Uma pitada de sobrenatural

O primeiro longa-metragem da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra estreia com sucesso no Brasil e em Cannes e lança mais uma dupla de cineastas talentosos no cinema brasileiro 

Em 2003, Juliana Rojas e Marco Dutra, então colegas do curso de cinema da ECA/USP, realizaram um curta-metragem quase de terror, “O Lençol Branco”, na contramão da maioria dos filmes realizados por estudantes universitários. O resultado não é bem um filme de terror, mas “tem resquícios do cinema do gênero”, como aponta Dutra. O curta foi exibido em Cannes, na Cinéfondation, e já prenunciava o que viria no primeiro longa-metragem da coerente dupla: “Trabalhar Cansa”, exibido também em Cannes, na mostra Um Certo Olhar, em 2011, e no festival de Paulínia, quando levou os prêmios especial do júri e som. O longa também foi selecionado para concorrer no festival de Brasília, que acontecerá em setembro próximo, e tem previsão de estreia logo após o festival.

“Trabalhar Cansa” é um drama familiar onde o sobrenatural e o fantástico entram como mais um elemento no cotidiano, tratado da mesma forma que uma briga de casal. Em resumo, o filme narra a historia de Helena, uma dona de casa que resolve abrir seu próprio negócio, um mercadinho, no mesmo momento em que o marido, Otávio, perde seu emprego.

“Trabalhar Cansa” é praticamente todo ambientado em dois cenários: o apartamento onde a família mora e o mercadinho de Helena. Toda a composição cenográfica atmosférica vem dos dois lugares. O apartamento deu trabalho, mas foi mais fácil de conseguir: além do prêmio em dinheiro, o edital de Paulínia vencido pela dupla exigia filmagem na região, dando como opção seus estúdios. Em um deles, foi construído todo o apartamento. O mercadinho já foi mais complicado. “Tentamos conseguir um mercado mesmo, mas, pelo custo, não valia a pena, já que teria que fechá-lo e perderia lucro e clientela. Procuramos então um galpão para cenografar e foi achado esse lugar, no Bom Retiro, que antigamente era um mercadinho e agora estava abandonado. Lá ainda tinham cartazes antigos, prateleiras. Nos inspiramos muito nisso para montar a cenografia. Foi a locação perfeita, já que é um lugar sinistro. Foi quase um segundo estúdio, porque tivemos que limpar o lugar, pintar, etc.”, explica Juliana.

O uso da sonoplastia também é muito importante na criação da tensão crescente que o longa apresenta. Os diretores, também roteiristas do filme, contam que a concepção sonora do longa – assim como a estética – variava de acordo com as três partes do filme, compostas por três elipses: o meio do ano, o natal e o carnaval, momentos em que se pode perceber evoluções nas personagens. “A presença do som era muito sutil no começo. Ao longo do filme, vai ficando mais tenebroso. A proposta era sempre usar sons que existissem no cotidiano, e fomos pesando e modulando isso, como barulho de geladeira, bafo de trânsito, etc., usando elementos naturais para criar uma tensão”, comenta a diretora.

O longa, que foi filmado entre abril e maio de 2010, durante cinco semanas e meia, em Paulínia, Campinas e São Paulo, nasceu em maio de 2007, quando foi selecionado para o Festival de Cannes o curta “Um Ramo”, primeira parceria com Sara Silveira, responsável por lançar diversos cineastas, e a Dezenove Som e Imagens. “A Sara disse que precisávamos de um projeto de longa para levar para lá. Trouxemos algumas ideias, inclusive uma chamada ‘Um Pequeno Investimento’, que é a história da Helena. Começamos a trabalhar nela e levamos um folder com uma sinopse, uns desenhos e textos sobre a gente”, conta Marco. Sara não gostava do título “Um Pequeno Investimento”. Logo então veio a ideia na literatura de Cesare Pavese, poeta italiano que tratava de questões trabalhistas nos anos 30. “Trabalhar Cansa” é título de um de seus poemas, apesar de não haver relações diretas com o filme, que custou R$ 2,6 milhões.

No elenco, vários colaboradores antigos, a começar pela dupla central. O papel de Helena foi escrito para a atriz da Companhia do Latão, Helena Albergaria, um dos pontos altos do filme, e com quem já haviam trabalhado desde 2001, incluse em “Um Ramo” – fazendo a esposa de Marat Descartes. O ator, porém, teve que fazer teste. Isso porque o personagem deveria ter mais de 40 anos e Marat não aparentava essa idade. Mas sua composição de voz e postura convenceu os diretores. O ator teve então que passar por uma dieta de engorda e teve o cabelo tingido.

Aproveitando a boa repercussão de “Trabalhar Cansa”, a dupla já trabalha no roteiro do próximo longa, “As Boas Maneiras”, já em captação, a ser também produzido pela Dezenove Som e Imagens. O filme, que deve novamente misturar o drama com o cinema fantástico, versa sobre uma grávida que contrata uma mulher para ficar com ela durante a gravidez e ser babá nos primeiros meses da criança, mas que, por um acidente de percurso, tem que cuidar da criança sozinha.

Do primeiro curta ao primeiro longa

“A mistura do drama familiar com o cinema de gênero vem muito do nosso gosto. Em ‘O Lençol Branco’, o equilíbrio vem porque falávamos muito da personagem. Não queríamos impor um estilo ao filme, discutíamos como deveríamos contar a história daquela personagem, tão trágica e tão sombria. O curta foi determinante para essa forma e esse equilíbrio. Isso se manteve em ‘Um Ramo’, nosso curta posterior, premiado na Semana da Crítica, em Cannes. Nossos filmes são uma observação sobre uma família de classe média em que sabemos que alguma coisa está acontecendo lá”, pondera Dutra.

“No fundo, nossos filmes são sobre a personagem, não sobre a história. O filme tem todo um estranhamento que é da situação. Os eventos que acontecem dialogam com o tipo de pessoa que ela é, que papel social tem. O elemento fantástico vem para revelar algo do personagem, trazer desequilíbrio para ela, nesse ambiente. No longa, conseguimos abrir mais e trabalhar mais os personagens, mas ainda assim é sobre Helena, a dona de casa que quer ser patroa”, complementa Juliana, que acabou de lançar o curta “Para Eu Dormir Tranquilo”. A dupla, que tem preferido protagonistas femininos, brinca que o tema dos filmes deles é sempre mulheres e morte.

Outro aspecto evidente na carreira de Rojas e Dutra, muito aflorado em “Trabalhar Cansa”, é o olhar crítico sobre a classe média, segmento social muito pouco abordado pelo cinema brasileiro. “Trabalhar a classe média é mais natural porque é de onde viemos. Talvez falte, sim, uma multiplicidade de olhares críticos sobre a classe média no cinema brasileiro, não apenas como pano de fundo”, aponta Marco Dutra. “Até tem filmes que façam isso, mas que não são olhados com devida atenção, como os filmes do Walter Hugo Khouri, que tratam de confrontos de ordem existencial, incluindo alguns com toques do cinema de gênero. ‘As Sombras’, nosso terceiro curta, foi inspirado em ‘As Deusas’, por exemplo”, complementa Juliana Rojas. No caso de “Trabalhar Cansa”, a questão típica da classe é a inserção da mulher no mercado de trabalho e a alteração de função dentro da família. “A Helena é uma dona de casa que quer virar patroa, porque dona de casa não é reconhecida como uma profissão. O que ela experimenta no filme é o quão difícil e contraditório é ter um negócio, ter lucro, sustentar a casa”, conta.

 

Por Gabriel Carneiro

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