Por Maria do Rosário Caetano
O júri oficial da nona edição do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba elegeu “Luz nos Trópicos”, de Paula Gaitán, brasileira nascida na Colômbia, como o melhor filme da competição internacional. Já o público preferiu “A Metamorfose dos Pássaros”, da lusitana Catarina Vasconcelos, que ganhou, também, o prêmio de Contribuição Artística. A Crítica, representada por júri da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), premiou “Los Lobos”, do mexicano Samuel Kishi.
“Pajeú”, do cearense Pedro Diógenes, um dos integrantes do Coletivo Alumbramento, foi eleito o melhor longa brasileiro. Esse prêmio abarca filmes exibidos nas três mostras competitivas do festival curitibano (a Olhar, a Novos Olhares e a Outros Olhares). Esse ano, foram sete os candidatos (além de “Luz nos Trópicos” e “Pajeú”, estavam em competição o pernambucano “Agora”, de Déa Ferraz (menção honrosa), o paraense “O Silêncio do Lago”, de Fernando Segtowick, o mineiro “Entre Nós Talvez Estejam Multidões”, de Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica, e os paulistas “A Flecha e a Farda”, de Miguel Antunes Ramos, e “O Índio Cor-de-Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels”, de Tiago Carvalho (menção honrosa na Mostra Outros Olhares).
As decisões dos júris foram ousadas e instigantes. Ao premiar “Luz nos Trópicos”, o “river-movie” de Paula Gaitán, rodado em Nova York, Pantanal, Chapada dos Guimarães e Alto Xingu, o Olhar deu visibilidade a um filme de longuíssima duração (4h20′), que se passa, em grande parte, nas memórias de seu protagonista, Igor, um descendente da etnia Kuikuro (interpretado pelo ator paraense Begê Muniz). Um jovem que busca sua ancestralidade. Em suas evocações, o caudaloso filme materializa imagens de rara beleza e nos faz acompanhar, sensorialmente (já que em nada se aproxima do épico histórico), os deslocamentos de homens e mulheres por rios, pântanos e florestas. No elenco, Arrigo Barnabé, Clara Choveaux (de “Exilados no Vulcão”), o português Carloto Cotta (de “Diamantino”), Kanu Kuikuro, Maía Senise, Nilton Amazonas, entre outros. A fotografia, de grande beleza, é de Pedro Urano.
O público do Olhar de Cinema preferiu “A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos, reconhecido também pelo júri oficial “por sua notável contribuição artística”. Esse belíssimo filme português transformou-se na sensação do festival. Conseguir vê-lo tornou-se um desafio, tamanho e favorável foi o boca-a-boca formado no espaço digital. E com toda razão. “A Metamorfose dos Pássaros” (que título maravilhoso!) exala beleza, delicadeza e invenção. E, coisa rara, em se tratando de um filme experimental, se deixa ver com imenso prazer, renova nosso olhar, nos encanta.
Ao longo de 101 minutos, Catarina mergulha em suas lembranças familiares para evocar a mãe, que morreu cedo, e o pai. E o faz com tal liberdade criativa, que nos sentimos cativos dessas memórias, que são dela, mas parecem ser nossas também. O pai, homem do mar (como tantos, no país que se fez grande graças à navegação), ama a esposa, que em terra firme cria, praticamente sozinha, os cinco filhos. A saudade é grande dos dois lados. Um dos filhos será, mais tarde, preso pela Pide, a polícia política do ditador Salazar. A mãe chora por dias. A vida segue. E vamos mergulhando nas lembranças de Catarina, sendo seduzidos por um homem com cabeça de pássaro, uma mulher que usa um cavalo-marinho como adorno de orelha, enfim, por imagens raras, raríssimas.
O Prêmio da Crítica, atribuído pelo Júri Abraccine, coube ao mexicano “Los Lobos”, de Samuel Kishi. Embora aparente ser o mais narrativo dos filmes selecionados pelo Olhar de Cinema, isto não quer dizer que fuja dos propósitos do festival (buscar filmes de experimentação de linguagem e, se possível, com capacidade de dialogar com o público). “Los Lobos” só tem aparência de filme narrativo. Na verdade, com seus personagens complexos e três notáveis protagonistas (uma mãe e duas crianças), o segundo longa-metragem de Samuelse constrói com diálogos econômicos e muitos silêncios, roteiro lacunar, que instiga nossa imaginação, nos surpreendendo sempre. E tudo vem banhado em generosidade, sem nenhum pieguismo.
Uma jovem mãe (Martha Reis Árias) deixa o México natal, na companhia de dois filhos pequenos, Max e Leo (os irmãos Maximiliano e Leonardo Najar Márquez), e vai tentar a sorte em Albuquerque, no Novo México (o nome já dá a entender de quem eram as terras anexadas ao território estadunidense). Ela trabalha o dia inteiro, em dois empregos braçais. Sem dinheiro, não tem como contratar uma cuidadora. Deixa os filhos trancados num micro-apartamento. Estabelece com eles decálogo de rigorosas regras a seguir. Uma delas consiste em permanecer no quarto (não sair por nenhuma razão). A recompensa: ela os levará à Disneylândia.
Em tom sóbrio e duro, o filme se fará construir. A imaginação das crianças, proibidas de brincar em espaços ao ar livre, se expressa nas paredes do quarto. Eles desenham bichos e ninjas. Samuel Kishi recorre à animação desses traços, dando origem a belos momentos oníricos. Os dois meninos, maravilhosos em seus desempenhos, foram preparados pela brasileira Fátima Toledo, “coach” de tantos filmes (desde “Pixote, a Lei do Mais Fraco”, 1980, de Hector Babenco).
Outro mérito do filme mexicano: nos fazer entender o que leva, concretamente, uma pessoa a buscar cultos evangélicos. Sem provisões para alimentar os filhos e dinheiro para o aluguel, a mãe procura uma igreja. Além de conforto espiritual, ela ganhará, ao final, uma cesta básica. Regressará ao pequeno quarto e terá alimento, ao menos temporariamente, para dar aos filhos. O olhar do diretor não é de rejeição, nem de aceitação. É de compreensão. Por sorte, a distribuidora Vitrine já comprou “Los Lobos”. Uma sugestão: que o nome brasileiro seja “Os Lobos Ninja”.
Da produção internacional, vale registrar uma raridade não destacada pelo júri: o galego-espanhol “Longa Noite”, de Eloy Enciso. Em enxutos 90 minutos, o cineasta, formado na Escuela Internacional de Cinema e TV de Cuba, realiza um filme que lembra as secas narrativas da dupla Straub-Huillet, e evoca memórias do falangismo franquista. Cinema político de alta potência, sem apelos retóricos, composto sobre rostos e vozes de vários atores. Estes evocam lembranças presentes em trechos de cartas ou peças teatrais de altíssimo valor. As imagens são impregnantes.
“Pajeú”, de Pedro Diógenes, é um filme que tem tudo a ver com o diálogo que os integrantes (do já dissolvido) Coletivo Alumbramento mantêm com o cinema de horror. Um filme híbrido, que soma documentário e ficção para mergulhar nas buscas de uma professora, Maristela (Fátima Muniz), por um rio que a especulação imobiliária encobriu na enorme Fortaleza (2,7 milhões de habitantes). A capital nordestina construiu casas, prédios, mercados e repartições públicas sobre as águas escondidas do Pajeú.
Maristela conversa com conhecedores profundos da história do rio subterrâneo, destaque para o pesquisador Nirez (Miguel Ângelo de Azevedo, de 86 anos) e com jovens que nada sabem sobre as águas encobertas do Pajeú. Em momentos de angústia e pesadelo, a inquieta professora encontra seus monstros. Eles brotam das águas-esgoto do rio oculto pelo poder imobiliário.
A nona edição do Olhar de Cinema aumentou exponencialmente seu público, já que os filmes foram transmitidos on-line para todo o país (houve compra de ingressos vindas de 25 unidades da Federação). A participação do público foi tão expressiva, que o comando do festival decidiu criar o Prêmio Cinefilia para aqueles que mais filmes viram. E, registre-se, a plataforma do próprio Olhar, que transmitiu o festival, é de primeira qualidade. Nada fica a dever, por mais espantados que fiquemos, a megaplataformas como Netflix e Amazon.
Quem quiser conferir os vencedores pode fazê-lo, hoje (sexta-feira, 16 de outubro), a partir das 19h. Os filmes permanecerão disponibilizados até às 19h de amanhã, sábado.
Confira os premiados:
. “Luz nos Trópicos”, de Paula Gaitan (Brasil) – melhor filme
. “Victoria”, de Sofie Benoot, Liesbeth De Ceulaer e Isabelle Tollenaere (Bélgica) – Prêmio Especial do Júri
. “A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina de Vasconcelos, (Portugal) – Prêmio de Contribuição Artística, Prêmio do Público
. “Los Lobos” , de Samuel Kishi (México) – melhor filme pela Crítica – (Abraccine – Associação Brasileira de Cíticos de Cinema) melhor filme pela Crítica
. “Pajeú”, de Pedro Diógenes (Ceará) – melhor longa brasileiro
. “Agora”, de Dea Ferraz (Pernambuco) – menção honrosa
. “O Ano do Descobrimento”, de Luis López Carrasco (Espanha) – melhor filme da Mostra Novos Olhares
. “Visão Noturna” , de Carolina Moscoso Briceño (Chile) – melhor filme da Mostra Outros Olhares
. “O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels”, de Thiago Carvalho (SP) – menção honrosa
. “Telas de Shanzhai”, de Paul Heintz (França) – melhor curta-metragem
. “Memby, de Rafael Castanheira Parrode (Goiás) – melhor curta brasileiro
. “A Mulher que Sou” (PR), curta-metragem de Nathália Tereza – Prêmio Berenice Mendes da Avec (Associação de Cinema do Paraná)
. “Meia Lua Falciforme” (PR), curta-metragem de Dê Kelm e Débora Evellyn Olimpio – Prêmio AVEC (Associação de Cinema do Paraná) de Destaque do Júri