O polêmico e primeiro reality policial
Já tivemos militares como estrelas de programa de TV, tão populares que davam autógrafos aos fãs. Em 1995, quando a Rede Manchete ainda fazia sucesso com suas novelas, os programas de reality shows ainda germinavam nos EUA e ainda não haviam feito sucesso como tal. Eu trabalhava na emissora como diretor de documentários e especiais jornalísticos fazia quatro anos, quando consegui autorização do comando da Polícia Militar de São Paulo para realizar um documentário sobre a Rota, a polícia de elite da PM paulista, responsável por um grande número de homicídios em suas ações. Após duas semanas de gravação nos quartéis e dentro das viaturas vivenciando o calor dos acontecimentos, muitas vezes sob fogo cruzado da polícia com traficantes, conseguimos realizar um documentário realista com muita ação. E tendo como centro do enredo os próprios policiais. Editado com trilha sonora eletrizante dos filmes de Tarantino, imagens realistas e longos planos sequências, o documentário chamado de “A Rota que Mata” bateu recordes de audiência. Imediatamente, a direção da emissora me encomendou um programa baseado naquela narrativa. Nascia ali a semente de um dos programas mais populares da TV brasileira nos anos 90, que foi o “Na Rota do Crime”, exibido semanalmente às sextas-feiras, onde por vezes batemos em audiência o “Globo Repórter”. Durante dois anos, foi o programa de maior índice de audiência da Rede Manchete.
O programa mostrava a ação policial sem a interferência de repórteres ou produtores. A narrativa era conduzida pelos próprios policiais, que tinham consigo um microfone de lapela, e se tornavam o condutor das operações policiais, que sempre resultavam em alguma prisão. Ter uma história e um desfecho fazia parte da linha do programa. Ter autenticidade no que se mostrava era a nossa grande arma. O resultado foi imediato. O primeiro programa a ir ao ar bateu recordes de audiência, atraindo a atenção da mídia e dos debates sobre programas violentos na TV. Acontecia que o programa mostrava apenas a realidade, não havia encenação. Os policiais, agindo como repórteres, deixavam transparecer suas personalidades, e muitos pareciam ter o traquejo para atuar bem na frente das câmeras. Esses policiais viraram estrelas de uma hora para outra, se tornaram nossos principais personagens e recebiam centenas de cartas, incluindo pedidos de casamento.
O mais popular personagem policial era o Tenente Caldeira, de boa aparência, sabia conduzir as perseguições a ladrões de bancos, traficantes, ladrões de carros. Era o “nosso” policial que mais aparecia nos jornais. Chegou a ser capa do suplemento de TV do “Jornal do Brasil” (ao lado) e ceder muitas entrevistas como um dos protagonistas do programa. O policial Giba Hissamune, outro personagem popular, afirmava à mídia que as pessoas lhe reconheciam na rua. “Olha o japonês do ‘Na Rota do Crime’”, ele dizia aos jornais. Inúmeros repórteres tinham interesse em saber como fazíamos o programa, e acompanhavam as equipes, relatavam suas extraordinárias experiências. O programa tinha a participação ativa da população. Um jornalista da “Folha de São Paulo”, que passou um dia na redação do programa testemunhando o grande número de pessoas que ligavam para denunciar crimes e criminosos, que repassávamos para a polícia, relatou que era “o único programa de TV, involuntariamente, interativo da TV brasileira”. Não demorou muito, em 1997, o programa se tornou diário, mantendo a mesma linguagem do programa semanal. Imediatamente, inspirou um filhote, “Operação Resgate”, um novo reality acompanhando os policiais do SAMU e do Corpo de Bombeiros, em ação de resgates de feridos em tragédias. Mas não mostrava sangue, nem vítimas fatais. Mesmo com muita ação, não superou o sucesso de “Na Rota do Crime”.
Sucesso que incomodava muita gente. Cientistas políticos e o Ministério Público nos cobravam explicações, sem saber direito o que cobravam, assim como não sabíamos o que explicar, já que o programa inovava ao mostrar a realidade. Confundiam-nos com o popularesco “Aqui Agora”. Não podiam fazer nada contra um programa que revelava o despreparo da polícia, pois éramos apenas um meio de revelar realmente o que era a polícia, se havia excessos não era um problema do programa, mas da polícia. Mas nada disso convenceu os que não sabiam que tipo de programa fazíamos.
Novamente, a “Folha de São Paulo” registrou mais uma transformação do programa. O jornal estampou na capa da “Ilustrada” (acima à direita) a determinação do Secretário de Segurança Pública de São Paulo, proibindo os policiais de agirem como repórteres e de as equipes atuarem dentro das viaturas policiais. O jornal noticiava que a decisão inviabilizaria o programa “Na Rota do Crime”, e isso nos pegou de surpresa. Resolvemos o problema com carros novos e motoristas treinados, com experiência em ambulâncias, para ficarmos em nossas próprias viaturas na cola dos carros policiais. E o microfone de lapela foi substituído por microfones direcionais. Assim, novamente conseguimos colocar os militares no centro da ação e o programa manteve seu realismo e seu sucesso com o público. E nascia, então, na base da ousadia, um dos primeiros programas realitys da TV brasileira.
Por Hermes Leal, escritor e documentarista, mestre em Cinema pela ECA/USP, doutorando em Semiótica na FFLCH/USP, e autor do romance “Faca na Garganta” e da biografia “O Enigma do Cel. Fawcett”, entre outros livros.