Mostra Ecofalante soma filmes socioambientais ao cinema militante do pós-68

Por Maria do Rosário Caetano

Quem pensa que a Ecofalante só apresenta filmes “verdes”, ou seja, ecológicos, desconhece o amplo espectro audiovisual programado por este festival paulistano. Há oito anos, sempre na Semana do Meio-Ambiente – cuja data máxima é o Cinco de Junho, Dia Mundial do Meio-Ambiente – o evento promove verdadeira celebração audiovisual composta com documentários (e algumas ficções), debates, seminários, oficinas e atividades em realidade virtual.

Claro que “filmes verdes” compõem o núcleo duro deste festival que coloca a ecologia no autofalante. Mas o conceito torna-se, a cada novo ano, mais amplo e democrático. Sons e imagens serão espalhados por diversas telas paulistanas a partir desta quinta-feira, 30 de maio. Primeiro, haverá abertura para convidados, que assistirão ao filme austríaco-africano “Bem-vindos a Sodoma”, de Florian Weigensamer e Christian Krönes (nesta quarta-feira, na Reserva Cultural). As atividades prosseguirão até 12 de junho, com exibição gratuita de 132 longas, médias e curtas-metragens, oriundos de 32 países, em mostras competitivas ou informativas.

Para comprovar o amplo alcance do conceito de “cidadania verde”, a Ecofalante 8 apresentará a mostra “A Crise das Utopias e o Cinema Militante Pós-68”, composta com 14 filmes realizados entre 1970 a 1984 e assinadas por diretores do calibre de Agnès Varda (“Uma Canta, a Outra Não”), Michelangelo Antonioni (“Zabriskie Point”), Chris Marker (“O Fundo do Ar É Vermelho”), Glauber Rocha (“O Leão de Sete Cabeças”) e Frederick Wiseman (“Carne”).

A seleção Pós 68 é tão instigante, que vale citar os outros títulos que a compõem: “Corações e Mentes”, o poderoso retrato da Guerra do Vietnã, de Peter Davis, “Mueda, Memória e Massacre”, o longa moçambicano de Ruy Guerra, “25”, de Celso Luccas e Zé Celso, outra aventura brasileira na Moçambique revolucionária, “Angela Davis, Retrato de uma Revolucionária”, de Yolande Du Luart, “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Débord, “Milestones”, de Robert Kramer e John Douglas, “Ela”, da alemã Gitta Nickel, “Os Tempos de Harvey Milk”, de Robert Epstein, e “Abrigo Nuclear”, ficção científica do baiano Roberto Pires.

A equipe do festival, comandada por Chico Guariba, destaca o principal propósito da mostra “Crise das Utopias”: “promover reflexão sobre o mundo e a sociedade que se seguiram à grande efervescência cultural dos anos 1960”. Por isto, e para estabelecer relações com o tempo presente, foram agendados dois debates – “Contracultura e 68” e “Ativismos Emergentes”.

A escolha de“Bem-vindos a Sodoma” para a noite inaugural do festival não é aleatória. O filme, premiado no Festival de Zurique, retrata o babilônico lixão de Agbogloshie, em Gana, África. Mais um documentário – pode-se questionar – sobre montanhas de resíduos e dejetos acumulados em países do Terceiro Mundo?

Sim, mas com um agravante: trata-se do maior “depósito” de lixo eletrônico do mundo. Lá – pontua o comando da Ecofalante – “crianças e adolescentes desmontam equipamentos, em meio a fumaça tóxica, no que se deve definir como uma rotina venenosa”.

“Bem-vindos a Sodoma” é um filme inédito no Brasil, assim como “O Fio da Meada”, longa-metragem do homenageado deste ano pela Ecofalante 8, Silvio Tendler. Do cineasta carioca, foram selecionados onze filmes. Ao longo de enxutos 77 minutos, “O Fio da Meada” acompanha a luta de caiçaras, quilombolas e indígenas para sobreviver e tentar impedir que suas reservas naturais sejam destruídas pelo processo de urbanização.

De Tendler, cuja obra será tema de debate no sábado (dia 8 de junho, na Reserva Cultural), serão exibidos, ainda, “Agricultura Tamanho Família”, “Dedo na Ferida”, “O Veneno Está na Mesa”, “ O Veneno Está na Mesa II”, “Sonhos Interrompidos”, “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto de Cá”, “Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil”, “Os Anos JK”, “Jango” e o imperdível “Utopia e Barbárie”.

A tragédia da Samarco, desastre ambiental que traumatizou a consciência nacional e internacional, é tema de um dos mais esperados filmes brasileiros da Ecofalante: “O Amigo do Rei”, de André D’Elia. Este documentário foi programado na “Mostra Brasil Manifesto”, novo segmento do festival, destinada a produções que se propõem a construir “retrato denso e agudo do Brasil”.

André D’Elia consumiu 142 minutos para registrar os danos causados pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana-MG e suas terríveis consequências. O trabalho anterior do diretor – “Ser Tão Velho Cerrado” – foi o vencedor da sétima edição do festival socioambiental, ano passado, segundo a escolha do público.

A “Brasil Manifesto” traz, ainda, filmes de Orlando Senna (“Idade da Água”, que faz sua estreia nacional na mostra), Regina Jehá (“Frans Krajcberg: Manifesto”), Christiane Torloni e Miguel Przewodowski (“Amazônia, o Despertar da Florestania”) e André Mauro (“Humberto Mauro”).

O filme de Orlando Senna, codiretor do seminal “Iracema, uma Transa Amazônica”, resulta em alerta sobre duas preocupações que estão na essência do “cinema verde”: a falta de água em muitos pontos do planeta e a cobiça internacional sobre a Amazônia brasileira.

O cineasta baiano, que foi titular da SAv (Secretaria do Audiovisual, no extinto MinC), lembra que “além de concentrar 20% da água potável do mundo, a Amazônia é a região com mais possibilidade de manter seus mananciais nas próximas décadas, graças à umidade da floresta”. Isto se a ganância humana não continuar motivando a devastação da maior floresta tropical do planeta.

“Florestania”, soma de dois vocábulos (floresta e cidadania), é o conceito que guia o primeiro longa da atriz Christiane Torloni (em parceria com Miguel Przewodowski). Lançado nos cinemas, o filme vem alcançando desempenho digno de registro. Se a atriz e mestre-de-cerimônia (ela aparece em cena e amarra os depoimentos) não quisesse abarcar tantos assuntos e não controlasse até a montagem final (o nome dela encabeça a lista de editores), “Florestania” seria um filme poderoso. Montagem mais enxuta teria potencializado momentos de grande impacto, como o de uma série de motosserras usadas como imensos falos por seus portadores.

O filme de Regina Jehá, praticante (devota e apaixonada) do “cinema verde”, acompanha momentos importantes na vida do escultor e fotógrafo polaco-brasileiro Frans Krajcberg (1921-2017). Em especial, a luta que ele travou em defesa da Amazônia e sua pesquisa incansável de materiais da natureza transformados em objetos de arte e reflexão. O documentário acompanha, também, a homenagem que a XXXII Bienal Internacional de Arte de São Paulo prestou ao artista, pouco tempo antes de sua morte.

“Humberto Mauro”, documentário realizado pelo ator André Mauro, sobrinho-neto do pioneiro do cinema brasileiro, pode, num primeiro momento, parecer deslocado em seleção tão militante. Mas, no fundo, ele se integra ao conjunto, pois constrói-se, em forma pastoral, como lírico canto de amor à Natureza.

Na mostra “Panorama Internacional Contemporâneo”, composta com sete eixos temáticos (Cidades, Economia, Povos & Lugares, Recursos Naturais, Saúde, Sociobiodiversidade e Trabalho), a Ecofalante reuniu 44 filmes, oriundos de 22 países.

Um dos mais procurados deve ser “Jane”, de Brett Morgen (EUA/Inglaterra). O realizador centrou seu trabalho em intensa pesquisa nos 50 anos de memória audiovisual dos arquivos da National Geographic, para contar a história de Jane Goodall, pesquisadora da vida dos chimpanzés. Ela se notabilizou ao desafiar o consenso científico e, assim, revolucionar a compreensão do mundo natural. Na trilha sonora, composições do músico Philip Glass.

Vulcão de Lama: A Luta Contra a Injustiça”, de Cynthia Wade e Sasha Friedlander, também chega dos EUA. Cynthia, que ganhou mais de 40 prêmios (destaque para um Oscar em 2008, e uma segunda indicação em 2013), e Sasha documentam a luta de moradores de Java Ocidental, na Indonésia, cujas casas foram soterradas por um tsunami de lama em ebulição.

O canadense “Golpe Corporativo”, de Fred Peabody, apresenta o Presidente Trump como “resultado de fracassadas políticas globalistas neoliberais”. O documentário postula ideia compartilhada, no mundo contemporâneo, por muitas vozes: “golpes comandados por corporações e bilionários foram gradualmente assumindo o controle do processo político”. Ou seja, esvaziando parlamentos e outras instituições democráticas.

O indiano “Pra Cima, pra Baixo e pros Lados: Cantos de Trabalho”, de Anushka Meenakshi e Iswar Srikumar, selecionado pelo poderoso festival de documentários de Amsterdã, retrata uma aldeia de Nagaland, próximo à fronteira entre Índia e Myanmar. No local, vivem 5 mil habitantes, dedicados ao cultivo do arroz para consumo próprio. O filme é pautado pelo ritmo e o movimento do capinar, arar, plantar e colher.

No segmento dedicado ao mundo do trabalho, será exibido o premiado “A Verdade sobre Robôs Assassinos”, de Maxim Pozdorovkin (EUA). Sob título que evoca filmes de horror, está um documentário que mostra como os seres humanos estão tornando-se cada vez mais dependentes de robôs. Vários pontos-de-vista, de engenheiros a jornalistas e filósofos, ajudam a compor quadro com situações em que robôs, tidos como inofensivos parceiros humanos, causaram mortes. Nestes casos, pergunta o filme, “quem é o culpado quando um robô mata um humano?”

Na vertente “Saúde”, que estreia nesta edição da Ecofalante, mais dois títulos, ambos norte-americanos, se destacam: “Mulheres Contra a Aids”, de Harriet Hirshorn, primeiro documentário sobre “a história das mulheres que assumiram a vanguarda do movimento global contra a Aids”, e “Operação Enganosa”, de Kirby Dick. Este documentário, composto com “material de pesadelos distópicos”, apresenta histórias de vítimas de tecnologias usadas inadequadamente na Medicina. Um filme que, pelo visto, tem tudo a ver com postura do professor, cineasta e ator Jean-Claude Bernardet, que resolveu interromper tratamento de câncer, por sentir-se como uma espécie de cobaia de tecnologias médicas vendidas por grandes corporações.

Na programação da Ecofalante 8, ainda estão confirmados os também “Atomic Homefront”, de Rebecca Cammisa, “Survivors”, de Arthur Pratt, inéditos no Brasil. O documentário de Rebecca mostra grupo de moradores liderado por mulheres. Elas lutam contra a negligência governamental e corporativa que levou ao despejo permanente de resíduo nuclear em duas comunidades de St. Louis, cidade dos EUA. Já “Survivors” registra, pelos olhos de cineastas de Serra Leoa, retrato íntimo do país durante o surto do Ebola, expondo a complexidade da epidemia e a turbulência sociopolítica surgida a partir dela.

A cada novo ano, a Ecofalante promove duas mostras competitivas. Uma de longas latino-americanos (o melhor faz jus a prêmio de R$15 mil, pelo júri oficial, e R$5 mil, pelo júri popular). Outro, o Concurso Curta Ecofalante para Estudantes (R$3 mil, segundo o júri oficial, e R$3 mil, para o mais votado pelo público).

Dos doze longas selecionados para a Competição Latino-Americana, quatro são brasileiros: “GIG – A Uberização do Trabalho”, de Carlos Juliano, Cauê Angeli e Maurício Monteiro, “Parque Oeste”, de Fabiana Assis, “Empate”, de Sérgio de Carvalho, e “Filhos de Macunaíma”, de Miguel Ramos. Eles se somam, na disputa, ao colombiano “Lapü”, de Juan Polanco e César Jaimes, aos argentinos “O Quadrado Perfeito”, de Pablo Bagedelli, e “O Espanto”, de Pablo Aparo e Martín Benchimol, ao peruano “Wiñaypacha”, de Óscar Catacora, ao venezuelano “Está Tudo Bem”, de Tuki Jencquel (parceria com a Alemanha), e aos mexicanos “A Camareira”, de Lila Avilés, e “Um Filósofo na Arena”, de Aaron Fernandez e Jesus Munoz (parceria com a Espanha).

Entre os curtas latino-americanos, os brasileiros são maioria (seis em um total de doze): “Bandida”, de Marco Antônio Pereira, “Caçador”, de Leonardo Sette, “Antes do Lembrar”, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, “À Cura do Rio”, de Mariana Fagundes, “Homens e Caranguejos”, de Paulo de Andrade, e “Mesmo com Tanta Agonia”, de Alice Andrade Drummond.

Os hispano-americano são “32-Rbit”, de Victor Orozco, “Meteorito”, de Mauricio Sáenz, ambos do México, os colombianos “Palenque”, de Sebastian Pinzon, “Terra Molhada”, de Juan Sebastián Mesa, “Yover”, de Edison Sanchez, e “Cartucho”, de Andrés Chaves Sánchez.

No Concurso Curta Ecofalante, com filmes que trazem a assinatura de estudantes de cursos livres, colégios e universidades, estão “Prestes”, de Gabriela Sallum, e “Beta”, de Beatriz Costa (ambos do É Nóis Na Fita – Curso Gratuito de Cinema), “Corpo D’Água”, de dez alunos do Instituto Federal de Alagoas), “À Luz do Sol”, de Edielson Shinohara (Universidade Federal do Pará), “ATL: Acampamento Terra Livre”, de Edgar Kanaykõ Xakriabá (UFMG),“Derradeiro”, de Renata Alves (Escola Municipal Profª Ana Ribeiro Barbosa), “Estrela D’Água”, de Julia Milreu (Universidade da Região de Joinville), “Laklãnõ/Xokleng: Os Órfãos do Vale”, de Andressa Santa Cruz e Clara Comandolli (Universidade Federal de Santa Catarina). Completam a lista de selecionados: “Loucos pelo Bento”, de Juliana Chelotti (New York Film Academy), “Mãe do Mangue”, de Isabella Santiago e Jonas Torralba Batista (Fundação Getúlio Vargas), “O Pinguim”, de Vitor Martins (Universidade Federal Fluminense), “Reality”, de João Victor Nascimento (E.E. Paulo Roberto Faggioni), “Vitrine Musical”, de Marcos Damasceno (Universidade Anhembi Morumbi).

 

8ª Mostra Ecofalante de Cinema
Em São Paulo, de 29 de maio (sessão de abertura para convidados) até 12 de junho.
Na Reserva Cultural, Espaço Itaú Augusta, Circuito SPCine (CCSP), Cine Olido, CCBB, entre outras.
Serão exibidos 132 filmes em vários segmentos, incluindo competição Latino-Americana (de longa e curta-metragem), concurso de curtas estudantis, mostras informativas, Sessão Infantil, debates, oficinas e o 2º Seminário de Cinema e Educação (parceria com o Sesc), além do novo programa Realidade Virtual.
Toda a programação é gratuita.

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