Quando o mundo acaba
O novo e inédito longa-metragem de Toni Venturi, “Estamos Juntos”, com pré-estreia no festival de cinema de Recife agora em maio e lançamento em junho, reforça a tendência do diretor em trabalhar com o universo feminino, tornando esse tema de várias formas o centro de seus filmes. Apesar disso, o que mais importa na cinematografia de Venturi não é o tema, mas o contexto em que esses dramas femininos se desenrolam. Foi assim em seus dois filmes de ficção: um tema político, em “Cabra Cega”, onde uma mulher dá guarida a um guerrilheiro procurado pela ditadura; ou em “Latitude Zero”, onde uma mulher grávida na aridez do centro-oeste luta literalmente com as próprias mãos para sobreviver. Desta vez, Toni filma a história de Carmem, (Leandra Leal), uma jovem médica recém-formada que fará uma mudança repentina em sua vida, ao deixar o interior do Rio de Janeiro para investir na carreira profissional na cidade de São Paulo, e descobre que tem uma doença grave. A doença faz sua vida regrada ao detalhe virar de cabeça para baixo.
O filme pretende explorar essa descida ao íntimo da personagem em um mosaico de imersão pessoal em contato com a realidade de são Paulo. Carmem é residente em um conturbado hospital público do centro da cidade, e é voluntária de prevenção e saúde em um movimento de sem-teto. Com poucas e frágeis amizades, além de seu amigo de infância Murilo (Cauã Reymond, na pele de um gay), Carmem, disposta a aproveitar uma vida diferente da que tinha no interior, se entrega a uma sedutora aventura amorosa com Juan (Nazareno Casero), um músico argentino mais novo do que ela. Ao mesmo tempo em que divide sua intimidade com um homem pra lá de misterioso (Lee Taylor).
Leandra Leal é a protagonista absoluta de “Estamos Juntos”. Os três homens desta história “sobre os recônditos da alma feminina”, como gosta de definir Venturi, giram em torno do personagem de Carmem. “Os personagens femininos sempre me interessam mais. Eu tenho me dado conta disso. A mulher me parece sempre mais rica, mais forte. Ela é capaz de dar a luz. É profissional e é mãe. Eu me vejo mesmo mais fascinado pela insondável alma feminina. Mas isso não é uma coisa pensada, cerebral. É algo natural, como uma pulsão orgânica”, descreve Venturi, traçando, em seguida, comparações com o ímpeto político de seu cinema. “Não penso em fazer cinema político. Eu vejo o mundo dessa maneira. É como o curso de um rio. É algo que vem da minha formação, dos meus interesses e da concepção que eu tenho do cinema, sempre no embate entre o micro e o macro, entre o íntimo e o público”.
Filme levou mais de uma década para sair do papel
O curioso é que “Estamos juntos” é, na verdade, o primeiro projeto de Venturi. “Tudo começou na década de 90 como um exercício formal de escrever um roteiro de gênero a quatro mãos com o Di Moretti, meu parceiro de outros filmes. No início dos anos 2000 tomou forma de um projeto autoral e de médio porte (orçamento mais robusto e ambição de comunicação com um público maior). Mas foi no ano de 2008, com a vinda do roteirista Hilton Lacerda e da produtora Aurora Filmes (Rui Pires e André Montenegro), que o filme deslanchou e adquiriu sua cara e personalidade final”, revela o cineasta, que realizou o filme através do programa de coprodução Ibermedia. “Coprodução dá trabalho, mas os frutos são maiores. Acreditamos que o filme também será bem lançado na Argentina”.
Para atender os critérios do acordo de coprodução internacional, o filme contou com o técnico de som portenho Gaspar Scheuer e o roteiro sofreu alteração: o caso de amor da personagem central, que era brasileiro no original, passou a ser de um argentino, vivido por Nazareno Casero (“Crônica de uma Fuga”). Cauã Reymond surgiu como opção para o homossexual Murilo depois que Venturi assistiu “Se Nada Mais Der Certo” (2009), de José Eduardo Belmonte. “Fazer um gay assumido, nada caricato, é difícil e exige composição de personagem. Coisa de gente grande. E ele está brilhante no papel. Elenco é combinação, sinergia”, afirma Toni. Para Carmem, Toni jamais pensou em outra atriz senão Leandra Leal. “Esperei a Lele terminar a peça que estava fazendo para poder mergulhar de cabeça no projeto. Ela foi sempre a minha primeira escolha. É uma atriz especial, muito concentrada, hipnótica, que dá uma densidade ímpar ao filme”.
A construção do filme
Na direção de atores Venturi contou com a ajuda da produtora de elenco Vivian Golombek, da atriz Débora Duboc, e da diretora de teatro Ariela Goldmann, e usou um método experimental de trabalho, que ele mesmo explica. “É um software próprio, ainda em fase de testes. Trabalhamos em duas frentes: vivências e experimentações. Os atores precisam mergulhar em seus ambientes, passar por um processo de imersão na realidade do personagem, para então podermos trabalhar livremente os diálogos e as situações encenadas. Uma equação que funcionou muito bem e nos deu prazer”.
O cenário do filme abrange a cidade de São Paulo de formas diferentes, da periferia às classes média e baixa, o dia a dia de uma cidade feroz, desigual e plural, como é a capital paulista. Aliás, São Paulo está no centro não só do filme, como da filmografia de Venturi. “Amo São Paulo, mas às vezes fico triste de ver tantos muros altos, cercas eletrificadas, seguranças armados e mundos tão segregados convivendo num mesmo espaço e tempo. Sem dúvida, trazer à tona questões vitais da cidade como a habitação, sem didatismos ou proselitismos, é também uma das ideias deste projeto. A realidade dos sem-teto é muito forte. Sou pai. Não suportaria viver na rua com meus meninos, brigaria mesmo por esse direito. ‘Dia de Festa’ foi um filme que trouxe uma experiência que me tatuou a alma. Eu senti necessidade de trazê-la e ela ‘ocupou’ a ficção”.
Essa divisão de cenários foi pensada desde o começo do filme. Desde o princípio a equipe do filme trabalhou com esses dois universos sociais de São Paulo, de forma a mostrar ambos sem fazer dois filmes. “Essa foi uma das conceituações estéticas estabelecidas entre nós (Lula Carvalho, fotógrafo, Renata Pinheiro, arte, e produção) desde o começo. Os mundos (rico e pobre) são distintos, mas o olhar, a câmera, as cores, a vertigem são um só. Nenhum deles poderia ter um tratamento diferenciado. Os elementos precisavam estar coerentes com os contextos, mas sem cair na estilização ou no clichê. A ideia era amalgamar os dois universos. Isso foi muito bem trabalhado, por exemplo, na paleta de cores e no figurino, que representam realidades distintas sem separá-las em absoluto”, explica.
O próximo filme de Venturi, escrito em parceria com o roteirista Hilton Lacerda, deve seguir a mesma linha. Trata-se de “Nuvens” (nome provisório), que será ambientado na Amazônia. “Não posso falar mais do que isso. Mas adianto que, em minhas mãos, como sempre, a personagem feminina está se transformando em uma espécie guerreira”, confessa.
Por Julio Bezerra