Entrevista: Gabriela Amaral Almeida

Por Maria do Rosário Caetano

“A Sombra do Pai”, segundo longa-metragem da cineasta, escritora, dramaturga e mestre em “cinema de horror” Gabriela Amaral Almeida, estreia nesta quinta-feira, 2 de maio, em cinemas de nove capitais brasileiras. Dia 16, o circuito amplia-se graças ao projeto Cinépolis Caixa de Pandora.

Quem conhece os curtas-metragens (em especial “A Mão que Afaga” e “Estátua”) e o primeiro longa de Gabriela – o sangrento e inventivo “O Animal Cordial” – sabe o que ela deseja fazer com seu público: instigá-lo, jamais domesticá-lo. Sob o rótulo de “cinema do medo”, que prefere ao genérico horror, a realizadora de 38 anos vem construindo sólida carreira e sendo requisitada por cineastas fascinados por sua capacidade fabuladora. Ela escreveu roteiros para Walter Salles (“Onde a Terra Treme”, episódio do longa internacional “Em que Tempo Vivemos?”), Marco Dutra (“Quando Eu Era Vivo”), Sérgio Machado, Cao Hamburger, entre outros. Incluindo projetos para TV (caso das séries “Aline” e “Me Chama de Bruna”).

Além de estudar na UFBa (Universidade Federal da Bahia), a cineasta e escritora soteropolitana, radicada em São Paulo, fez especialização em roteiro na Escuela Internacional de San Antonio de los Baños, em Cuba. Enquanto prepara seu terceiro longa-metragem, “uma fábula de exorcismo” (com o título provisório de “A Cadeira Escondida”), Gabriela torce para que “A Sombra do Pai” tenha mais espectadores que “O Animal Cordial”. Este filme, apesar do elenco de ponta (liderado por Murilo Benício), de suas ousadias estéticas e inegável potência narrativa, foi visto por apenas 10 mil espectadores.

Agora, com “A Sombra do Pai”, aposta-se na força das relações familiares (pai viúvo e filha pequena, que adora assistir a filmes de terror). Além de imantar-se a trama com um certo (embora sutil) humor, garantido pela atriz-fetiche da diretora, a grandona (e talentosíssima) Luciana Paes.

Nina Medeiros e Luciana Paes em cena de "A Sombra do Pai"

Gabriela define “A Sombra do Pai” como “uma narrativa realista, com toques de horror e fantasia”. Dalva (Nina Medeiros), uma menina de apenas nove anos, é órfã de mãe e vive em companhia da tia, Cristina (Luciana Paes). Esta, ao realizar o sonho do casamento, deixa a casa do irmão e, em consequência, a sobrinha entregue à própria sorte. Afinal, o pai (Júlio Machado), operário da construção civil, atormentado por lembranças dolorosas e trabalhando como animal de carga, torna-se a cada dia mais alheio ao mundo que o cerca. E, como um zumbi, vai somando doença e perturbações psíquicas. A criança é obrigada a virar o “adulto da casa”. Com esta inversão da ordem natural das coisas, a menina recorre a dons que acredita ter e empenha-se em trazer os pais ao mundo dos vivos.

O filme, apesar do explícito diálogo com o horror e a escuridão, tem um ou outro momento de alegria e cor tropical (em especial uma festa junina, embalada por hit musical e registrada pela poderosa câmara da uruguaio-brasileira Barbara Álvarez).

Vale lembrar que o roteiro do filme foi elaborado e reelaborado por Gabriela ao longo de muitos anos e contou com assessoria de laboratórios criativos, alguns deles com a assessoria de Quentin Tarantino (“Pulp Fiction”), Marjane Satrapi (“Persépolis”) e Robert Redford (“Gente Como a Gente”).

Em entrevista à Revista de CINEMA, Gabriela reflete sobre o “cinema do medo” e reafirma sua intenção de dialogar com o público, pois “o tem em mente” em todos os seus trabalhos.

Em debate, no Festival de Brasília, você disse que “faz parte de nossa natureza, como brasileiros, o apagamento do nosso terror cotidiano, pois, como sociedade, não costumamos refletir sobre nosso horror histórico e presente. Nosso público está acostumado com abóboras do Halloween, com sangue na neve ou no colégio, enfim, com os horrores codificados do cinema norte-americano”. Mesmo assim, você espera que seu segundo longa, “A Sombra do Pai”, mobilize público mais significativo que o de “O Animal Cordial”?

Nunca fiz um filme sem ter o espectador em mente. No entanto, sei das dificuldades que o cinema brasileiro – qual seja – vem enfrentando para encontrar espaço nas salas. Ficamos em cartaz por menos e menos tempo; no caso do filme de gênero brasileiro, a resistência é ainda maior, em especial pelas razões que você cita. “A Sombra do Pai” é um filme mais intimista, que apresenta um leque de personagens que podem conversar com um público mais amplo (o slasher, gênero de “O Animal Cordial”, é a cria deformada do horror, um subgênero maldito que chega a ser marginalizado dentro do próprio gênero). Talvez este novo filme ganhe a adesão de mais espectadores pelo drama familiar que sustenta a narrativa. Talvez não. É sempre misterioso, isso do público. Torço para que seja visto, sempre.

O que a levou ao cinema de gênero? De onde vem esta paixão (paixão que a levou a estudar o assunto em dissertação de mestrado na UFBa)? Seu terceiro longa também dialoga com o horror?

Acho que o cinema de gênero foi quem chegou até mim. Quando era criança, nos anos 1980/90, era abundante a programação desse tipo de filme nos canais da TV aberta. Não existia TV a cabo. Só a TV aberta e suas infinitas sessões de filmes norte-americanos dublados. Cresci assistindo a tudo isso e, de alguma maneira, o sentimento que esses filmes provocavam – o medo, a angústia, a tensão – passaram a fazer parte do filtro através do qual eu observava a vida. Estamos falando de uma criança de seis, sete anos, quando vi o primeiro “filme de medo” na TV de que tenho lembrança, “Tubarão”, do Spielberg. Então, essas histórias passaram a ser sinônimo de histórias, sabe? Contar histórias, para mim, tem a ver com contar esse tipo de história. É indissociável, eu acho, da minha personalidade. Sobre meu terceiro longa, ele dialoga com o horror, sim. É um filme de exorcismo, contemporâneo, claro, mas estão lá o Diabo, a possessão, o dogma religioso de uma sociedade controladora (qualquer semelhança com o atual estado das coisas não é mera coincidência).

Você definiu “A Sombra do Pai” como um “Tempos Modernos do terror”, temperado com a imaginação lírico-horrífica de “O Espírito da Colmeia”. Quando cria seus filmes, sendo uma roteirista prolífica e de imaginação larga, você tem estes diálogos (com os filmes citados e outros) como referência explícita? Ou implícita?

Minhas referências são sempre implícitas. Elas nunca vêm de forma direta, mas definitivamente estão depositadas em meu inconsciente de forma definitiva. O fantasma de artistas e obras específicas me assalta no momento da criação. Tem coisas que vejo e/ou leio que nunca me abandonam. Acho que a forma de narrar do Stephen King está muito presente na fábula de “A Sombra do Pai”. É um estudo de uma família operária brasileira e os monstros que os consomem; a chave narrativa de King está voltada essencialmente para a problematização do funcionamento das famílias de classe média norte-americanas. Inconscientemente, essa porta de entrada para a história que conto bebe da fonte da própria forma de narrar de King. O processo criativo para mim é uma chave de acesso direta para o inconsciente – até chegar lá, na fonte rica das ideias e das sombras, são rascunhos e apontamentos. Escrever, para mim, é um processo de investigação que envolve muita coisa: dor, alegria, descobertas, escavação de coisas há muito esquecidas. Dá medo, mas também é excitante.

“A Sombra do Pai” mostra uma visão aterradora do trabalho. Uma atividade brutal, alienante, mal remunerada e que afasta o pai da filha única, num momento em que ambos necessitam muito um do outro. Este lado político e social de sua criação ganha imenso relevo neste segundo longa. Será que o público brasileiro está preparado para soma tão explosiva (de trabalho e horror)?

O público brasileiro precisa se ver na tela. Precisa se reconhecer. A minha proposta é que olhemos diretamente para nossas sombras, porque acredito que só assim podemos identificar a força da nossa luz. Os filmes de horror têm essa característica dual: falam de morte para salientar o que é importante na vida. Eu queria muito conversar com o público, ver o impacto de minhas narrativas de uma forma ampla. Também, por isso, eu persigo um cinema essencialmente narrativo – como tribo (que ainda somos), é assim que organizamos a nossa existência.

Você escreveu belo roteiro para Walter Salles, um episódio de longa-metragem coletivo realizado sob a sigla BRICS. Você gostou do resultado? Por que o filme continua inédito?

O filme fez parte de um coletivo de filmes que apresentamos no Festival BRICS, na China, sob encomenda do diretor chinês Jia Zhang-Ke (que também faz parte do mosaico, com um episódio). Há toda uma questão de direitos autorais que precisa ser resolvida antes que veiculemos o segmento de Walter nos cinemas brasileiros. Mas vai acontecer. Trabalhar com/para Walter é estimulante, porque ele está aberto à minha sensibilidade, inclusive às camadas menos óbvias dela. A proximidade com a sensibilidade dele expande a minha própria (é assim que acontece nas melhores parcerias); e no caso deste curta-metragem, ainda contamos com a colaboração valiosa de Joana Collier, montadora do Walter, que esteve presente nas conversas de brainstorm que antecederam o meu processo de escrita. Que prazer é trocar com Joana e Walter, e o resultado do filme me emociona muito, porque ainda traz Maeve Jinkings, que é uma atriz que admiro muito, no papel principal.

Há nomes femininos muito fortes no seu filme: a atriz Luciana Paes, a grande fotógrafa uruguaio-brasileira Bárbara Álvarez, a montadora Karen Akerman. O que a motivou a convocar mulheres para funções tão importantes (diretora de fotografia, editora)? Você se considera uma realizadora feminista?

Eu costumo dizer que se uma mulher chega ao posto de “diretora de cinema”, ela é feminista. Não há como chegar a um lugar hierárquico dominado por homens e não ser feminista – demanda um tanto de consciência e perseverança ocupar este lugar e, sobretudo, continuar nele. Portanto, se diretora, feminista. Quanto aos nomes femininos que integram a minha equipe, são todas mulheraças excepcionais no trabalho que realizam. Escolhi cada uma delas sobretudo pelo talento, em primeiro lugar. Sou fã de todas.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

A Sombra do Pai
Brasil, 92 minutos, 2019
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Produção: Acere e RTFeatures
Elenco: Nina Medeiros, Júlio Machado e Luciana Paes
Censura: 16 anos
Em cartaz em SP, Rio, BH, Porto Alegre, Curitiba, Fortaleza, Recife, Salvador e São Luís. E, a partir de 16 de maio, em dezenas de outras cidades, dentro do Projeto Cinépolis-Caixa de Pandora.

 

FILMOGRAFIA

2019 – “A Sombra do Pai” (longa-metragem)
2018 – “O Animal Cordial” (longa)
2014 – “Estátua” (curta-metragem)
2013 – “Terno” (curta codirigido por Luana Demange)
2012 – “A Mão que Afaga” (curta)
2011 – “Uma Primavera” (curta)
2010 – “Náufragos” (curta codirigido por Matheus Rocha)

One thought on “Entrevista: Gabriela Amaral Almeida

  • 8 de maio de 2019 em 17:24
    Permalink

    Quem lê a entrevista até acredita que é um filme extraordinário. Mas aí você vai ver e…

    Quanto mais certos diretores “se acham”, mais pretensiosas e perdidas são suas obras. É bem o caso aqui.

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