Entrevista exclusiva: Eliane Caffé

Assunto essencial às inclusões geopolíticas da contemporaneidade, abordado como objeto de estudo e de denúncia em filmes mundialmente premiados de janeiro para cá, a questão dos refugiados políticos é o combustível que faz de “Era o Hotel Cambridge” um dos filmes brasileiros mais explosivos da década – e um ímã de prêmios. Revelado internacionalmente via Espanha, pelo Festival de San Sebastián, de onde saiu com uma menção honrosa, este exercício de claustrofobia e reflexão social, dirigido pela paulista Eliane Caffé, diretora dos longas “Kenoma” (1997), “Narradores de Javé” (2004) e “O Sol do Meio Dia” (2010), foi eleito a melhor ficção nacional pelo júri popular da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Antes, passou pela Première Brasil do Festival do Rio, onde também recebeu o prêmio do público e o troféu Redentor de melhor montagem, conquistando ainda a láurea da Fipresci, a Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica, de melhor filme latino-americano, votado por um júri encabeçado pelo prestigiado presidente desta que é a maior instituição de críticos do planeta: o alemão Klaus Eder.

Nesta produção, uma série de imigrantes, degredados do Congo, da Palestina, da Síria e da Colômbia, se refugiam na hospedaria abandonada do título, em SP, ao lado de um grupo sem teto de distintos CEPs. Lá dentro, um agitador cultural com aptidões para o teatro, Apolo (José Dumont, de volta às telas com som e fúria), ajuda uma dirigente de movimentos de ocupação (vivida por Carmen Silva, uma das mais expressivas líderes da luta pela busca por moradia no país) a dar um norte para aquela babel de muitas línguas. O prédio é capaz de fundir não-atores a grandes intérpretes (vide Dumont e a veterana Suely Franco).

“Este filme é fruto de uma parceria com a Frente de Luta por Moradia, na qual a figura de uma líder como Carmen Silva representa um potencial transformador do século XXI, quando os grandes embates do mundo estão concentrados nos centros urbanos, locais cada vez mais inchados”, diz a cineasta, aclamada por filmes como “Narradores de Javé”. “Nos movimentos de luta por moradia, a maioria das lideranças é de mulheres. Nas grandes cidades, a mulher ocupa o papel de força agregadora, como é o caso da Carmen. Ela é uma força transformadora e uma força revolucionária, que eu trago para esse corpo a corpo com o real”.

Na entrevista a seguir, Eliane Caffé fala sobre o desenho estético desta produção, que reverbera planeta dentro, a partir de festivais da Europa.

 

Revista de CINEMA – A questão dos refugiados foi um tema central para o cinema em 2016, a começar no Festival de Berlim, onde o assunto foi tema de mostra e alimentou o documentário que ganhou o Urso de Ouro: Fogo no Mar. O quanto filmes recentes sobre o degredo dos refugiados te inspirou em “Era o Hotel Cambridge”?

Eliane Caffé – Quando eu comecei a pesquisa para o filme, em 2011, este tema não estava na mídia de maneira tão forte. Não ocasião da nossa primeira versão de roteiro, não havia nem a questão da ocupação, só havia uma reflexão sobre a presença de um grande grupo de angolanos em São Paulo. Ainda não tínhamos consciência dos grupos vindos do Oriente Médio, da turma da Líbia. Mas, aí, os refugiados que encontramos foram abrindo seus Skypes pra gente e apontando uma nova dramaturgia. Tenho a sensação de que estes filmes internacionais aos quais você se refere são reflexos das narrativas que assombraram o mundo ao expor o drama dessas pessoas que deixam suas pátrias para tentar a sorte em um novo país, como o nosso.

Cena de “Era o Hotel Cambridge”, que mostra uma realidade social com contornos universais, onde os afetos, por trás da luta, unem pessoas em forma de novos modelos de condomínios

Revista de CINEMA – O que uma figura real de liderança social como a Carmen Silva representa para o filme?

Eliane Caffé – A Carmen encarna o grito: “Quem não luta, está morto”. Ela é vital para as lutas, por seu poder agregador.

Revista de CINEMA – Qual é a São Paulo que você retrata nesse filme, essa São Paulo de refugiados e lutas sociais?

Eliane Caffé – Existem muitas São Paulo dentro de São Paulo: os Jardins é um mundo; o Capão Redondo, outro. É uma cidade marcada pela dicotomia entre um mínimo de gente que vive num padrão extremamente confortável e uma maioria que se debate dia a dia para conseguir sobreviver. São Paulo é um microcosmo do mundo global, onde se estabeleceu o regime predatório do neoliberalismo, que cria fossos entre as classes sociais. Mas estamos acostumados a ver a cidade de São Paulo a partir da mediação das muitas telas que temos hoje e ela faz uma representação muito diferente de experiência urbana que você tem ao expedicionar corpo a corpo na cidade. Há cerca de 400 mil imóveis abandonados em São Paulo, ou por dívida de IPTU ou por brigas judiciais. Esses edifícios, sem função social nenhuma, sobrepõem-se nesta cidade, onde há um número imenso de famílias de trabalhadores sem condição de pagar aluguel. Quando eu fui fazer o filme, fiz uma pesquisa de campo. Só andando pelo Centro de São Paulo, fiquei impressionada ao encontrar uma série de prédios em estado de deterioração, sem uma política pública para salvá-los. Não há política pública para adequar a cidade às demandas sociais de onde a gente vive.

Revista de CINEMA – E, nas pesquisas, o que você aprendeu sobre a realidade dos refugiados?

Eliane Caffé – Fui percebendo que os refugiados, ao chegarem aqui, não encontram uma política social para acolhê-los, o que os leva às ocupações, em busca de moradia. Há, contudo, casos de alguns refugiados que são explorados por figuras avessas ao senso de coletividade, que entram nas ocupações e deturpam ideais éticos de solidariedade. Há uma quantidade enorme de siglas de luta por moradia que são muito organizados e que atuam junto ao poder público, em prol da democratização da moradia. Mas há siglas que se aproveitam da luta pela moradia para especular e cobrar um aluguel alto de populações que são fragilizadas e que, às vezes, falam outra língua.

Cena de “Era o Hotel Cambridge”

Revista de CINEMA – De 1998, quando você estreou com “Kenoma”, até agora, com “Era o Hotel Cambridge”, você totalizou quatro longas-metragens, todos muito premiados, e todos bem diferentes entre si, próximos, tematicamente, apenas no interesse por personagens em uma condição de desterro, em movimento, em busca de pertença. Que outras linhas autorais você percebe como marcas pessoais suas nestes filmes?

Eliane Caffé – Eu fiz poucos filmes, mas percebo uma mudança de enfoque e de jeito de fazer. O processo de criação acontece muito mais do encontro de processos constituídos reais, fazendo com que o filme se construa numa relação muito vital com as tramas que já existem nesses universos existentes. É bem diferente de uma trama em que o coletivo entra para fazer o que o roteiro peça. Hoje em dia, fazer um filme que tenha uma autenticidade e uma transpiração do que é mais vivo, e do que mais me mobiliza enquanto pessoa, está cada vez mais difícil. É difícil traduzir a alma do tempo, sobretudo, deste tempo em que a gente se afastou demais da natureza e da vida coletiva. Pagamos um preço muito alto por esse afastamento.

Revista de CINEMA – De onde veio a vertente sociológica e, por vezes, antropológica que parece servir de bússola para seu novo filme?

Eliane Caffé – A inteligência por trás de “Era o Hotel Cambridge” é fruto do coletivo, não só da nossa equipe técnica, mas da adesão dos refugiados, ao abrirem suas conversas com o mundo pra gente. O resultado alcançado é fruto também da opção da minha diretora de arte – minha irmã, Carla Caffé – de preservar as caracterizações originais das casas e de trazer todo o material cenográfico de “ecopontos”, reciclando materiais. Alguns dos cenários das casas eram riquíssimos: havia um apartamento que era todo folheado a ursinhos de pelúcia. Incorporamos a cenografia já existente sem interferir nada no ambiente, apenas diminuindo o excesso de objetos em alguns espaços. Este filme foi feito a partir de um processo de criação bem diferente do cinema convencional. Ele foi erguido a partir de três coletivos que não têm nada a ver com o cinema.

Revista de CINEMA – Que coletivos são esses?

Eliane Caffé – De um lado, entraram 21 estudantes de Arquitetura, trazidos pela diretora de arte Carla Caffé, do outro, a FLM, trazido pela Carmen Silva, e um grupo de refugiados, que passaram por uma série de oficinas. Hoje, a gente segue ainda na militância do movimento. Muitos integrantes da equipe aderiram ao movimento. Este é um filme feito no campo, na vivência, na pesquisa, como, de certa forma, foi o meu “Narradores de Javé”.

O ator José Dumont, em “Narradores de Javé”: sua presença no cinema de Eliane Caffé, em seus três filmes de ficção, já é uma parceria

Revista de CINEMA – Em ambos, você teve como parceiro criativo o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, com quem também fez “Kenoma” e “O Sol do Meio Dia”. São quase vinte anos de troca entre diretora e roteirista. O quanto Abreu, conhecido por uma narrativa fabular, atenta às questões rurais, ajustou-se a esse ambiente urbano do Cambridge?

Eliane Caffé – Sinto que a natureza mais existencial dos meus filmes é uma influência do Abreu sobre mim e a porção mais épica deste novo filme, ao construir uma crônica das batalhas da FLM, é uma consequência do amadurecimento dele como autor. Abreu me mostrou a importância de ir além do drama e buscar o épico. Fizemos isso também em “Narradores…” que, ao retratar uma cidade sob o risco de extinção, conversa de modo mais direto com “Era o Hotel Cambridge”.

Revista de CINEMA – A química entre você e Abreu aumentou. Mas, visto a realidade do cinema brasileiro, o que mudou desde os primeiros filmes que vocês fizeram em relação ao cenário da produção audiovisual que encontraram hoje, na feitura do “Cambridge”?

Eliane Caffé – O cinema mudou muito, mas não só aqui: a questão das tecnologias alterou a forma como se faz e se pensa cinema no mundo inteiro. Eu montei “Kenoma” em uma moviola, aparelho que não existe mais. Já “Narradores de Javé” foi concebido quando os primeiros softwares de edição digital estavam estourando por aqui. Os paradigmas de antes, no que envolve as questões técnicas, não são os mesmos de hoje. Para a minha geração, que ainda tem uma perna fincada na tradição, no passado do cinema, essa evolução técnica foi uma mudança muito grande, mas ela também serviu para ilustrar o quanto a tecnologia aumentou ainda mais os nossos contrastes sociais. Das cerca de 7 bilhões de pessoas que existem neste planeta, menos da metade está conectada. Nós temos a impressão de que o mundo todo está na plugado na internet, mas só 1% da população mundial tem acesso à alta tecnologia. A periferia, a grosso modo, não tem acesso à banda larga. A revolução digital ainda está restrita a uma bolha. A tecnologia colocou pessoas de diferentes classes econômicas em realidade paralelas.

Revista de CINEMA – Quando você fala em “minha geração”, a qual grupo do nosso cinema você se refere?

Eliane Caffé – Na Retomada, a minha geração era chamada de “nova”, mas, hoje, somos a “velhíssima geração”, emblemática do que se deu na década de 1990, neste país. Por cronologia, eu poderia me situar nos anos 1990. Mas, como identificação, eu não me sinto parte de um grupo específico, até porque muitos dos meus contemporâneos de cinema deram outros rumos às suas carreiras, como Beto Brant, Tata Amaral e Anna Muylaert, sem contar todos aqueles pernambucanos maravilhosos que vieram ali com a gente, naquele período. Talvez, agora, eu tenha começado a fazer um cinema ainda mais enredado com o mundo, com o real, buscando abrir as janelas do mundo como fizemos com “Era o Hotel…”.

Revista de CINEMA – Além de ter um autor-assinatura, na figura do Abreu, você tem um ator-assinatura, com quem fizera antes dois outros longas-metragens: José Dumont. O quanto ele, no papel do Apolo, entra como um coautor em “Era o Hotel Cambridge”?

Eliane Caffé – Zé (Dumont) ilumina a narrativa com o repertório que traz da vida própria e enriquece os personagens com matizes que surgem da própria vida dele e da maneira de ele perceber o mundo. Nas improvisações do Zé, há todo um universo de construção autoral, que ele desenha como uma segunda camada em relação ao roteiro. Nossa simbiose alcança um lugar privilegiado, onde a criação mútua flui sem atrito. É um privilégio trabalhar com um ator assim, como José Dumont.

José Dumont, em cena de “Era o Hotel Cambridge”, em que realidade e ficção denunciam um grave problema social

Revista de CINEMA – Qual é o lugar onde “Era o Hotel Cambridge” se ambienta?

Eliane Caffé – O Cambridge foi um hotel muito chique na São Paulo dos anos 1950 e 60. Ele fica no Centro de São Paulo, próximo do metrô Anhangabaú, indo da 9 de Julho até os Jardins. Por conta de uma dívida enorme de IPTU, o hotel faliu e foi abandonado. Não à toa, por conta do abandono, formou-se uma mina d’água dentro dele. Ao chegar lá, a Frente de Luta por Moradia, a FLM, que só ocupa prédios abandonados, colocou aquele edifício em ordem por dentro, deixando-o em condições de receber famílias. É lógico que, esse gesto de entrar naquele espaço, é uma medida provisória: ali é um lugar de passagem para os sem teto. Ocupa-se para expor a luta por moradia. E o nosso filme é, assumidamente, um instrumento de luta para a FLM. Quando nós assumimos a ideia de fazer o filme inteiro na zona de conflito que era… e ainda é… o Cambridge, a pulsação da vida fez com que personagens da realidade fossem interpretando a si mesmos. No resultado, a gente, às vezes, não enxerga onde é ficção e onde é realidade.

Revista de CINEMA – Mas isso qualificaria o filme, de alguma forma, como um experimento híbrido com a linguagem documental?

Eliane Caffé – Acredito que “Era o Hotel Cambridge” seja um filme de ficção, porque tudo o que está ali é uma representação, mesmo as cenas reais, como a de uma reintegração de posse que aconteceu durante as filmagens, no Espigão da Avenida Ipiranga, usadas como se fossem no prédio da trama. Essas cenas são reais, mas elas migram pro filme como matéria de ficção. As cenas documentais do exterior foram migrações de filmes estrangeiras usadas por mim como material mnemônico, como memória.

Revista de CINEMA – Além da incorporação da linguagem do Skype, você incorpora cenas documentais de filmes estrangeiros. Que cenas são essas?

Eliane Caffé – Elas saíram dos documentários “Blood in the Mobile”, com imagens do Congo, e “A Chave da Casa”, sobre a Jordânia. Sem eles, não teríamos condições de ilustrar nosso filme com imagens de outros países de onde muitos dos refugiados vieram.

Carmen Silva, em cena de “Era o Hotel Cambridge”

Revista de CINEMA – Como você avalia a importância do Festival San Sebastián para o filme?

Eliane Caffé – San Sebastián foi fundamental para nós, porque foi de lá que veio toda a visibilidade internacional que alcançamos. Além do apoio deles à produção, houve ainda a conquista de uma menção honrosa lá, que nos ajudou a construir um circuito mundial de festivais. Na Europa, temos agora entrada confirmada em mostras na Suíça, na França e na Alemanha.

Revista de CINEMA – Você já é capaz de avaliar o quanto “Era o Hotel Cambridge” reflete a sua própria transformação pessoal como artista?

Eliane Caffé – Antes, eu tinha uma preocupação muito grande de me firmar como artista e de buscar, num filme, a afirmação do que eu poderia fazer numa obra. Com a idade, isso foi mudando: o que orienta meu processo de criação hoje é achar a questão certa, a que melhor possa representar os conflitos humanos, perguntar pelo ser humano. Saber perguntar pelo ser humano, de maneira certa, é o que mais me preocupa hoje em dia. Sinto que, conforme eu vou envelhecendo, vou entendendo melhor o mundo e a brutalidade de suas relações. Mas, em paralelo, o filme também é consequência da maior afinação que alcancei na parceria com a minha irmã, Carla Caffé, sobretudo, pela percepção de que a contrapartida social numa produção pode mudar os rumos de um filme. Já estou pensando em assinar a direção do próximo filme junto com ela.

Revista de CINEMA – Ainda nessa questão das transformações estéticas, que referências essenciais à sua formação de olhar seguem com você, como influências?

Eliane Caffé – Existe um cinema que você admira, mas com o qual não dialoga. Adoro Tarkóvski e Antonioni, ambos representantes de um tipo de cinema com C maiúsculo, mas não creio que meus filmes conversem com os deles. Por outro lado, há um outro grande cinema, o do Abbas Kiarostami, com o qual eu tenho mais afinação na prática de filmar. Não é que eu me compare a ele. Jamais! Alguém que faz um filme como “Close-up”… Meu Deus!… Está a léguas de grandeza de qualquer um de nós. Mas talvez eu consiga conversar com ele, de alguma forma, na minha busca de filmar, atenta ao real, enredada com o mundo à minha volta.

Revista de CINEMA – Passada a maratona de lançamento de “Era o Hotel Cambridge”, que chega ao circuito no dia 16 de março, você desenvolve que projeto?

Eliane Caffé – Vou fazer uma comédia, baseada em um texto teatral do Luiz Alberto Abreu, chamada provisoriamente de “Calipo Sonha?” e representada num ambiente atemporal. É uma discussão sobre como o Poder se articula hoje.

 

Por Rodrigo Fonseca

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