Em “Mr. Scorsese”, o cineasta relembra infância pobre, fracassos pessoais, consumo de drogas pesadas, paixão pela música e seus filmes de maior sucesso

Por Maria do Rosário Caetano

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo exibiu, na imensa tela do CineSesc, os cinco capítulos da série “O Legado de Martin Scorsese” (“Mr. Scorsese”), de Rebecca Miller, agora disponibilizada no streaming, pela Apple TV.

Quem enfrentou a maratona foi recompensado por narrativa corajosa e pelo prazer de rever, na tela grande, trechos dos mais significativos filmes do cineasta ítalo-americano, de 82 anos. E comentados por ele. Ou por colegas de ofício (seus amigos Brian de Palma e Steven Spielberg, e seu discípulo Spike Lee, somados a roteiristas como Paul Schrader). Ou atores (Robert de Niro, Joe Pesci, Leonardo Di Caprio, Sharon Stone, Daniel Day Lewis). E, na parte mais divertida do filme, por familiares e amigos de infância do diretor de “Taxi Driver”. Sem esquecer o mentor católico, Padre Francis Príncipe, catequista rigoroso, que estimulou o garoto a não trilhar caminhos tortos, opção de muitos dos que o cercavam. Scorsese não se cansa de lembrar que, na pobre Little Italy, havia dois caminhos possíveis – ser padre (ele até tentou!) ou serviçal da Máfia. Havia, claro, um terceiro: ser um grande artista, opção que ele concretizaria.

Baixinho, asmático, católico e obcecado pelo “homem subterrâneo” (ressentido e capaz de cometer os mais bárbaros atos de violência), Scorsese reviverá sua infância e adolescência com ajuda dos garotos (hoje octogenários como ele) de origem peninsular, com os quais cresceu em Nova York.

Rebecca Miller, que já dedicou documentário ao pai, o grande dramaturgo Arthur Miller (1915-2005), ilustrará as evocações da infância pobre de Scorsese com poderosas imagens de Lionel Rogosin, documentarista influenciado pelo Neo-Realismo italiano, que registraria os deserdados espalhados pelas sujas ruas nova-iorquinas.

A cineasta desembarcará, em breve, em São Paulo para, no próximo dia 25, um sábado, apresentar cópia restaurada de seu primeiro filme, “Angela, nas Asas da Imaginação”, realizado 30 anos atrás. Trata-se de original e instigante registro ficcional de sua experiência (temporária) com o catolicismo. Na infância, a futura cineasta resolveu dedicar-se à religião, marca profunda da existência de Scorsese.

Angela é uma menina de dez anos. Ela tem uma irmã de seis, Ellie. A jovem e bela mãe das duas sofre de perturbações psíquicas. O pai tudo faz para criar as filhas e ajudar a esposa, mas a situação não é nada fácil. As menina passam a dedicar-se a inocentes rituais de purificação, penetrando em “círculo protetor”, cujos limites são demarcados por brinquedos e bonecas. Elas esperam que a Virgem Maria surja para ajudar a mãe a encontrar a necessária sanidade.

A perturbada figura materna, note-se, foi criada pela imaginação de Rebecca (também roteirista do filme) com visual e fragilidades que referenciam a figura de Marilyn Monroe (1926-1962). A cineasta não conheceu a estrela hollywoodiana, pois nasceu no mês seguinte à trágica morte dela. Mas fertilizou seu imaginário ouvindo histórias da atriz, que fôra esposa de seu pai, Arthur Miller.

Rebecca, em sua conversa com o público paulistano, deverá, claro, responder perguntas sobre “Mr. Scorsese”, essa consistente série (quase cinco horas de duração), que lhe tomou imenso tempo de trabalho. Afinal, fez questão de ouvir dezenas e dezenas de fontes, uma verdadeira polifonia, além de revisitar a obra (em especial, os filmes ficcionais) do grande diretor novaiorquino.

A cineasta trabalhou com os primeiros curtas do diretor, realizados nos tempos da NYU (Universidade de Nova York, da qual Scorsese seria, mais tarde, professor, inclusive de Spike Lee) até os longas que o consagraram. “Taxi Driver”, “Touro Indomável” e “Os Bons Companheiros” são, sem dúvida, os pontos mais luminosos da carreira desse ítalo-americano que se tornaria um dos maiores nomes da história do cinema norte-americano. A narrativa chegará até os recentes “O Irlandês” e “Assassinos da Lua das Flores”.

Martin Scorsese e Rebecca Miller © Divulgação/Apple TV

A série de Rebecca segue ordem cronológica e não dá à obra documental de Scorsese o peso merecido. Por sorte e por causa da paixão do cineasta pela música, a realizadora lembrará algumas das incursões dele pelo mundo do rock. Desde a frustração advinda da ausência de crédito para “Woodstock”, do qual ele foi codiretor (sem o devido reconhecimento) e dos filmes que faria sobre músicos como o “beatle” George Harrison, o astro Mick Jagger/Rolling Stones, e Robbie “The Band” Robertson. Ficam de fora Bob Dylan e a poderosa série sobre o blues (“The Blues, uma Jornada Musical”).

O canadense Robbie Robertson (“O Último Concerto de Rock”) e o britânico Mick Jagger darão seus testemunhos ao documentário de Rebecca. O repertório dos Rolling Stones estará presente praticamente em todos os episódios. E cada composição devidamente identificada. Assim como quem fala, inúmeras (e necessárias) vezes.

O caso do “The Band” Robertson faz jus a destaque especial. Afinal, o roqueiro chegou a morar com Scorsese nos tempos em que ambos estavam mergulhados no consumo de drogas. Tema, aliás, que motivará ótimos momentos do filme, pois Scorsese o enfrentará de frente, sem nada esconder.

Os fracassos conjugais e, principalmente, comerciais de sua carreira (“New York, New York”, “O Rei da Comédia”, os mais perturbadores-desestabilizadores) o arremessariam em anos difíceis e alucinados (por estupefacientes). E agravados por graves problemas de saúde. Um tempo em que, para complicar, realizadores autorais e criativos, soterrados pela Era dos Blockbusteres, passariam a ser vistos como “cineastas desprezíveis e egocêntricos”.

A relação de Martin Scorsese com o cinema italiano, tema de sua série “Il Mio Viaggio in Italia” (2001), não merecerá maiores referências. Ele terá, felizmente, tempo para evocar o impacto de “Ladrões de Bicicleta” (De Sica, 1948) e de “Paisà” (Rosselini, 1946), título incluído em sua mais recente lista de filmes preferidos (ao lado do também italiano “O Leopardo”, de Visconti, 1963, entre outros). Estes filmes peninsulares marcaram sua formação emocional e profissional.

Outro documentário, este monumental (“A Personal Journey With Martin Scorsese Trough American Movies”), também não foi incluído na série de Rebecca. Claro que a imensidão da produção cinematográfica do artista imprimiria à série caráter enciclopédico-relatorial e duração ainda mais dilatada. A diretora foi obrigada a fazer escolhas.

Por sorte, ela não se esqueceu de uma das atividades mais importantes da maturidade de Martin Scorsese – a Film Foundation. Um organismo que ele criou e preside e que vem ajudando a preservar filmes dos cinco cantos do mundo. Incluindo o brasileiro “Terra em Transe” (não citado na série), os senegaleses “Moi, une Noir”, de Ousmane Sembene, e “Touki-Bouki”, de Diop Mambety (já são mais de mil títulos, todos obrigatórios).

Martin Scorsese não fugirá, ao longo dos cinco capítulos da série, de nenhum tema, por mais espinhoso que seja. Nem da condição de pai ausente, nem de marido dos mais complicados (nesse sentido, o depoimento mais rico é o de Isabella Rossellini, sua terceira esposa, justo no momento em que ele estava mergulhado na cocaína). A quinta companheira, Helen Morris, de 78 anos, mãe de sua filha caçula (ele é pai de três moças), será vista na cadeira de rodas, enfrentando as consequências de avançado estágio do Mal de Parkinson.

Rebecca, que iniciou sua trajetória artística como atriz e é casada com o ator britânico Daniel Day-Lewis, abre imenso espaço na série para os intérpretes. Os depoimentos do marido e de Robert De Niro (este, o principal ator das sagas scorsesianas) são contidos. De Niro, então, é lacunar. Fala o mínimo possível. Ou seja, quase nada.

Eloquentes são Leonardo Di Caprio e Sharon “Casino” Stone. Muito articulado, o ítalo-americano Di Caprio contará que tudo fez para trabalhar com o grande realizador nova-iorquino. Aproveitou da condição de galã conquistada com o megablockbuster “Titanic” para arriscar-se em projetos mais autorais. Faria muitos filmes com o diretor de “Gangues de Nova York”.

Sharon “Instinto Selvagem” Stone também aproveitaria os sucessos comerciais que a transformaram em símbolo de sedução para arriscar-se em projetos mais empenhados. Durante as filmagens de “Casino”, ambientado na bilionária e devassa Las Vegas, ela percebeu que Scorsese vivia cercado de De Niro, Joe Pesci e outros integrantes de seu “Clube do Bolinha”. Eles estavam sempre conversando e discutindo cada etapa da filmagem. Ela resolveu, então, rodar a baiana. Avisou que queria ser ouvida. Tratada nas mesmas medidas dos colegas varões. Conseguiu, claro.

Não ouviremos testemunhos substantivos de dois astros muito importantes na trajetória do “poeta da violência” (brutal e bélica) da nação estadunidense – Harvey Keitel e Joe Pesci. Mas eles estarão em muitas e muitas sequências da série.

Num dos trechos dedicados aos tempos de loucuras movidas a aditivos químicos, vale prestar atenção em espantosa história de inusitada “ressureição” (parte da realidade ou do folclore cinematográfico made in USA?) destacada por Rebecca.

A tal história não será negada (nem confirmada) por Scorsese. E ele reconhecerá que o “acontecido” foi transformado em fonte de inspiração para sequência de um dos filmes de Quentin Tarantino (“Pulp Fiction”).

 

O Legado de Martin Scorsese | Mr. Scorsese
EUA-Inglaterra, 2025
Cinco capítulos, com média de 52 minutos cada
Direção: Rebecca Miller
Onde: Apple TV

Angela, nas Asas da Imaginação
EUA, 1995, 101 minutos
Direção: Rebecca Miller
Elenco: Miranda Ryne, Charlotte Eve Blythe, Anna Levine, John Ventimiglia, Peter Fascinelli, Vincent Gallo
Data: 25 (sábado, 19h30), no CineSesc, e dia 30 (quinta-feira, 14h45), no IMS-Avenida Paulista

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