“Para Vigo me Voy” e “Sonhar com Leões” festejam, em Gramado, a trajetória de Cacá Diegues e o “direito à morte digna e assistida”
Foto: Diogo Dahl, Lírio Ferreira e Maria Fernanda Miguel, de “Para Vigo me Voy” © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
A quinta noite da mostra competitiva do Festival de Gramado exibiu o longa documental “Para Vigo me Voy”, cinebiografia de Cacá Diegues, dirigida pelos pernambucanos Lírio Ferreira e Karen Harley, e a ficção luso-brasileiro-espanhola “Sonhar com Leões”, de Paolo Marinou-Blanco, protagonizada por Denise Fraga.
“Para Vigo me Voy” estreou na mostra Cannes Classics, na Riviera francesa, em maio último, e escolheu Gramado como sua primeira vitrine. Coube a este filme, um réquiem à moda brasileira, por isso feliz e celebratório, abrir a competição de longas documentais.
Lírio, revelado pela ficção com “Baile Perfumado”, é também um grande documentarista. “Música para os Olhos” e “O Homem que Engarrafava Nuvens”, inventivas cinebiografias de Cartola e Humberto Teixeira, provam seu valor no formato.
O novo longa do militante do “Árido Movie”, dedicado ao alagoano-carioca Cacá Diegues (1940-2025), lhe foi proposto pelo produtor Diogo Dahl, filho de três esteios do Cinema Novo – a atriz-diretora Ana Maria Magalhães e os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Gustavo Dahl.
Dois anos atrás — e nove depois de produzir “Cinema Novo”, de Eryk Rocha —, Diogo Dahl quis realizar um filme sobre a trajetória de Diegues, integrante do núcleo duro do movimento cinematográfico. O Cinema Novo, nunca é demais lembrar, modernizou e deu projeção internacional ao cinema brasileiro no alvorecer da década de 1960.
Quando “Para Vigo me Voy” foi concebido, Diegues encontrava-se, já, com a saúde fragilizada e concluía aquele que seria seu derradeiro longa-metragem — “Deus Ainda é Brasileiro”. Lírio topou o desafio e aliou-se à experiente montadora Karen Harley, uma das diretoras de “Lixo Extraordinário”, indicado, em 2011, ao Oscar de melhor documentário.
O cinema brasileiro se acostumou, ao longo de sua história centenária, a erguer verdadeiras hagiografias ‘kinocinebiográficas’. Ou seja, ignorar zonas sombrias de seus personagens-tema. Jean-Claude Bernardet, estudioso do assunto, até batizou — provocador que era — de “filmes funerários” os títulos filiados a esta vertente documental.
Lírio e Karen, respaldados pelo produtor Diogo Dahl, se dispunham a realizar um filme sobre um cineasta vivo, influente e muito sedutor. E com trajetória marcada por, pelo menos, duas polêmicas que calaram fundo no debate cultural brasileiro.
A primeira, na segunda metade da década de 1970, se deu em torno de “Xica da Silva”, o maior sucesso comercial de Diegues (3,5 milhões de espectadores). Mas que desagradou, quase unanimemente, à crítica cinematográfica. Até de “PornoXica” o filme foi chamado.
Furioso, o cineasta, em histórica entrevista a Pola Vartuk, no Estadão, cunhou a expressão “patrulha ideológica”.
A outra polêmica se deu na primeira década do século XXI e teve o projeto da Ancinav, que deveria substituir a Ancine (Agência Nacional de Cinema), como mote. Grandes grupos de comunicação, liderados pela Rede Globo, tacharam o projeto apresentado pelo MinC de Gilberto Gil, Juca Ferreira e Orlando Senna, de “intervencionista”.
O jornal O Globo, em especial, transformou-se no porta voz das críticas que desmontariam a futura Ancinav. E teve em Cacá Diegues e Arnaldo Jabor (este no televisivo Jornal da Globo), cineastas e amigos fraternos, os porta-vozes que combatiam, aguerridos, o projeto Ancinav. De forma que, sob tiroteio, ele foi abandonado antes de chegar ao Parlamento.
O documentário de Lírio, Karen e Diogo Dahl, um produtor-autor, não fugiu da polêmica das patrulhas ideológicas. Ela será lembrada pelo cartunista Henfil (1944-1988), que externará sua visão oposta ao conceito formulado por Diegues. Este apresentará, no filme, a sua réplica.
Sobre a polêmica Ancinav, nada será dito em “Para Vigo me Voy”. Mas a trinca realizadores-produtor abrirá espaço para outro questionamento matador: o da jornalista Rosa Freire d’Aguiar. Em Cannes 1984, Diegues competia à Palma de Ouro com “Quilombo”. O filme foi apelidado, por seus detratores, de “Quitombo”, e criticado por seus diálogos de acentuado didatismo e pela ingenuidade de sua trama.
Para complicar o caso, o vigoroso “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos, ficara fora da disputa pela Palma de Ouro. Ao final, “Quilombo” seria ignorado pelo júri e “Memórias do Cárcere”, deslocado para a Quinzena dos Realizadores, ganharia o Prêmio da Fipresci (Crítica Internacional).
A contundente pergunta de Rosa Freire d’Aguiar, destacada no filme, será respondida por cineasta africano (o senegalês Paulin Soumanou Vieyra). Caberá ao espectador, de preferência depois de rever “Quilombo”, decidir se este filme apresentava as fragilidades apontadas pela jornalista brasileira, radicada em Paris, ou se a razão estava com o senegalês.
Lírio e Karen acertam ao colocar essas dissonâncias no filme. Elas são enriquecedoras. Mesmo que, no frigir dos ovos, o filme desenhe retrato (quase) hagiográfico de Cacá Diegues.
No debate, em Gramado, Lírio não escondeu sua relação de amizade com seu protagonista. Deixou clara sua intenção: destacar os 19 longas-metragens do realizador alagoano e sua importância na história do cinema brasileiro. Afinal, estes filmes são o principal legado que Diegues deixou depois de seis décadas dedicadas ao cinema.
Lírio perguntou aos presentes ao debate de “Para Vigo me Voy”: “há tarefa mais difícil que fazer um filme sobre Chico Buarque?!” Com a pergunta, o pernambucano insinuou que os serviços prestados pelos dois artistas — o cineasta e o compositor — são tão grandes, que fica difícil buscar, nas trajetórias de ambos, zonas de sombra.
“Para Vigo me Voy” se sustenta, ao longo de 90 minutos, em acervos raríssimos. Veremos Cacá Diegues em entrevistas a jornalistas franceses, italianos, espanhóis, portugueses e brasileiros. E em muitos programas de debate de ideias na televisão. O veremos, também, no autoexílio, em Paris (Nara Leão, sua companheira por dez anos, tem participação discreta); em seu último encontro com a trupe do Nós do Cinema, no Morro do Vidigal (ele produziu “5x Favela – Agora por Nós Mesmos”); e em festa crepuscular, à qual compareceram amigos (e parceiros) como Gilberto Gil, Marieta Severo, Betty Faria, Antônio Pitanga, Tony Tornado, Lucy Barreto e muitos outros.
A trupe que concebeu e realizou “Para Vigo me Voy” alcançou ótimo resultado. E executou verdadeira proeza, se levarmos em conta que foram gastos menos de dois anos entre a ideia original e a exibição em Cannes, quatro meses atrás. A riqueza dos materiais coletados (e postos em diálogo entre si) é realmente notável.
Lírio e Dahl lembraram, no debate, que “o filme estava em processo de montagem” quando foram surpreendidos pela morte de Cacá Diegues (em fevereiro desse ano).
“Sabíamos que ele enfrentava problemas de saúde”, mas “o víamos sempre tão disposto, trabalhando, conversando, refazendo cenas de ‘Deus Ainda é Brasileiro’, que acreditamos que ele veria o filme pronto. Não deu tempo”.
Lírio contou que houve quem questionasse a presença, na montagem final de seu documentário, de um tombo que Diegues sofrera num set de filmagem. “O mantivemos porque a cena é importante e o vemos, cheio de vida, logo em seguida. O José Bial, neto dele, coloca gelo no joelho do avô. E este se mostra recuperado e pronto para seguir trabalhando”. Decisão sábia, pois seres humanos levam tombos e se erguem. E nenhum vivente, artista conhecido ou cidadão anônimo, contornará a finitude, o momento derradeiro.
Sobre os surpreendentes acervos usados no filme (reunidos por Diogo Dahl, com ajuda do “Midas” Antonio Venancio), o produtor contou: “estou endividado com o INA (Instituto Francês de Acervos Audiovisuais) até a raiz dos cabelos, pois realizamos o filme com apenas 20% do orçamento necessário. Não ganhamos nenhum edital, pois vigora a compreensão de que a história do Cinema Novo e de seus artífices não constitui prioridade”.
Dahl discorda dessa postura por entender que “sem memória não há identidade e sem identidade não há soberania”. Para deixar no ar que, depois de “Menino do Olho d’Agua”, sobre Hermeto Paschoal, e “Para Vigo me Voy”, a dupla pode realizar a cinebiografia de outro integrante do núcleo duro do Cinema Novo — Paulo Cézar Saraceni.
Ao final de debate, em uníssono, Lírio e Dahl afirmaram: “jamais pensamos filmar o velório e o enterro de Cacá Diegues. Jamais!”. Desde o nascimento do projeto, “nossa intenção era mostrá-lo vivo, filmando ‘Deus Ainda é Brasileiro’, escrevendo roteiro em parceria com o neto, celebrando os companheiros de jornada e a turma do Nós do Morro”. É isso que o público verá quando o filme estrear no primeiro semestre de 2026.
Ah, o título do documentário evoca fala de Lorde Cigano, o personagem de José Wilker em “Bye, Bye Brasil”.
CINEASTA INTERNACIONAL E ATRIZ BRECHTIANA
“Sonhar com Leões”, o quinto longa ficcional apresentado na competição de Gramado, é uma tragicomédia protagonizada por atriz extraordinária (Denise Fraga) e dirigida por um realizador cujo nome não nos é familiar: Paolo Marinou-Blanco.
No palco do Palácio dos Festivais, Denise deu seu testemunho sobre o filme: “primeiro li o roteiro e fiquei fascinada. Aceitei o convite, com entusiasmo. Esperei vê-lo pronto, pois roteiros maravilhosos no papel podem dar origem a filmes ruins. Mas ao assisti-lo fiquei surpresa com o resultado. Gostei muito”.
Quando Paolo, nome tão italiano, pegou o microfone, veio a surpresa — ele se expressou no mais perfeito português. Tão perfeito que não se fez possível identificar sua origem. Seria filho de italianos, de portugueses ou de espanhois?”
No debate do dia seguinte, Paolo Marinou-Blanco detalhou suas origens: “sou metade grego e metade português”. E prosseguiu: “cresci mudando de país a cada três ou quatro anos, morei inclusive no Brasil e convivi com a alegria e sensualidade brasileiras, que costumo encontrar também na Grécia, um de meus lares”. Já Portugal, acredita ele, cultiva certa melancolia, presente na palavra, tão lusitana, saudade. “Me considero brasileiro honorário”, avisou, sorridente.
Denise Fraga ajudou a construir o perfil do diretor de “Sonhar com Leões”: “ ih, necessitaríamos de horas para compor o perfil dele, pois ele é múltiplo: ator e diretor de teatro em Londres, falante de muitos idiomas, tem uma trajetória incrível, sendo capaz de não deixar rastros em seu uso de outros idiomas”. O Paolo greco-lusitano foi rebatizado, pela atriz, como Maurício. “Para mim” — divertiu-se a atriz —, “ele tem cara de Maurício”.

O currículo de “Paolo Maurício” soma curso universitário na London School of Economics e mestrado em Cinema na NYU (New York University). Depois de estagiar com Spike Lee, ex-aluno, hoje professor da NYU, ele realizou seu primeiro longa — “Goodnigth Irene”. A base profissional de Paolo é oscilante. Vai de Nova York a Lisboa, passando por Atenas, Barcelona, Londres, Rio ou São Paulo. Nos EUA, ele trabalha como roteirista profissional, filiado à WGA, a guilda dos criadores de histórias cinematográficas.
“Sonhar com Leões” teve Lisboa como epicentro. E locações também em Palma de Maiorca, nas Ilhas Baleares espanholas. O elenco, liderado pela brasileira Denise Fraga, que interpreta Gilda, conta também com Felipe Rocha e Roberto Bomtempo. Portugal entra com o coprotagonista Amadeu, interpretado por João Monteiro (de “Mosquito”), secundado por Joana Ribeiro e Sandra Faleiro. Uma atriz espanhola (Assun Planas) completa o elenco.
Paolo construiu seu segundo longa-metragem como “uma tragicomédia surreal”, que explora a temática da eutanásia. Gilda, imigrante brasileira radicada em Lisboa, tem apenas um ano de vida pela frente, pois fora diagnosticada como portadora de doença terminal. Seu único desejo é morrer com dignidade. Na busca da finitude de sua existência, Gilda recorrerá a multinacional que vende, em troca de fartos euros, serviços de morte digna. E conhecerá um rapazinho, Amadeu, fascinado pela morte. Tanto que ele trabalha numa funerária e faz maquiagem em cadáveres.
O filme, que será lançado pela Pandora, de André Sturm, no próximo dia 11 de setembro, irmana-se, tematicamente, a produções recentes como “O Quarto ao Lado”, de Pedro Almodóvar, “Uma Bela Vida”, de Constantin Costa-Gavras, e — citação do próprio Paolo — “Polvo Serán” (Ao Pó Voltarão), de Carlos Marques-Macet. “Este filme”, lembrou, “é um drama musical muito original e interessante”.
Denise Fraga recebeu o roteiro de “Sonhar com Leões” no momento em que sua mãe, muito lúcida, vivia seus derradeiros meses de vida. Emocionada pelas conversas mantidas com a mãe, ela sentiu-se desafiada a protagonizar o filme. Além do mais, o roteiro trazia ingredientes que sempre a fascinaram — o humor, a ironia e o rompimento da quarta parede. Para uma atriz que mantém permanente fonte de diálogo com Bertoldt Brecht, era hora de aceitar o convite e, quando chegasse a hora, embarcar para Lisboa.
Durante o debate do filme, uma questão se colocou: a necessidade de acréscimo de cartela, daquelas que previnem o espectador sobre exposição a temas delicados.
O produtor Eduardo Rezende garantiu que tal cartela será inserida na abertura do filme. Questionado se o humor e a ironia usados pela narrativa, afinal “uma tragicomédia surrealista”, não seriam suficientes, Rezende achou mais prudente recorrer ao aviso prévio. No que foi apoiado por Denise Fraga:
— Em outro momento de nossa história, eu entenderia que o humor e a ironia contidos na narrativa seriam suficientes. Mas como estamos vivendo tempos muito estranhos, é melhor usar a cartela. Hoje, a comunicação se faz de forma pulverizada e, por isso, nosso filme pode ‘bater’ na sensibilidade de certas pessoas e não ser compreendido. Sempre acreditei no poder da arte de, pelo humor e pela ironia, promover ‘despertares’, novos olhares. Mas, não podemos negar, houve um empobrecimento subjetivo e intelectual do código poético. Nós, que somos contadores de histórias, que nos dedicamos a esse ofício, continuamos acreditando que a arte salva, existe para nos fazer viver. Por isso, defendo, nesse momento, a utilização da cartela.
Paolo Marinou-Blanco, que já lançou o filme em Portugal (ele é um dos quatro candidatos a representar o país numa possível vaga ao Oscar internacional), espera que sua “tragicomédia surreal” encontre, entre os brasileiros, uma boa receptividade. Ele confia muito em sua estrela, a atriz Denise Fraga. Que, aliás, teve que sair correndo de Gramado, rumo a São Paulo, onde faz duradoura temporada, ao lado de Toni Ramos, na peça “O que Só Sabemos Juntos”.
O cineasta que Denise apelidou de “Maurício” se dará por satisfeito se o debate em torno da questão da “morte assistida” ganhar novos fóruns de discussão e transformar-se em lei. “Dos 195 países que compõem o mundo” — lembrou — “só dez ou onze legalizaram a eutanásia (ou a morte assistida). Reino Unido e Canadá estão por adotá-la. Que muitos outros países o façam”. Para finalizar: “nosso filme, apesar do tema espinhoso, é uma celebração à vida”.
Durante o debate, muito se evocou o livro “A Morte é Um Dia que Vale a Pena Viver”, de Ana Claudia Quintana Arantes. Essencial para quem se interessa pelo assunto de “Sonhar com Leões”, filme que buscou seu título num fragmento de “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway.
