Brasília abre edição número 57 de seu longevo festival com “Criaturas” e sonhos do cientista Sidarta Ribeiro

Foto: “Criaturas da Mente”, de Marcelo Gomes

Por Maria do Rosário Caetano

O documentário “Criaturas da Mente”, de Marcelo Gomes, diretor dos apaixonantes “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Retrato de um Certo Oriente”, é o convidado de honra da abertura oficial da quinquagésima-sétima edição do mais antigo festival de cinema do país – o de Brasília do Cinema Brasileiro, criado em 1965, por Paulo Emilio Salles Gomes e equipe.

O neurocientista Sidarta Ribeiro é a razão de ser do nono (e novíssimo) longa-metragem do realizador pernambucano dedicado, com igual paixão, à ficção e ao documentário (vide os poderosos “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” e “ Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”). A produção é de João Moreira Salles e Carlota Bruno, a fotografia do craque Ivo Lopes Araújo (originário do Coletivo Alumbramento) e vem embalado em trilha sonora d’O Grivo mineiro.

Ao longo de 84 minutos, essa produção potiguar-pernambucano-carioca apresenta o mote de Sidarta: “o sonho é o motor da revolução humana”. Há 20 anos, ele estuda os mistérios do ato humano de sonhar.

O documentário tenta entender “como os sonhos e outras formas de acesso ao inconsciente podem transformar a experiência humana”. Em suas investigações, desenvolvidas há duas décadas no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e no CEE-Fiocruz, Sidarta se propõe a “unir os saberes ancestrais dos povos originários de nosso território (sem esquecer os de origem africana) ao conhecimento científico”, além de buscar “reavaliação científica das experiências com substâncias alucinógenas”.

Outro pernambucano, Lírio Ferreira, de 59 anos, da mesma geração de Marcelo Gomes e, outrora, integrante do Coletivo Árido Movie, assina o filme “O Menino d’Olho d’Água”, que encerrará a quinquagésima-sétima edição do Festival de Brasília. Nesse novo documentário, realizado em parceria com Carolina Sá, o recifense joga luzes sobre outro brasileiro de imensos talentos — o alagoano Hermeto Pascoal, multinstrumentista de 88 anos (Sidarta nasceu em Brasília, há 53 anos).

O menino Hermeto conheceu a luz em Lagoa da Canoa. Ou Olho d’Água Grande (ex-Olho d’Água da Abóbora). Trata-se, ainda hoje, de uma pequenina cidade de 5 mil habitantes.

Lírio, que já realizou, com Hilton Lacerda, uma inventiva cinebiografia de Cartola, e sozinho, um belíssimo retrato de um “Homem que Engarrafava Nuvens” (o compositor Humberto Teixeira), se mete agora com um subversivo por natureza.

Difícil enquadrar Hermeto, tantos são seus ofícios. Ele toca muitos instrumentos. Tira sons até de focinho de porco. É arranjador, orquestrador, improvisador, produtor musical, compositor, colaborador de artistas (conterrâneos e contemporâneos, nacionais e internacionais). Citar os instrumentos que o Bruxo domina seria elaborar cansativo catálogo, que iria da flauta e saxofone aos sons da Natureza (água, troncos), passando por bules e brinquedos infantis. Ele é um mago, um peralta, um eterno inventor.

A narrativa de Lírio e Carol se constrói da articulação de três frentes principais: recente performance do octogenário Hermeto; exploração de suas lembranças de infância no sertão de Alagoas (origens e  influências musicais) e conversa intimista com o artista. Nessa prosa, ele compartilha sua música e reflexões sobre seu processo criativo.

O Festival de Brasília, esse ano, ainda será realizado em péssima data – depois das avassaladoras edições de Gramado, do Festival do Rio, o “passa-o-rodo” e vitrine de mais de 40 estreias de longas brasileiros, e da Mostra de São Paulo. Mesmo assim, por sua longeva e tradicional história, apresentará seis longas-metragens, sendo um deles o aguardadíssimo “A Fúria”, fecho da trilogia que Ruy Guerra iniciou em 1965 com “Os Fuzis”, premiado em Berlim, e sequenciou na década de 1970, com “A Queda”.

O décimo-oitavo longa-metragem do moçambicano-carioca, de 93 anos, tem codireção de Luciana Mazzotti e não traz mais um de seus atores-símbolo, Nelson Xavier (1941-2017). No seu lugar, veremos Ricardo Blat. Do segundo filme (“A Queda”), está previsto o retorno de Lima Duarte.

“Pacto da Viola”, do estreante Guilherme Bacalhao

Brasília se fará representar pela ficção “Pacto da Viola”, do estreante Guilherme Bacalhao. No centro da narrativa veremos um músico sertanejo que precisa ajudar o pai doente, um capitão de Folia de Reis, portador de “dívida com os santos e demônios”. No elenco, um ator que Brasília ama e que o país precisa descobrir com urgência — Wellington Abreu. Intérprete com cara de Brasil e revelado pelos primeiros filmes de Adirley Queirós, Abreu causou funda (e recente) emoção na Mostra Brasília, ao interpretar um dedicado professor no curta-metragem “Escola sem Sentido”.

Sobre o longa brasiliense, outra curiosidade. Em sua primeira fase de roteirização, Bacalhao contou com assessoria de Di Moretti (“Cabra Cega”). Depois, da consultora Helen Beltrame-Linné, aquela brasileira que atreveu-se, por sua ousadia, a dirigir a Casa Bergman, centro cultural dedicado ao genial realizador sueco, na gelada ilha de Faro.

Depois de mirar as fotos do elenco desse “Pacto” candango (direção de fotografia de André Carvalheira e montagem de Marcius Barbieri), nos atrevemos a fazer um exercício-de-imaginação em forma de pergunta: será que virá, do Centro-Oeste do Brasil, surpresa de proporção semelhante à causada pelo western crepuscular de Érico Rassi, “Oeste Outra Vez”, o vencedor de Gramado? A sorte está lançada.

O mineiro Sérgio Borges, que ganhou o Troféu Candango de melhor filme, em 2010, com “O Céu sobre os Ombros”, volta à competição com “Suçuarana”, um drama sobre Dora, retirante em busca de trabalho e de terra antiga de sua mãe em região mineradora. Dessa vez, ele assina o filme em parceria com a também mineira Clarissa Campolina.

A produção indígena “Yõg Ãtak: meu Pai, Kaiowá”, de Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna, também vem de Minas Gerais. Trata-se de documentário protagonizado por uma de suas próprias diretoras, Sueli, que é arte-educadora da Aldeia Escola Floresta de Teófilo Otoni. O filme relata a sua busca pelo pai, Luis Kaiowá, de quem foi separada pela ditadura militar.

A amazonense Christiane Garcia disputará o Troféu Candango com seu longa de estreia, o ficcional “Enquanto o Céu Não me Espera”, protagonizado por Irandhir Santos. Ele interpreta um agricultor que luta contra as dificuldades climáticas em pequeno sítio afetado pelas cheias dos rios da Amazônia.

Pernambuco se fará representar por “Salomé”, segundo longa-metragem de André Antônio, integrante do coletivo Surto & Deslumbramento e praticante de proposta queer. Sua ficção é protagonizada por jovem modelo que se apaixona por rapaz envolvido em uma estranha seita, dedicada ao culto da sanguinária princesa bíblica Salomé.

Para fazer jus a seu passado de primeira e maior vitrine de novidades do audiovisual brasileiro, o Festival de Brasília será palco, como Gramado, de séries ou teledocumentários que, em breve, chegarão à TV aberta ou ao streaming.

Caso de “Como Nascem os Heróis”, do brasiliense Iberê “O Último Drive-in” Carvalho, produção da EBC-TV Brasil; “Malvinas: Diário de uma Guerra”, de Ricardo Pereira e Eugenia Moreyra, e “Kubrusly: Mistério Sempre Há de Pintar por Aí”, de Caio Cavechini e Evelyn Kuriki (ambos Globoplay). Este último, porém, escolheu o balneário potiguar de São Miguel do Gostoso como tela de sua estreia.

Duas masterclasses estão programadas para este ano no festival brasiliense: uma de Petra Costa, que depois de “Democracia em Vertigem”, finalista ao Oscar de melhor documentário, mostrou “Apocalipse Tropical” no Festival de Veneza”, e Rita Von Hunty (Guilherme Terreri), uma das estrelas do filme “You Tubers “, de Sandra Werneck e Bebeto Abrantes.

Na noite inaugural, a capital brasileira e seu festival prestarão tributo a três artífices da história do cinema candango. Aqueles que partiram deixando muitos projetos, sonhos e saudades — o documentarista Vladimir Carvalho (1935-2024), a atriz e produtora Malu Morais (1946-2025) e o integrante do coletivo Pedra, o inquieto Pedro Anísio (1955-2024).

Registre-se, por fim, que os novos diretores artísticos do festival – Sara Rocha e Eduardo Valente – prometem trazê-lo de volta, em 2025, à sua data histórica, o mês de setembro, em plena primavera brasiliense. Agirão conforme previsto nos estatutos originários do evento candango. Ano que vem, aliás, tais estatutos completarão exatas seis décadas.

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