O existencialismo tropical do cineasta Marcelo Gomes

Fala fácil, jeito doce, alma de andarilho. O cineasta pernambucano Marcelo Gomes, 41 anos, parece feliz como nunca. Seu terceiro longa-metragem, “Era uma Vez Eu, Verônica”, e o segundo que realiza sozinho desde o bem-sucedido “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), saiu do Festival de San Sebastián, na Espanha, com uma menção honrosa, e do Festival de Cinema de Brasília, em setembro, com seis troféus Candango, incluindo o de melhor filme.

Nesta entrevista exclusiva à Revista de CINEMA, Marcelo Gomes revela como chegou à opção de fazer um filme sob um foco feminino, o primeiro ambientado na sua cidade, Recife, sobre uma mulher esmorecida, uma médica que transfere para os cuidados do pai envelhecido, a sua única razão de viver. Uma mulher que vive um existencialismo tropical, como define o roteirista e diretor. Revela um pouco sobre o boom do cinema pernambucano, e os próximos projetos.

Havia um pouco de expectativa de como seria o seu próximo filme de ficção, após o super-premiado “Cinema, Aspirinas e Urubus”, que correu o mundo contando a história do encontro entre um homem interiorano e um imigrante em aventuras pelo sertão (o filme chegou a ser pré-indicado à disputa do Oscar Estrangeiro pelo MinC). Sua segunda experiência na direção foi um tipo de relato existencialista em um filme de viés documental, “Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo” (2009), codirigido com o cearense Karim Aïnouz. Os próximos filmes já estão em andamento, numa parceria com o mineiro Cao Guimarães; um filme inspirado no livro “Relato de um Certo Oriente”, de Milton Hatoum, em fase de roteiro, e “O Homem das Multidões”, inspirado em conto de Edgar Allan Poe. Marcelo Gomes hoje se divide entre Recife e São Paulo, mas diz “ando e moro por onde meus projetos estiverem”.

Revista de CINEMA – De onde surgiu a ideia do seu novo filme “Era uma Vez Eu, Verônica”, que traz a sua primeira protagonista feminina?
Marcelo Gomes – Surgiu de uma junção de desejos. O primeiro vem desde quando eu era cinéfilo, lá em Recife, um pouco mais jovem do que sou hoje (risos). Eu via aqueles filmes com as mulheres fatais do cinema, aquelas grandes estrelas, e todos se passavam em lugares diversos, mas nunca na minha cidade. Eu ficava pensando em que lugares personagens como aquelas iriam se locomover, que histórias iriam viver no Recife? O segundo desejo veio do meu contato com a Hermila (Guedes). Fiquei encantado com o trabalho, com a figura dela. Disse a ela: “um dia vou fazer um filme em que você será a protagonista”.

Hermila Guedes, musa do cinema pernambucano, como Verônica, uma mulher à beira do abismo existencial

Revista de CINEMA – E como foi o processo de desenvolvimento da história e deste personagem feminino, como ele ganhou forma?
Marcelo Gomes – Quando acabei “Cinema, Aspirinas e Urubus”, escrevi um conto sobre uma mulher comum. A partir do conto, desenvolvi o primeiro tratamento do roteiro, mas me sentia movido por duas perguntas básicas: “será que eu estou tratando bem do universo feminino?”, “será que estou tratando da mulher atual ou da jovem do meu tempo?”. Daí, parti para uma série de entrevistas, com cerca de vinte jovens, o que me possibilitou trabalhar melhor as questões de hoje.

Revista de CINEMA – E quais seriam estas questões?
Marcelo Gomes – Verônica vive neste mundo, em que o capitalismo virou algo mais exacerbado, em que a sociedade está mais individualista e o “profissionalismo” virou exigência. O período da adolescência ficou maior, a maturidade chega mais tarde. Descobri também, que não estava preocupado exatamente com a faixa etária, mas com o momento em que aquelas dúvidas da maturidade falam mais alto: a definição da profissão, a preocupação com o envelhecimento, com as responsabilidades adultas. Sem falar, que, para a mulher, ainda há o relógio biológico da maternidade.

Revista de CINEMA – O que motivou a escolha da profissão de médica para a personagem, que tem como característica a falta de vontade de viver?
Marcelo Gomes – Ela virou uma psiquiatra porque queria refletir sobre aquele momento do choque com a vida adulta. O encontro que me parece ainda mais impactante, o confronto entre o profissional experiente e a jovem iniciante, que tem de ter uma estrutura emocional muito forte para encarar aquilo que mostramos no filme, quando ela é estimulada pelo superior a manter uma relação impessoal com os pacientes.

Revista de CINEMA – Como funciona a construção do roteiro e dos personagens, para você? Pergunto isto, porque você fala como se tivessem vida própria…
Marcelo Gomes – Sim, eles têm! (risos). Roteiro, para mim, é um processo longo e de paciência. Com “Aspirinas” eu fiz 24 versões até chegar ao final. Meu cinema é um cinema de personagem. Eles vão se moldando até que chega o dia em que eu nem me sinto mais escrevendo o roteiro, são eles, os personagens, que vão dizendo pra mim, andando com suas próprias pernas.

Peter Ketnath e João Miguel dirigidos por Marcelo Gomes no premiado filme "Cinema, Aspirinas e Urubus"

Revista de CINEMA – Mas apesar disso, você ainda continua no controle, não?
Marcelo Gomes – Sim, claro, falo assim para enfatizar a fluência do personagem. A fluidez está lá, construída pouco a pouco. O desejo meu e o da personagem andam juntos. Por exemplo, o que o sexo é para mim? Para minha vida? Fui refletindo junto com Verônica e ela foi me dizendo. Aliás, eu fico feliz, porque tenho ouvido das pessoas palavras animadoras, dizem que chegamos num lugar muito especial com esta personagem, no que se refere à sensibilidade e sexualidade feminina.

Revista de CINEMA – E como lida com o entorno da protagonista, com o que está além do que a personagem “te diz”?
Marcelo Gomes – A Verônica tem relação humana com os pacientes, tem um comportamento afetivo com o pai, mas ela consegue lidar com o sexo de uma forma bem livre. Os pacientes, por exemplo, eles são uma espécie de espelho, que têm uma função de revelar o ambiente social da personagem. O pai, eu criei para representar este mundo no qual ela cresceu, o Recife do passado, do centro da cidade, que ouve discos de vinil, que tem frevo, que tem polca. Esse passado que tinha um projeto de um país socializante, que tem um pôster de Lênin na parede, enfim, o pai é um homem de um país, que não é o Brasil da Verônica. Além de ser, através dele, que aparece o sentimento de perda.

Revista de CINEMA – E por que Verônica não tem mãe?
Marcelo Gomes – Ah… isto foi uma decisão dramatúrgica. Personagem com esta liberdade sexual tão intensa, ao meu ver, soa como alguém que não sofreu a castração da mãe. O pai dela é meio homem e mulher, ao mesmo tempo… Ela seria uma garota que teve uma educação cercada da presença masculina. Assim, acho que fica mais claro para fazer o espectador entender este sentimento libertário da sexualidade. A pressão familiar seria muito mais presente se a mãe dela ainda estivesse viva.

Revista de CINEMA – E o naturalismo da trama, isto é mais uma busca sua, de seus filmes?
Marcelo Gomes – O filme é um recorte da vida, não queria novela, nem romance, mas sim uma crônica. O “Aspirinas” é assim. Eu gosto disto. Adoro o cinema do Mike Leigh, do Abbas Kiarostami, que tem esta presença naturalista. Queria fazer um filme que não fosse causa e efeito, mas que o fluxo de pensamento e as questões dos personagens fossem me levando de um lugar a outro. O percurso é, na verdade, interior.

Revista de CINEMA – E como foi a composição do elenco?
Marcelo Gomes – Tinha certeza com Hermila (Guedes), mas fiz testes para colocar minhas certezas à prova. Acabei tirando proveito disto, algumas atrizes que estão no filme surgiram destes testes. Hermila tem aquela presença incrível. Ela se aproxima e você não sabe se vai dar uma facada ou um beijo. Queria um elenco nordestino, aí surgiu o W.J. Solha, que é paraibano, o João Miguel, da Bahia, com quem eu e a própria Hermila já havíamos trabalhado… Em “Verônica” ele leva outro chute na bunda (brinca com personagens anteriores de João Miguel e Hermila Guedes), mas agora eu fiz ver que, neste papel, ele subiu na vida, namora uma médica, deixou de ser miserável, um motoqueiro, caminhoneiro ou pipoqueiro (risos).

Marcelo Gomes preparando cena de "Era uma Vez Eu, Verônica": um roteiro escrito para a atriz Hermila Guedes. © Mauro Pinheiro Jr. ABC

Revista de CINEMA – Você dedica seu filme à cidade de Recife…
Marcelo Gomes – Sim, porque quis fazer um filme existencialista tropical. Quero destacar isso, que as pessoas têm problemas existenciais mesmo numa cidade que é vista como um destino turístico. O Recife tem o espaço público deteriorado, o trânsito caótico, as construções urbanas sem nenhum controle, claro que isto afeta a psique. Sempre há situações em que paredes estão presentes, ruídos estão atrapalhando, uma alteração do controle mental. O Recife está presente não como um cartão postal, mas para explicar o drama interno dos personagens. Realizei o sonho de colocar minha cidade num filme meu.

Revista de CINEMA – Falando em Recife, vamos divagar um pouco: de onde acha que vem este bom momento do cinema pernambucano? É uma coisa simplesmente geracional?
Marcelo Gomes – Para explicar este fenômeno do cinema pernambucano não dá para ficar somente em audiovisual. Recife sempre foi um caldo cultural. É claro que esta grande repercussão do cinema pernambucano, neste momento, conta sim com um “incidente geracional”, mas tem outros fatores. No final dos anos 1980, surgiram talentos como Lírio Ferreira, Paulo Caldas e Cláudio Assis. Depois de um tempo morando fora, eu me juntei a eles. Juntos, passamos a enfrentar as dificuldades de fazer cinema com muita garra, desejo de um cinema autoral. Nossas pressões, nossa presença, plantou o que temos hoje, uma lei de fomento muito bem organizada, que garante a continuação, e essa nova geração, que se iniciou em nossos filmes.

Revista de CINEMA – Da nova geração, quem, por exemplo, começou no cinema passando por sua equipe?
Marcelo Gomes – Somente dos presentes no Festival de Brasília (realizado em setembro), posso citar dois. Tem o Daniel Aragão (diretor de “Boa Sorte, meu Amor”), que foi meu assistente, e tem o Gabriel Mascaro (diretor de “Doméstica”), que foi meu estagiário. Queria dizer, ainda sobre esta projeção do cinema pernambucano, que, comparado com outros lugares, onde os cineastas estão muito dispersos, nós temos uma relação muito mais promíscua entre nós (risos). Estamos sempre trocando bastante os papéis, participando ativamente dos processos de criação de nossos colegas. Posso dizer até que as relações sociais e afetivas entre nós ficam cada vez mais complexas, uma promiscuidade entre gerações (mais risos).

Cena de "Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo", realizado em parceria com Karim Aïnouz, filme que retrata solidões difíceis de serem compartilhadas

Revista de CINEMA – E seu próximo filme, depois desta celebração ao Recife, tem alguma ligação novamente com sua terra? Por que você não está mais morando por lá?
Marcelo Gomes – Na verdade, eu nem sei definir onde estou morando mesmo (risos). Passo muito tempo em Recife, mas também em São Paulo, enfim, eu ando e moro por onde meus projetos estiverem. Agora estou numa parceria com (o cineasta mineiro) Cao Guimarães (autor de “Andarilho”, “A Alma do Osso” e “Otto”, além de “Ex-Isto”, que tem cenas filmadas em Recife). O filme se chama “O Homem das Multidões” e é inspirado em conto de Edgar Allan Poe. Fala sobre a questão da solidão na cidade grande. Vamos dividir a direção. O legal é que temos referências bem diferentes, mas interesses comuns, ideias assim de investigar linguagem, de contar algo simples, mas com busca de novos caminhos. Além disso, desta parceria com o Cao, eu estou desenvolvendo um roteiro inspirado em “Relato de um Certo Oriente” (obra de 1989), um romance de Milton Hatoum. A história se passa na Amazônia, tem a ver com memória e com o conceito de alteridade, fala sobre família e suas questões de convivência. Enfim, é um livro que me tocou muito, estou mergulhando nesta história!

 

Por João Carlos Sampaio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.