Vladimir Carvalho

O premiado “Rock Brasília – Era de Ouro” resgata, mais que grupos musicais, a marca de uma geração dita perdida, e que estava refletida nas músicas

O novo filme de Vladimir Carvalho, “Rock Brasília – Era de Ouro”, é mais que um documentário sobre a importância das bandas de rock que despontaram no final dos anos 70 na capital do país. É um filme sobre os anos 80, sobre a música e sobre Vladimir Carvalho, diretor paraibano radicado em Brasília há pouco mais de 40 anos, e vinculado ao rock, motivado pelo irmão mais novo, o diretor de fotografia e também cineasta Walter Carvalho, e por determinadas referências cinematográficas, como “Sementes da Violência”, de Richard Brooks.

“Eu assisti à chegada do rock no Brasil na década de 50. Morava em João Pessoa. Minha mãe ficou viúva muito cedo e Walter começou a preocupá-la. Ele adorava rock. E eu nunca fiquei indiferente ao ritmo”, afirma Vladimir. Quase dez anos depois de ter desembarcado em Brasília, deparou-se com o surgimento de bandas de rock que acabaram ganhando repercussão nacional, casos da Legião Urbana, Capital Inicial, Os Paralamas do Sucesso (fundada no Rio de Janeiro) e Plebe Rude.

Mas Vladimir só começou a filmá-las na segunda metade dos anos 80. “Em 1987, quando as bandas já tinham saído de Brasília e voltavam para fazer apresentações aqui, filmei o Capital Inicial abrindo o show do Sting. No ano seguinte, registrei o show de Renato Russo no Mané Garrincha”, diz o diretor, referindo-se ao violento show da Legião Urbana que reuniu uma grande quantidade de pessoas sem condições de segurança minimamente adequadas. Um fã invadiu o palco, Russo brigou com seguranças, falou mal de Brasília, os fãs protestaram. “Ele nunca mais se apresentou na cidade”, lembra.

Vladimir Carvalho só retomou o projeto em 2009. “Renato Russo tinha morrido. Eu me vali de uma entrevista antiga e de uma que ele deu para a MTV”, conta o diretor, que não esconde sua admiração. “Renato adorava os sonetos de Shakespeare. Lia os filósofos. Desejava transformar o rock numa expressão nobre. Era o herói da turma”, destaca. Mais do que sobre Renato Russo ou os grupos responsáveis pela efervescente cena musical da capital, o filme destaca o destemor da juventude. “Quis abordar a viagem de jovens, que saem de um mundo familiar, confortável, e caem na estrada”, resume, em relação ao filme que ganhou o prêmio de melhor documentário no Festival de Paulínia e abriu o Festival de Brasília.

Ecos de uma juventude pulsante, inconformada, imersa num Brasil que começava a se libertar dos grilhões da ditadura imperam na tela. “Havia uma demanda de possibilidades para a juventude brasiliense. Falava-se em vazio cultural. Durante a ditadura não havia eventos que agrupassem jovens, que viajavam para o exterior. O punk entrava na moda na Inglaterra. Se na periferia de São Paulo predominava o punk mais agressivo, nos centros nervosos de Brasília o punk era mais ligado ao clima político, de saída da ditadura, com letras de protesto”, compara.

A família também ganha lugar de destaque desde o início da projeção. “Ressaltei a motivação dos pais ao virem para Brasília”, assinala. Os pais dos jovens e promissores músicos eram, em sua maioria, diplomatas e professores. Muitos moravam na Colina, superquadra não numerada localizada dentro da UnB, e foi lá que se conheceram. Vladimir procurou captar essa atmosfera e deu menos espaço às músicas propriamente ditas do que se poderia prever a princípio. “As músicas estão disponíveis por aí”, justifica. “Rock Brasília” traz à tona, isto sim, a memória de uma fase da história de Brasília.

Brasília moldou o formato documental de Vladimir

Sempre preocupado em se pautar por fatos concretos, Vladimir Carvalho tem inegável ligação afetiva com a cidade, onde desembarcou em 1969 e acabou ficando sem planejar. “Vim para o Festival de Brasília. Chovia. Ficamos no Hotel Nacional passando frio. Não achei graça na cidade. Reencontrei Fernando Duarte, que me chamou para permanecer dois meses cuidando do centro de documentação. Comecei a ganhar mais e a dar aula na Universidade de Brasília”, lembra. Mas Vladimir não demorou a mudar de opinião sobre a capital. “Fui descobrindo a cidade, que ainda era um terreno virgem, um portal de entrada para um Brasil mais antigo, vizinho do barroco mineiro”, sublinha o diretor de “Vila Boa de Goyaz”, sobre Cora Coralina.

“Rock Brasília” se inscreve diretamente na vertente de documentários de Vladimir protagonizados por Brasília. Não por acaso, fecha uma trilogia formada por “Conterrâneos Velhos de Guerra”, centrado na construção da capital, e “Barra 68”, sobre a interdição da UnB durante a ditadura militar. Outros filmes também evidenciam seu elo com a cidade. “Em ‘Paisagem Natural’, mostro que Brasília é o centro de uma vasta paisagem natural. ‘Vestibular 70’ também foi uma tentativa de interpretar a cidade enquanto se estruturava”, confirma.

O fascínio pela região não foi ameaçado pelos momentos dramáticos enfrentados por Vladimir, que teve seu “O País de São Saruê” retirado da competição poucos dias antes do Festival de Brasília de 1971. “O filme foi substituído por ‘Brasil Bom de Bola’, de Carlos Niemeyer. (Emílio) Garrastazu (Médici) gostava de futebol. Aproveitaram para tirar meu filme porque tinha problemas com a censura, sob a alegação de que agredia a dignidade e os interesses nacionais. Afinal, era sobre o subdesenvolvimento nordestino, a luta do homem contra o latifúndio. Houve manifestação de protesto dos estudantes”, evoca. No mesmo ano, o filme “Nenê Bandalho”, de Emilio Fontana, foi proibido depois de exibido no festival, acusado de estimular o uso de drogas. Mesmo com tudo isso, a edição aconteceu. Mas foi interrompida nos anos seguintes – 1972, 1973 e 1974.

Lutas contra a ditadura

Não foi a primeira vez que Vladimir se viu cerceado pela ditadura. Basta lembrar que trabalhou como assistente de direção de Eduardo Coutinho em “Cabra Marcado para Morrer”, filme iniciado em 1964 e só concluído em 1985. “Na madrugada de 31 de março para 1 de abril de 1964 estávamos numa filmagem noturna em Vitória de Santo Antão. Éramos conhecidos como os cubanos. Com o Golpe, saímos em pequenos grupos para o Recife, disfarçadamente. Eu fiquei com Elizabeth Teixeira”, revela Vladimir, mencionando a mulher de João Pedro Teixeira, líder camponês da Paraíba assassinado em 1962. “Coutinho foi para Olinda. Levei Elizabeth até a casa da minha prima. Mas o marido ficou com medo e disse para tirá-la dali. O nome dela saía no jornal como pessoa procurada. Disfarçamos Elizabeth: oxigenamos o cabelo dela, botamos vestido estampado. Eu fui procurar um amigo de João Pedro e ele disse que poderia ficar com ela. Consegui uma identidade falsa e segui para Campina Grande”, rememora.

Depois, Vladimir migrou para o Rio de Janeiro. “Coutinho arranjou para mim um trabalho com Arnaldo Jabor em ‘Rio, Capital do Cinema’”, diz. No Rio, travou intensos contatos cinematográficos. “O nosso clube informal era o Bar da Líder, que ficava na Rua Álvaro Ramos, em Botafogo. Foi onde conheci Samuel Wainer. Outro ponto de encontro era a Cinemateca do MAM”, menciona. Ótimas histórias sobre o passado, não faltam. Mas Vladimir Carvalho olha para frente. Tanto que tem novo projeto em vista. “Quando estava fazendo o filme sobre José Lins do Rego (“O Engenho de Zé Lins”) fui a Paris. Coincidentemente havia uma exposição de Cícero Dias. Consegui uma câmera para filmá-la. Conheci a viúva e a filha dele. Penso em transformar em filme. O surrealismo de Cícero é ligado ao imaginário nordestino”, detecta.

 

Por Daniel Schenker

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