A realidade da invenção

Sérgio Borges se arrisca na experimentação em “O Céu Sobre os Ombros” e faz um documentário ficcionando a vida de três personagens, que interpretam suas vidas de forma real

Foi brincando com a tênue linha entre documentário e ficção e com encenação da vida de personagens reais por eles mesmos que o mineiro Sérgio Borges conseguiu arrebatar cinco prêmios no Festival de Brasília de 2010 – filme, direção, roteiro, montagem e especial do júri para o trio de protagonistas – com sua estreia em longas. Desde então, “O Céu sobre os Ombros”, da produtora Teia, passou pelos festivais de Rotterdam, de Munique, Bafici, e muitos outros ao redor do mundo. E só agora, após um ano da primeira exibição pública, o filme chega aos cinemas tupiniquins, com patrocínio da Petrobras e distribuição da Vitrine Filmes – que tem se especializado em filmes independentes e de difícil penetração no mercado, como é o caso do filme de Borges.

“O projeto inicial do filme tem a ver com o livro ‘As Cidades Invisíveis’, de Ítalo Calvino. Nele, o imperador Kublai Khan solicita os serviços do mercador Marco Polo para lhe contar como é o seu enorme império, que ele mesmo não conhece. O mercador vai ao extremo de sua subjetividade para falar de cidades altamente improváveis, porque vistas explicitamente de um olhar pessoal. É um livro que trata da tênue linha que separa a realidade da invenção. A constatação de que real e ficção são conceitos separados apenas para se tentar explicar o mundo, mas que na verdade são coisas complementares, foi o que me moveu a fazer esse filme”, conta Borges, que aponta a insatisfação com o curta “Silêncio” (2006) também como mola propulsora para seu longa – o curta, que é sua primeira ficção, traz uma estrutura comum ao gênero e Borges não gostou da representação da história.

Para “O Céu sobre os Ombros”, Borges foi então atrás de pessoas anônimas, sem ligação às artes dramáticas, procurar a vivacidade, o exotismo e o humano que não encontrou em “Silêncio”. Queria personagens de uma zona marginal da sociedade que tivessem histórias que fossem curiosas a ponto de não parecerem reais. Para chegar ao trio de protagonistas do filme, foi contratada a atriz e produtora Izadora Fernandes, que lhe trouxe mais de cem opções. Borges, posteriormente, fez longas entrevistas com cerca de 20 possíveis personagens. Foi nesse processo que entrou a roteirista Manoela Dias – que tinha o projeto “Conte uma história e ganhe R$ 1”. “Fiz com ela um importante trabalho de mapear as principais situações dramatúrgicas dos personagens, os espaços que transitavam, as relações que tinham com as outras pessoas. O roteiro não ia para o set, mas isso não tira a importância dele no processo”, afirma o cineasta, que levou seis meses na escolha.

Os escolhidos foram: Everlyn Barbin, uma transexual, psicóloga, mestre em literatura, e ex-prostituta; Lwei Bakongo, um escritor marginal e depressivo que tem agonia de mostrar seus escritos; e Murari Krishna, um atendente de telemarketing, torcedor do Atlético Mineiro, skatista e integrante do movimento Hare Krishna. Aliás, o trio, pode-se dizer, é o filme. Borges acompanha os três em diversos momentos, registrando acontecimentos de seu cotidiano e criando um mosaico de suas existências. A montagem apenas intercala os personagens, em situações emocionais semelhantes. Em nenhum momento se encontram no filme. Aliás, só foram se conhecer no Festival de Brasília do ano passado. “É um filme sobre coisa nenhuma e sobre muitas coisas. A narrativa não explica exatamente quem são eles, como era sua vida pregressa, para onde suas vidas se encaminharão. Ela se concentra no fato de que três pessoas vivem a situação de serem mais uma no meio da grande multidão humana, mas que esse ser é uma fonte de sonhos, desejos, subjetividade, singularidades, é fonte de todo um universo”, aponta o diretor, que contou com mais de 90 horas de gravação em cada uma das duas câmeras que utilizou ao longo de um mês de filmagem.

O DISPOSITIVO

Para alcançar a representação da complementaridade entre ficção e real que Sérgio Borges desejava, ele criou um dispositivo para “O Céu sobre os Ombros”. “Quando colocamos uma câmera diante de alguém, algo essencial muda. Todos temos uma grande preocupação com a imagem que passamos ao outro. Um dos trabalhos principais nessa relação foi o de propiciar um ambiente para que essa ‘encenação no real’ pudesse acontecer com potência. Às vezes, realizavam atividades que já fariam no seu cotidiano; às vezes, provocávamos situações e os colocávamos em certos desafios; às vezes, viviam situações que já tinham vivido no passado, mas não viviam em suas vidas presentes; e, às vezes, eram cenas deliberadamente encenadas para chegarmos a certos resultados dramatúrgicos”, comenta Borges.

Dessa forma, vemos o dia a dia de Murari Krishna andando de skate nas ruas de Belo Horizonte, ou subindo num ônibus dominado pela Galoucura, a torcida organizada do Atlético Mineiro, que são quase que puramente documentais, sem interferências da produção. Ou vemos Lwei Bakongo tenso e angustiado quando recebe um convite para publicação de um de seus livros – ele, que não mostra seus escritos para ninguém. Tal situação, mesmo que pareça um flagrante, foi uma manipulação da equipe do filme, que pediu para esse importante editor telefonar para o escritor sem que ele soubesse e provocar as reações que observamos. “Para que o filme tivesse um esboço de linha dramática – que aqui se dá de uma forma não convencional –, precisávamos de alguns momentos-limite, e, de alguma maneira, esses momentos são forjados. Existe uma mistura difícil de ser separada entre o que é interferência e o que é natural: o filme é interferência, essa é a questão fundamental. E, claro, ele sabia que estava participando de um jogo”, explica Borges.

Os momentos mais fortes do filme se dão com a personagem Everlyn Barbin, justamente pelo tabu quanto a questão sexual – a troca do sexo e a prostituição –, o que talvez a faça a figura mais rica do longa. Tudo isso por conta da câmera quase documental, que busca apenas observar, quase de uma posição estática, os eventos. Em determinado momento, vemos Everlyn se prostituindo na rua. Duas pessoas a abordam – primeiro um taxista que fala que ainda vai fazer um programa com ela, depois um sujeito que de fato paga pelo programa. Pela lente da câmera afastada, vemos Everlyn fazendo sexo com ele no carro. O dispositivo aí se faz muito interessante. Borges revelou que ela não se prostituía havia anos e que saiu à rua a pedido da produção para uma encenação. O taxista foi um acidente de percurso, simplesmente apareceu no meio da cena, e Everlyn fez seu possível para deixar aquilo tão natural quanto todo o resto. Já a cena de sexo é real, porém atuada, já que o sujeito é um ator de filmes de sexo explícito que foi contratado para aquele fim.

A maneira como o longa seria filmado foi sendo descoberta no processo. Ivo Lopes de Araújo, diretor de fotografia que tem despontado com enorme volume de trabalhos independentes e membro do coletivo Alumbramento, do Ceará, é o responsável pela câmera de “O Céu sobre os Ombros”. “Começamos no primeiro dia trabalhando com a câmera na mão e logo mudamos de ideia. Como filmávamos com duas câmeras indo ao encontro da cena – e não fazendo a cena em função da câmera –, tínhamos toda uma coreografia silenciosa de movimentação no set, e isso se dava de maneira muito harmônica. O Ivo tem uma grande capacidade de se adequar e se posicionar diante de uma cena acontecendo, tem uma sensibilidade incrível para usar a luz natural. Muito da ‘ficcionalização’ do filme vem do rigor dos planos, do uso de extracampo, da imobilidade da câmera, que foi algo encontrado no processo”, pontua Sérgio Borges.

Enquanto lança “O Céu sobre os Ombros”, Borges trabalha em projetos da Teia. Seu próximo trabalho como diretor continua indefinido, com planos ainda muito iniciais, mas adiantou três projetos que pretende rodar: um em que todos os personagens são direcionados para resolver suas questões mais caras de frente para o misterioso mar, um sobre um casal em crise, com muito sexo, e um sobre os bastidores do futebol.

Por Gabriel Carneiro

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