Mostra enfrentou ameaça de bomba, encantou-se com Pelechian e uniu dois veteranos das imagens
Foto: “A Última Ceia”, de Tomas Gutierrez Alea
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).
A décima-quinta dessas lembranças tem a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, um dos festivais mais antigos e tradicionais do país – criado há 46 anos – como cenário.
Antes de evocarmos o encontro histórico entre dois decanos do cinema – o cineasta português Manoel de Oliveira e o diretor de fotografia mexicano Gabriel Figueroa –, lembraremos momento pouco conhecido da história da Mostra, pois aconteceu em solo brasiliense. Lembraremos, também, a passagem do “aborrecido” soviético-armênio Artazav Pelechian por São Paulo, e, aí sim, o encontro do diretor de “Vale Abrahão” e do fotógrafo de Buñuel, Emílio Fernandez, John Ford e John Huston.
A Mostra, paulistaníssima, tanto que carrega o nome da cidade em sua marca, chegou pelo menos uma vez a Brasília. E isto aconteceu nos anos do governo militar. Em 1978, o curador de cinema da Fundação Cultural do Distrito Federal, Marco Antônio Guimarães, manteve entendimentos com Leon Cakoff (1948-2011), criador da Mostra SP, para que se levasse à capital federal um resumo do grande panorama do cinema internacional, exibido para milhares de paulistanos. Afinal, a estreia do evento, no Masp (Museu de Arte Moderna), causara alvoroço em cinéfilos de todos os Brasis.
Tudo acertado entre o gestor cultural candango e o crítico paulistano, foram selecionados (pelo próprio Cakoff) sete títulos que ele julgava os mais notáveis e adequados. Em seus primeiros anos, a Mostra não chegava a exibir 200, 300 (até 400 filmes), como passou a acontecer nos anos 2000. Mas o cardápio já era bem farto e instigante.
Todos os filmes selecionados haviam causado furor em São Paulo. Três deles causariam igual sensação em Brasília: “Deus, Pátria, Autoridade”, um documentário português de Ruy Simões, o boliviano “Chuquiago”, de Antonio Eguino, do grupo Ukamau, fotógrafo de muitos dos filmes de Jorge Sanjinés, e o cubano “A Última Ceia”, de Tomas Gutierrez Alea, o Titón.
As sessões aconteceram no cinema da Fundação Cultural, sempre lotado, com público entusiasmado, que discutia cada filme com fervor cívico-cultural. Mas aí estourou a bomba. Recados (“ordens superiores”) diziam que não seria permitida a exibição do filme cubano num cinema administrado pelo poder público (no caso, o GDF – Governo do Distrito Federal). Que “A Última Ceia” (momento máximo de Titón ao lado de “Memória do Subdesenvolvimento” e “Morte de um Burocrata”) estava “proibido”.
Leon Cakoff nunca foi de engolir desaforo. Ele conseguira as devidas autorizações para exibir o longa cubano em São Paulo. “A Última Ceia” fôra até escolhido como o melhor filme do ano pelo público (não existia júri oficial na Mostra dos anos pioneiros).
Nervosas articulações de bastidores, em plena e ultravigiada capital federal, mostraram que o jeito era buscar uma sala privada para a sessão. Mas onde encontrá-la, se todos os cinemas tinham programação definida até meia-noite? (Lembremos que nos anos 1970, salas de cinema viviam lotadas).
Naquela segunda-metade da década de 1970, dois grandes exibidores dominavam o circuito brasiliense – o Grupo Severiano Ribeiro, cuja ponta de lança era o imenso Cine Atlântida, e a Rede Karim, do empresário Karim Nabut (cuja sala-vitrine era o imenso Cine Karim, de tela panorâmica, na Asa Sul). O empresário dispôs-se a ceder uma sala (o Bristol, enfurnado num subsolo do SDS – Setor de Diversões Sul), desde que não fosse obrigado a alterar sua grade de filmes. Resultado: programou-se “A Última Ceia” para a meia-noite.
Os cinéfilos se armaram de coragem e fúria. A ordem era desafiar a exdrúxula proibição. O país vivia mergulhado no obscurantismo político. O presidente Ernesto Geisel, que prometia “abertura lenta, gradual e restrita”, havia assinado o Pacote de Abril, sedimentado nos poderes que lhe eram conferidos pelo AI-5, e colocara o Congresso Nacional em recesso forçado. Em outubro, mês histórico da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o general-presidente enfrentou a linha dura e derrotou o grupo de extrema-direita incrustado nas Forças Armadas, comandado pelo também General Silvio Frota (ministro do Exército). O país vivia em ebulição. Na UnB, greve que durara dois meses, culminaria com a expulsão de 30 alunos e suspensão de outros 30.
A divulgação da sessão midnigth da “Ceia” servida pelo Titón cubano só circulou de boca em boca. Mesmo assim, apareceram ameaças de que bomba seria colocada no cinema. Que as pessoas não fossem ao Conic (apelido do centro comercial, onde funcionavam diversas salas de cinema e noites de farra ambientadas na Boate Bataklan, homenagem à telenovela inspirada na “Gabriela” de Jorge Amado).
Os cinéfilos brasilienses – em maioria estudantes da UnB – não se intimidaram. Meia-noite, uma multidão se aglomerava nos corredores escuros e estreitos que levavam ao Cine Bristol (que não existe mais). A sala lotou e ficou gente de fora. Não houve explosão real de nenhuma bomba. Se houvesse, haveria uma carnificina, pois o cinema funcionava num — vale repetir — subsolo. Nunca mais um filme do maior cineasta da história de Cuba, Tomás Gutierrez Alea (1928-1996), causou tamanho frisson em Brasília. Nem seu maior sucesso comercial – o ótimo “Morango e Chocolate” (parceria com Juan Carlo Tabío) – seria visto por tantas pessoas, em uma única sessão, numa morna madrugada candanga.
A Mostra SP recebeu dezenas de convidados de muita (ou futura) fama. Um (então) desconhecido Quentin Tarantino, com seu primeiro longa (“Cães de Aluguel”), Abbas Kiarostami, em 1994, que encantou-se com os restaurantes-a-quilo, Pedro Almodóvar, que abarrotou o auditório do Maksoud Plaza com centenas de jornalistas e fãs (“A Flor do meu Segredo”, fotografado pelo brasileiro Affonso Beato, foi exibido no vão livre do Masp), o casal japonês Mariko Okada e Yoshishide Yoshida, ela, atriz de Ozu e tantos filmes, ele, diretor da Era de Ouro do Cinema Japonês. A beleza da diva nipônica, nascida em 1933, era ainda tão aliciante, que muitos seguiam o casal por onde ele andasse. E a dupla acompanhava as sessões de mostra especial de filmes protagonizados por ela ou dirigidos por ele.
Houve, também, momentos memoráveis na Mostra, com encontros com criadores do calibre de Marco Bellocchio, Jia Zhang-ke (duas vezes), Geraldine Chaplin (elétrica como uma enguia), Jafar Panahi, etc., etc. Mas antes de chegarmos aos “dinossauros”, que, em 1995, somavam juntos quase 200 anos de dedicação às imagens, evoquemos uma rara figura: Artavazd Pelechian, nascido na Armênia em 1938. Portanto, um cineasta soviético, já que seu país natal tornou-se uma das 15 repúblicas que compunham a URSS.
O cineasta euro-asiático formou-se em Moscou, na mais antiga escola de cinema do mundo, a VGIK (hoje Universidade de Cinema Sergei Gerasimov). Ele dedicou sua vida à realização de documentários poéticos, com um quê de panteístas, experimentais, inspirados nos ensinamentos dos conterrâneos Dziga Vertov e Sergei Eisenstein (tão diferentes entre si, mas igualmente inventores de linguagem).
Quando Pelechian desembarcou em São Paulo, para participar da décima-oitava edição da Mostra SP (1994), com ele chegaram algumas daquelas que seriam suas “marcas definidoras”. Ele era reservado, não era de muita conversa, não estava interessado em entrevistas, nem confirmava se realmente compareceria à Sala Paulo Emílio do Centro Cultural São Paulo, onde deveria fazer palestra depois da exibição de seus curtas e médias mais famosos (“Os Habitantes”, 1970, “As Estações”, 1975, “Nosso Século”, 1983, e o então recente “Vida”, 1993). Lembremos que a obra do soviético-armênio é seminal, apaixonante, obrigatória, mas bissexta. Ao longo de seus 84 anos, realizou – até agora – perto de 15 filmes (curtos e médios, em maioria).
O público que lotou a Sala Paulo Emílio assistiu, extasiado, aos filmes de Pelechian. Nunca vira nada igual (veria, mais tarde, algo parecido – o cinema do italiano Vittorio “Banditi a Orgosolo” Setaro, que nos chegaria tardiamente). Finda a projeção, esperamos pacientemente a chegada do realizador “moscovita”. Ele entrou na sufocante sala do CCSP com cara de poucos amigos. Motivado a iniciar a palestra, disse que não faria palestra nenhuma. No máximo responderia a algumas perguntas do público (a tradutora amaciava as duras colocações do grande documentarista, que o conterrâneo Paradjanov definia como “um gênio”).
As perguntas foram se sucedendo. No começo, eles as respondia sucintamente. Depois foi se descontraindo. Quebrou-se o gelo, a barreira da língua (não me lembro se ele expressou-se em russo ou armênio), e a conversa durou mais do que esperávamos. E foi iluminadora.
Recentemente, o IDFA, o poderoso Festival de Documentários de Amsterdã, prestou grande homenagem a Pelechian. E ele conta, no Brasil, com admiradores convictos, como os cineastas Joel Pizzini e Evaldo Mocarzel. O norte-americano Godfrey Regio (de “Koyanisqaatsi”) é tido como um dos documentaristas influenciados pelo colega armênio.
E chegamos a 1995, ano do Centenário do Cinema. A Mostra viveu, naquele momento, seu ano de ouro. Muitos convidados internacionais e brasileiros, catálogo com 180 páginas e capa de Kiarostami (evocando a Avenida Paulista e a cinefilia paulistana), duas retrospectivas (uma de Moshen Makmalbaf, outra de Gabriel Figueroa, o criador do “cielos en blanco y negro” dos melodramas nativistas da Pelmex e da fotografia dos clássicos “Los Olvidados” e “Nazarin”, ambos de Buñuel).
Se Pelechian era reservado e “na dele”, o velhinho Figueroa era um mexicano encantador, falante, muito bem-vestido, com cachecol no pescoço, que distribuia sorrisos e cumprimentos para todos, sempre ao lado da esposa (Antonieta Flóres Figueroa) e do filho Gabriel Figueroa Flóres. Nascido em 1907, na capital mexicana, o fotógrafo, que ampliou a beleza das divas María Felix e Dolores del Río (iluminado-as como se fossem madonas de altar, com auréola e tudo), desembarcou em São Paulo aos 88 anos.
Manoel de Oliveira, nascido na cidade do Porto, a São Paulo lusitana, em 1908, tinha 87. Portanto, juntos, somavam 175 anos de vida, todos dedicados a uma única paixão – o cinema. Figueroa, além de exposição de fotos fixas, ganhou retrospectiva com sucessos dirigidos por Emilio “Indio” Fernández (“as Abandonas”, “Enamorada”, “Flor Silvestre”, “A Pérola” e “Rosa Blanca”), Roberto Gavaldón (“O Galo de Ouro” e “Macário”) e Luis Buñuel (“Os Esquecidos” e “Nazarin”). Algum tempo depois, Leon Cakoff dedicaria um livro ao grande artista mexicano, que morreria dois anos depois de sua visita à metrópole paulista.
O encontro de Figueroa e Manoel de Oliveira aconteceu no Maksoud Plaza, e teve, além de Leon Cakoff, outro entusiasmado mediador – o cineasta Walter “Central do Brasil” Salles. O encontro, testemunhado por jornalistas, foi marcado pela cordialidade (ambos muito bem-humorados, falantes, cultos e cheios de histórias para contar). Se o mexicano partiria nonagenário, o que é já um feito e tanto, o que dizer de Manoel de Oliveira?
O diretor de “Aniki-Bobó”, “Francisca”, “Non ou Vã Glória de Mandar”, “Os Canibais”, “Belle Toujours” e “O Gebo e a Sombra” só partiria, aos 104 anos, em plena atividade. Um espanto.