O cinema instintivo de Edgard Navarro

“O Homem que Não Dormia”, segundo longa-metragem do baiano Edgard Navarro, parece retomar o tom mais anárquico e instintivo do cineasta, consagrado em filmes como “Superoutro” (1987/89), e meio deixado de lado em sua estreia em longas, com o memorialista “Eu me Lembro” (2006). No segundo longa, que estreou em abril deste ano e teve um público pouco menor que quatro mil espectadores nos cinemas comerciais, Navarro filma de forma bastante crua, sem se importar tanto com a estrutura narrativa, a história de um vilarejo que sonha com um homem que não consegue dormir.
“Em ‘Eu me Lembro’, a tônica é o conteúdo, em detrimento da forma mais ousada, mais navarriana, se quiser. Quando escrevi o filme, a coisa mais forte que existia era a integridade da criança no cartaz, que sou eu mesmo, com dois anos e meio. Dizem que ‘O Homem que Não Dormia’ é um filme asqueroso, nojento, que os personagens são tortos, que não precisava fazer filme pra chocar. Eu optei pela sordidez e pelo grotesco. Sou um homem que não vale a pena como artista, porque o artista tem um certo fascínio pela doença. E eu sou doente”, comenta Navarro.

De qualquer forma, o que parece valer, para ele, é o sentimento que vem de dentro em relação ao mundo, seja de afeto, seja também de asco. “Meu cinema é instintivo porque não tive muita cultura de cinema. Sou um autodidata, comecei com super8. Poderia ter escolhido outro suporte artístico, como pintura, teatro, literatura. Estava fazendo teatro quando meu primeiro filme foi premiado. O que aconteceu é que as portas que se abriram para mim foram as do cinema”, pontua o diretor, que começou com “Alice no País de Mil Novilhas”, em 1976.

Tudo que sai do corpo

A principal crítica feita a “O Homem que Não Dormia” era de que Navarro queria chocar o espectador ao mostrar masturbações, pessoas urinando, nudez e sexo, entre outros. Uma característica muito forte de seu cinema sempre foi a maneira como mostra as necessidades sexuais e fisiológicas de seus personagens. “Isso veio como uma reação contra uma forte repressão, na família, na escola, no Estado e na igreja. Ter lido [Wilhelm] Reich no início da idade adulta ajuda. Também [Sigmund] Freud, [Salvador] Dali, os anarquistas. O próprio Jorge Amado. Foi o primeiro que me trouxe o universo da esculhambação e da pornografia – da palavra pornográfica como libertação. Usar o palavrão e o corpo nu como uma arma contra a hipocrisia. Então, as gosmas, as melecas, o cocô, e os nomes das coisas – pica, buceta, cu – que faço os personagens dizerem, ou fazerem, como mijando, cagando ou batendo punheta, são uma forma de assumir na obra, para que a obra possa ajudar as pessoas a partir de um susto que seja. Uso essa arma para poder desmistificar, colocar a hipocrisia em cheque”, comenta o diretor de “Exposed” (1978).

O Homem que Não Dormia

Navarro aponta duas manifestações corporais como importantes para seu cinema: ‘a punheta e a merda’. “São coisas pra bater mesmo, para acordar a humanidade, chocar as pessoas que precisam ser chocadas”, complementa. Nascem daí cenas como um ânus se abrindo e defecando em frente à câmera, num close, em “O Rei do Cagaço” (1977), segundo curta do diretor, feito em super8.

“De início, quando fazia filmes em super8, era até meio infantil, uma coisa meio de desobediência e insubordinação. A pornografia estava ali dormitando e como havia sido vítima da hipocrisia de maneira muito acre, resolvi ser também acre na hora de chocar. Tinha vontade de chocar mesmo, de esporrar, de sacudir. Tinha um enfant terrible que falava mais alto; hoje já é muito pensado. Porque é necessário ainda. E é meio iconoclasta também”, afirma. Uma das cenas mais polêmicas de “O Homem que Não Dormia” é quando dois cegos se masturbam em praça pública, à noite. Cena, aliás, que nasceu da leitura de “Meu Último Suspiro” (1982), livro autobiográfico do cineasta espanhol Luis Buñuel. “Tem uma passagem em que diz que não gosta de cegos, porque viu uma vez no México dois cegos se masturbando na praça. Falei: ‘porra, vou usar ainda em algum filme’”, comenta rindo.

Abaixo a gravidade

Edgard Navarro caminha cada vez mais para o transcendentalismo, carregando seus dizeres e seus filmes de um rico universo espiritual. “Tenho uma tensão muito grande com esse mundo real. Desde menino, gosto de estudar mitologia. O que gostava mais nos filmes e nos livros, por exemplo, era a escapatória para um universo simbólico. Sempre gostei que houvesse uma saída. Claro que hoje, calejado nesse mundo, não tenho certeza de nada”, conta Navarro, que impregna seu “O Homem que Não Dormia” com lendas de lobisomem, mula sem cabeça, deuses e demônios, fazendo-as se confundir com os fatos.

Esse transcendentalismo – que já podia ser visto, por exemplo, em “Superoutro”, quando o louco de rua começa a fantasiar com um estado de graça, o de super-herói – está muito ligado ao universo simbólico da fé, como gosta de reforçar Navarro. São todos os signos que fazem os personagens aferirem a um estado de crença, especialmente naquilo que não tem uma explicação racionalista. Muito por conta disso, “O Homem que Não Dormia” é, para ele, um filme essencialmente jungiano. “A história veio em 1978. Na época, estava lendo ‘Memórias, Sonhos e Reflexões’ e ‘O Homem e seus Símbolos’, ambos de Carl Jung. Houve uma identificação muito grande no jeito de ser. Ele parecia maluco. Eram ideias muito exóticas, a ver com a intuição, com um jogo que fazemos como criança e que depois ficamos com vergonha de admiti-lo. Encontrei um companheiro que dizia que eu não estava sozinho nessa maluquice, porque fazia todas aquelas coisas. Por exemplo, se você está na rua e um carro passar pela direita tem um significado, se passar pela esquerda, tem outro. Determinada coisa está ligada a determinado fato que você quer que aconteça. É um oráculo instantâneo, arcaico. Se o carro passar pela esquerda, vou ganhar o edital”, explica.

Não é à toa que “O Homem que Não Dormia” só é o que é porque foi feito agora. A ideia surgiu há 33 anos e veio de uma vez: uma parábola de redenção, que passou por muitas transformações. Em 1993, fez um roteiro para o MinC, mas não ganhou. “Só depois entendi que essa espera era necessária. Não estava pronto para fazer o filme. Daquele jeito, seria outra coisa e não teria tudo o que precisava para ser em termos de profundidade e universo simbólico, coisas que vieram de pesquisas depois”, comenta.

Uma coisa é clara no cinema de Navarro: espiritualidade está longe de significar religiosidade. Sua obra é toda permeada por um forte anticlericalismo. “Isso tem a ver com uma reação negativa que tenho a tudo quanto é instituição religiosa. Todas as dúvidas filosóficas em relação à religião eu tive. Existe uma necessidade de desmascarar, de semear o universo religioso dessa porcaria da liturgia, do ritual. Eles têm um valor primordial que foi perdido ao longo do tempo. Acho que poucos são os padres e monges que fazem uma coisa una, entre o que acreditam e o que professam. Por eles, tenho pleno respeito, independente da mitologia. É a fé que te salva, não importa a crença”, pondera.

A esfinge

O cineasta baiano já trabalha em seu próximo projeto, o longa “Abaixo a Gravidade”, frase emblemática proferida nos finais de “Superoutro” e “O Homem que Não Dormia”.

A história, ganhadora do edital de desenvolvimento de roteiro do MinC de 2012, versa sobre um personagem de 80 anos, de enorme bondade, que beira a idiota, e vive a agonia de morrer, diagnosticado com câncer de próstata. “Esse grito de abaixo a gravidade é uma vitória sobre a morte. Ele não vai morrer, vai subir ao céu”, conta.

A expectativa do cineasta é a de, ao menos, terminar o roteiro. “Só posso fazer esse filme se estiver levitando, alegre. Não posso fazê-lo mal humorado, puto, triste. E agora estou me sentido fraco, deprimido, angustiado, como se fosse me encontrar com a esfinge – que é a morte –, como já até falei em ‘Eu me Lembro’. Que venha “Abaixo a Gravidade.”

 

Por Gabriel Carneiro

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