“Milonga” vai além, no Cine Ceará, do minimalismo-melancólico, força dominante no cinema uruguaio
Foto: Cesar Troncoso e Laura González ® Rogerio Resende
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (CE)
“Milonga”, longa-metragem de estreia da uruguaia Laura González, chegou à competição do Cine Ceará como “um novo “Whisky”. Ou seja, mais um exemplar do minimalismo-melancólico, força mais expressiva do cinema de nosso vizinho platino.
Até sua metade, o filme da realizadora uruguaia mantém, sim, um fértil diálogo com a obra de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, que, em 2004, revitalizou o cinema uruguaio e o recolocou no circuito dos festivais e telas internacionais.
Em sua segunda metade, porém, “Milonga” percorre novos caminhos. Deixa a crônica melancólica de “Whisky”, centrada em três personagens de vidas miúdas, e passa a dialogar com o cinema de gênero, com ênfase em trama policial-familiar. E salpicada de ingredientes de suspense.
Este diálogo ficará explícito na melhor sequência do filme, aquela em que a protagonista, com o pé enfaixado, recebe inesperada visita. Ao decidir não atender ao visitante, ela enfrentará, em clima hitchcokiano, o assédio (da furiosa visita) à sua casa, escondendo-se para não ser vista. E, atônita, irá vislumbrar o que se passa lá fora por pequenas frestas existentes em cômodos de sua residência.
O filme reúne três astros do cinema platino-andino: a chilena Paulina García, de “Glória”, o uruguaio Cesar Troncoso (“O Banheiro do Papa”) e o argentino Jean-Pierre Noher (“Um Amor de Borges”). Paulina interpreta Rosa, protagonista absoluta da trama; Troncoso dá vida a Juan, um prestador de serviços (pintura, consertos hidráulicos) e Noher incorpora o cunhado (da protagonista), um homem dominado pela esposa.
A viúva Rosa vive solitária em uma casa antiga e espaçosa. Um dia, ao receber um possível comprador de camionete utilitária, o faz-tudo Juan, ela vislumbra a oportunidade de libertar-se de um passado de opressão.
Além de adquirir o veículo, Juan recebe encomenda para pintar os muros que cercam os jardins de Rosa. Primeiro de branco, depois de verde esmaecido, cor que ela aprecia. Na verdade, a mudança tem mais a ver com o prolongamento da permanência dele ao alcance dos olhos dela, que com preferências cromáticas.
A solitária viúva andava afastada de amiga efusiva e solar, de nome Margarita (Layla Reys). Em vão, a colega tenta arrancá-la do clima de tristeza e levá-la a uma milonga, espécie de “gafieira” uruguaia, movida a tango. Rosa resiste. Até que um dia aceita “milonguear” e convida Juan a estar com ela e com o casal Margarita e Paco (Eduardo da Luz). Este, exímio bailarino e namorado da amiga, é afro-uruguaio e derrama ginga, alegria e vitalidade.
Na segunda parte do filme, o espectador vai montar quebra-cabeças, composto de lacônicos flashbacks, que explicarão por que Rosa tenta, em vão, visitar o filho encarcerado.
O que levou o rapaz, Sergio (Rafael Beltran), à prisão? Por que ele, com a cumplicidade da esposa, não quer receber a vista da consternada mãe? Por que ele rejeita as caixas recheadas de saborosos alimentos enviadas por Rosa?
Essas respostas virão ao término dos 106 minutos de narrativa, urdidos com a tradicional (minimalista e melancólica) sutileza uruguaia. É tamanha a sutileza, que Laura González chegou a sugerir, durante o debate, que seu filme “seja visto várias vezes!”
“Milonga” parece, em sua delicada primeira parte, uma história de amor. A solitária viúva, mulher culta e bem posta na escala social, parece realmente interessada no pintor de paredes. Ele, recém-separado da mulher, também parece muito interessado por ela. Só não se dá bem com Coquita, a cachorra tão estimada por sua tutora. Mas o filme nada tem de previsível. Seu roteiro, tão detalhado, tomará rumo desconcertante. E, em certo ponto, até inverossímil. Em especial, no que diz respeito à relação de Sergio, o filho encarcerado, com a mãe.
Todos os personagens masculinos (exceção para o malemolente Paco) são tóxicos. Frente a esta constatação, Laura González, também roteirista do filme, retruca: “não idealizei nenhuma personagem, nem feminina, nem masculina. Todas são seres complexos, com falhas, como acontece na vida mesma”.
Ao assegurar que “não condenou nenhum de seus personagens masculinos”, Laura lembrou a composição de Estella (Paola Venditto), esposa de Rômulo, o cunhado interpretado por Jean-Pierre Noher. “Ela é uma mulher agressiva e, como todas as personagens, composta com sombras e luminosidades”.
Para justificar a rejeição do filho (encarcerado) em relação à mãe, a diretora-roteirista lembrou que “o rapaz e sua esposa Alejandra (Clara Alonso) tudo fizeram para ajudar Rosa a livrar-se da tirania do marido”. A acolheram em sua casa. E, mesmo assim, ela regressou à residência do agressor. “Por ter crescido em ambiente dominado por relação abusiva, Sergio também tornou-se agressivo”. É capaz, por isso, de rejeitar a mãe.
“Milonga” representou o Uruguai em vinte festivais e conquistou oito prêmios. Tem convites para cinco outras competições na Espanha, Polônia, Itália, Bielorrússia e Índia. Lançado em seu país de origem, “teve boa acolhida, permanecendo em cartaz por sete semanas”.
A escolha da chilena Paulina García para interpretar uma mulher uruguaia causou apreensão nos produtores (o filme uniu as bandeiras do Uruguai e da Argentina). Mas — garantiu o ator Cesar Troncoso, presente ao debate no Cine Ceará — “a atriz tirou de letra, adotou com facilidade o acento platino”. Ao que Laura acrescentou: “ela é tão talentosa, versátil e luminosa, que minha mãe, que não viu os filmes dela, nem ‘Glória’, pensou que ela fosse uruguaia”.
A música ocupa, no filme, espaço especial. Afinal, embala as noites de baile na Milonga frequentada pelos protagonistas. Para apresentar repertório que culmina com “La Cumparsita”, sucesso máximo no mundo do tango e criação de um uruguaio” (Gerardo Matos Rodríguez), Laura apostou em conjunto reunido especialmente para as filmagens.
“Convidamos o músico e maestro Leonel Gazo, um virtuoso, e ele convocou outros instrumentistas de imenso talento”. E mais: “escolhemos a centenária ‘La Cumparsita’, por sua imensa beleza, por ser conhecida no mundo inteiro e, claro, por ser uruguaia, embora muitos pensem tratar-se de criação argentina”.
Ao tango, Laura fez questão de acrescentar os tambores do ‘candombe’, gênero musical afro-uruguaio, no qual se apresenta o cantor (e agora ator) Eduardo da Luz, intérprete do par de vida e dança de Margarita, a amiga de Rosa. Afinal — arrematou a cineasta, durante o debate — “o tango vem da milonga e os tambores do ‘candombe’ são força fertilizadora de nossa cultura musical. Por que não uni-los?”.
Cesar Troncoso arrematou: “os negros desapareceram na Argentina, mas não no Uruguai. Em nosso país, representam força criativa de grande importância”.
Na terceira noite do Cine Ceará, além do longa uruguaio, foram exibidos os três primeiros curtas-metragens (de 12 selecionados para a competição no formato): o carioca “Você”, de Elisa Bessa, o paulistano “Quinze Quase Dezesseis”, de Thaís Fujinaga, e o alagoano “Cavaram uma Cova no meu Coração”, de Ulisses Arthur.
Elisa Bessa é filha da produtora Clélia Bessa (“Plufy, o Fantasminha”, entre muitos outros longas-metragens), protagonista do filme.
“Você”, de título tão enigmático, conta história singular, em formato híbrido, sintetizado em apenas sete minutos. Vemos uma mulher (Clélia Bessa, que se identificará por seu nome real). Ela conversa com, deduziremos, uma delegada. Pede informações sobre um homem que tivera morte trágica. Provavelmente numa enchente. Esse homem seria o pai de Elisa (a diretora do filme). Afastado da filha e da ex-esposa há seis anos (desde que ela fizera o vestibular, aos 17 anos, no filme tem 23). Nada sabiam do paradeiro dele.
Águas caudalosas, em imagens do arquivo da Band News, aparecem na tela. O pai da jovem morreu mesmo? Foi vítima da força avassaladora das águas?
O sintético filme não responderá conclusivamente às questões levantadas. Um curta surpreendente, que nos deixa em estado de espera. E que serve de estímulo a outro encontro de Clélia Bessa com o cinema — o longa-metragem “Câncer com Ascendente em Virgem”, de Rosane Svartman (2024). Neste filme, uma ficção, a realizadora conta, com grandes atores, experiência vivida por Clélia, quando ela enfrentou um câncer de mama.
Com o curta “Quinze Quase Dezesseis”, Thais Fujinaga, diretora do longa “A Felicidade das Coisas”, se detém nas vidas miúdas de estudantes de uma escola privada (onde estuda uma bolsista afro-brasileira). A galera participa da montagem de texto teatral de Shakespeare. Num dos ensaios, um professor assedia a estudante. Com sutileza, sem escândalo portanto, a cineasta abordará o delicado assunto. Mas o que chama atenção, para valer, no filme, são os figurinos da montagem teatral. De grande beleza e criatividade.
“Cavaram uma Cova no meu Coração” revela um diretor dos mais inquietos e promissores, o jovem Ulisses Arthur. Definido como um documentário, “Cova…” é, no frigir dos ovos, um híbrido, ambientado em impressionantes “bairros fantasmas” de Maceió.
Imagens captadas por drone no apresentarão casas abandonadas, pois seus moradores foram obrigados a fugir da parte devastada (pela empresa Braskem) da capital alagoana.
O curta (de 24 minutos) reúne crianças, jovens e adultos (nesse segmento, destaque para a cantora Zeza do Côco, e para um pastor evangélico), que reencenarão o que viveram no lugar. Em especial, a dor de serem obrigados a abandonar suas casas, lojas e templos.
Algumas reencenações resultam inconvincentes e amadorísticas, mas o filme ganha impacto ar dialogar com a ficção científica, materializada em signos de grande simplicidade, mas imenso poder de comunicação. Capazes, pelo inesperado, de nos fazer refletir sobre o que vivenciaram aqueles milhares de moradores — 14 mil imóveis foram condenados e esvaziados — expulsos devido a graves falhas geológicas provocadas pela inescrupulosa e predatória exploração da sal-gema.