Noite dos Rios Grandes – do Sul e do Norte – movimenta o Cine Ceará com “5 Casas” e “Sideral”

Por Maria do Rosário Caetano

Fortaleza (CE) — Dois extremos geográficos do Brasil — o Rio Grande do Sul, representado pelo longa-metragem “5 Casas”, de Bruno Goularte Barreto, e o Rio Grande do Norte, pelo curta “Sideral”, de Carlos Segundo — causaram sensação na quarta noite das mostras competitivas do Cine Ceará, o Festival de Cinema Ibero-Americano de Fortaleza. A sessão noturna contou, ainda, com um falso documentário, muito bem-humorado, dirigido pelo mineiro Pedro Gonçalves Ribeiro. A tarde já começara com um importante documentário — “Transversais”, de Emerson Maranhão, sobre transexualidade — um dos concorrentes da Mostra Olhar do Ceará.

A quente terça-feira foi, portanto, dedicada ao cinema realizado fora do eixo Rio-São Paulo. Em “5 Casas”, título infeliz para o belo documentário subjetivo de Gularte, tudo se passa na cidade de Dom Pedrito, próxima à fronteira uruguaia. Foi lá que nasceu o diretor. Aos oito anos, ele perdeu a mãe, vítima de câncer, e aos 12, o pai, do mesmo mal. Deixou o pequeno município e as tristes lembranças da casa materna, de familiares e pessoas amigas. E, num galpão da fazenda do avô, Bruno e os irmãos mais velhos depositaram álbuns de fotos e uma infinidade de objetos deixados pelos pais (inclusive utensílios médicos).

A vida seguiu. Bruno tornou-se fotógrafo, artista visual, professor e cineasta. E, só então, resolveu revirar, com sofrida colaboração dos irmãos e amigos, a memória de seu passado em Dom Pedrito.

Em recente crítica a “Madres Paralelas”, de Pedro Almodóvar, o francês Jean-Michel Frodon evocou as “ninharias reacionárias” de centenas e centenas de filmes familiares. E o fez satisfeito com os resultados obtidos pelo manchego, sempre um transgressor. Bruno, também, alcança resultado progressista e generoso. Traz um olhar atento ao que se passa ao seu redor. Presta atenção no outro. Fez um filme em primeira pessoa, mas contextualizado. Dom Pedrito representa o microcosmo de um mundo marcado pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, pela ganância imobiliária, pelo rigor religioso (capaz de transferir uma freira idosa para cidade com a qual ela não mantém laços afetivos), pela homofobia etc.

“5 Casas” (ah!, que título realmente infeliz!) passou por importantes festivais internacionais (incluindo o IDFA – DOC Amsterdã) e deve chamar atenção do júri na Noite dos Mucuripes. Embora Goularte seja autor da maior parte dos créditos do filme, sendo inclusive um de seus fotógrafos, ele contou com a seminal colaboração de Bruno Polidoro, notável talento das imagens gaúcho-pampeanas.

“Sideral”, o curta que chegou ao Cine Ceará direto do Rio Grande do Norte, vem causando frisson desde junho, quando foi um dos dez títulos selecionados (entre 3.700 candidatos vindos de todos os cantos do mundo) pelo Festival de Cannes para sua mostra competitiva. O estado potiguar, o único da Federação brasileira governado por uma mulher (a petista Fátima Bezerra) entrou em clima de euforia. Pela primeira vez em sua história cultural, uma produção 100% local, com atores potiguares (os ótimos Priscilla Vilela e Enio Cavalcante à frente) e filmada em locações na Base Aérea de Natal, em Parnamirim e Ceará-Mirim chegava ao mais badalado festival do mundo.

O filme é realmente muito bom e surpreendente. Uma mulher, Marcela (Priscilla Vilela), sobrecarregada pelas tarefas domésticas e pelo trabalho (saberemos logo que é faxineira na Base Aérea), anda deveras perturbada. Inclusive em sua relação com o marido, o mecânico Marcos (Enio Cavalcante), que troca diálogos picantes e viris com um colega de trabalho. Marcela e Marcos têm dois filhos.

Tudo é filmado em registro realista e em preto-e-branco. De repente percebemos que estamos metidos em trama de ficção científica. Mas nada que lembre o uso de tecnologia de ponta de Hollywood (embora os efeitos obtidos em estúdios franceses sejam de ótima qualidade). Intencionalmente, Carlos Segundo, cineasta e psicólogo, com doutorado na Unicamp, quis fazer um filme híbrido, soma de drama familiar e ficção científica. Um filme feminino, já que centrado nos sonhos e desejos de uma mulher comum, sobrecarregada pelos afazeres domésticos e laborais.

Se o Rio Grande do Norte é só entusiasmo com o filme de Carlos Segundo, hoje professor da UFRN, que foi a Cannes — e que acaba de ser premiado na Mostra de São Miguel do Gostoso — o mesmo parece não se dar em outras unidades da Federação. “Já mostrei meus curtas em Clermont-Ferrand e em Cannes, mas nunca consegui ser selecionado para o Festival de Brasília”, contou ele, no debate do Cine Ceará, via streaming (pois encontrava-se no festival de Gostoso, no litoral potiguar).

O mineiro “O Resto”, identificado como “documentário” no material de divulgação do Cine Ceará, é, no mínimo, um híbrido. Afinal, soma atores profissionais a técnicas caras ao cinema documental (como “cabeças falantes”, que dão seus testemunhos ao diretor do filme). Procedimento que, de início, nos engana, pois nos induz a acreditar que estamos assistindo a uma obra de denúncia. Uma senhora, já idosa, inicia sua via-crucis. A burocracia a dá como morta. Ela conta com um chamativo túmulo no cemitério, no qual seu longo (e raro) nome está gravado. Ela teria ido viver no exterior, como exilada política. Agora vende doces na rua. A essa altura dos acontecimentos, o tom já tornou-se de tal modo irônico e exacerbado, que começamos a desconfiar. O Brasil é realmente um país onde tudo pode acontecer. Mas as pontas não fecham. Quem teria construído túmulo tão sofisticado e caro para a morta? Como encontrar assinatura homônima composta com nome e três sobrenomes tão raros?

Bem-humorado, o jovem Pedro Gonçalves Ribeiro, que deixou sua Belo Horizonte natal aos sete anos, mas mantém vínculos afetivos com a cidade, confessou a origem do filme: ele nasceu nesses tempos de fake-news, como uma brincadeira inspirada em fato ocorrido na Espanha (uma senhora foi dada como morta e lutou, por anos, na Justiça, para provar que estava viva). E que fertilizou seu roteiro com leitura de livro de Heloisa Starling sobre os fantasmas que habitam o imaginários dos belo-horizontinos.

“Transversais”, que Allan “Pacarrete” Deberton produziu e Emerson Maranhão dirigiu, é um longa documental que não chama atenção por buscas estético-formais, mas sim pela qualidade de seus “personagens”. O cineasta, que contou com assessoria da atriz e diretora Julia Katharine, discute a transexualidade a partir de vivências de cinco cearenses, vindos do interior da capital. A eles agrega depoimentos de uma mãe e de um pai de jovem transsexual.

Alguém, de saída, poderá argumentar que Emerson só ouviu pessoas brancas e com boa situação financeira. Ninguém vive em favela, nem da prostituição. Há uma professora de Matemática linda e inteligente, um jovem enfermeiro e instrutor do SAMU, um antropólogo ligado ao candomblé, uma cabeleireira dona de bom e respeitado salão de beleza e a filha adolescente do casal bem-vestido e sentado em belo e confortável sofá, em casa idem.

O que significa que a opção de Emerson Maranhão — oriundo do jornalismo (assina coluna sobre Diversidade na mídia cearense) — deu-se pela realização de um filme afirmativo. Isso é inegável. Afirmativo, mas não cego ou tolo. Todos os depoimentos registram dores e sofrimentos. O difícil momento da revelação — de que era um menino em corpo de menina. Ou uma menina em corpo de menino.

Uma das transsexuais conta que a mãe, muito religiosa, aceita chamar amiga dela, também trans, pelo nome social feminino. Mas a ela, a filha, não! Para a mãe, ela continua sendo ele.

O futuro jovem enfermeiro, que foi adotado — um bebê colocado num cesto à porta de um casal sem filhos — chegou para o pai, já idoso, e avisou que ia iniciar sua transição. Que se eles não aceitassem, entenderia e iria embora. Eles aceitaram.

Mas a história mais apaixonante do filme é a do casal de pais. A rechonchuda mãe da tímida adolescente que está concluindo sua transição é uma força da natureza. Carisma puro. Cheia de vida, ela deu a volta por cima, superou crise conjugal e convenceu o marido a aceitar que o filho único virasse uma moça. As lágrimas dele, abundantes e naturais, nos enchem de esperança. Tornaram-se militantes da causa, participam de reuniões e Paradas gays, ao lado da filha. Eles nos fazem acreditar que um dia a tolerância se instalará entre nós e cada um viverá sua sexualidade do jeito que desejar.

Sabemos que a transexualidade ainda é um tabu, que o Brasil figura entre os países que mais matam homoafetivos do mundo, que milhares de pais expulsam filhos de casa quando descobrem que são gays, que a prostituição se apresenta como uma primeira (e única) saída em momentos difíceis. Mas o filme de Emerson Maranhão mostra que um outro mundo é possível.

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