“Alvorada” registra crepúsculo de Dilma entre as paredes do palácio

Por Maria do Rosário Caetano

“Alvorada”, o singular registro do crepúsculo do Governo Dilma Rousseff, realizado por Anna Muylaert e Lô Politi, disputa o prêmio de melhor documentário brasileiro do Festival É Tudo Verdade com mais seis longas-metragens. O resultado será conhecido no domingo, 18 de abril. O filme pode ser visto on-line, e gratuitamente, na noite dessa terça-feira, 13, ou em reprise, nessa quarta, à tarde.

Depois de uma dezena de filmes dedicados ao impeachment da única mulher a ocupar a presidência da República Federativa do Brasil, uma pergunta se impõe: ainda há o que dizer-e-mostrar sobre o assunto depois de “O Processo”, de Augusta Ramos, “Excelentíssimos”, de Douglas Duarte, e, principalmente, “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, finalista ao Oscar 2020?

A resposta é sim, pois as duas diretoras evitaram o ambiente conflagrado do Congresso Nacional e a histeria das ruas, com manifestantes vestidos em verde-e-amarelo e exigindo, inclusive, o “fim do comunismo”. Evitaram a repetição de imagens recorrentes, vistas e revistas a ponto de, hoje, causarem tipos diversificados de stress (principalmente visual e auditivo). O crítico Celso Sabadin, ao final da sessão para a imprensa de “Alvorada”, escreveu: “a sensação é semelhante ao ato de assistir à reprise do 7 x 1”, placar do jogo Alemanha x Brasil, na Copa de 2018.

Muylaert e Politi, desde o início, definiram foco e cenário: a (única) mulher a ocupar a Presidência da República e sua “casa”, o Palácio da Alvorada. O mundo podia pegar fogo lá fora. Mas o calor das chamas só seria percebido se chegasse ao lar temporário da presidenta.

Nos cinco anos que separam os primeiros registros do filme até seu lançamento no É Tudo Verdade, o material carregou o nome provisório de “Palácio”. Depois, por antítese, optou-se pelo luminoso “Alvorada”. Mesmo que dentro do “lar” presidencial, só percebamos dor, impotência e melancolia. Todos sabem, embora não o digam com clareza, que o jogo já está jogado, o resultado já foi decidido. O que se engendra é um teatro, para que os rituais do golpe parlamentar pareçam democráticos.

O Palácio da Alvorada é um dos mais poderosos símbolos arquitetônicos de Brasília, por sua beleza e leveza. Parece uma “tenda árabe” cercada de verde e água. Suas colunas – apregoou um eufórico Darcy Ribeiro – estão para a nossa história como as colunas jônicas para a arte grega. Embora pareça uma construção térrea, de piso único, o palácio tem um primeiro andar (“o apartamento-moradia” evocado pela presidenta) e um subsolo (onde trabalham os funcionários de seu ocupante, eleito ou empossado à força de golpes parlamentares ou de armas). Estrutura similar ao do ICC (Instituto Central de Ciências, o Minhocão da UnB, também obra niemárica).

Ao registrar o melancólico crepúsculo do segundo Governo de Dilma Roussef, as diretoras se detêm no andar térreo, o mais belo e monumental, nos jardins, onde emas alvoroçadas se bicam, e no subsolo, onde laboriosos funcionários (em especial funcionárias) se desdobram para ajudar em tarefas prosaicas ou não.

O “apartamento-moradia” é visto de relance. Dilma Rousseff, a durona, aquela que “não se desequilibra” e que se esforça para entender o outro, “aquele que se desequilibra”, prefere ser vista no espaço público, institucional. A presidenta afastada até confessa que recebeu, do ex-deputado João Paulo Cunha, uma sugestão: “medite!”. Ao que ela respondeu: “não tenho paciência para meditação”.

Economista com mestrado concluído e doutoranda (atenção para o “n”), que trocou a academia pela política, Dilma mostra seu amor pela literatura e pela música. Cita “Machado de Assis, Historiador”, livro de Sidney Chalhoub, leitura reveladora, pois mostrou a ela o quanto o escritor preocupou-se com temas essenciais de seu tempo, em especial com a escravidão. Cita também, “Paraíso Perdido”, de Milton, quando fala do “mal”. E agrega José Saramago e Guimarães Rosa, que também se ocuparam, via ficção literária, com forças malignas. Evoca a alma depressiva do tango e, quando pode, lembra das colegas de cela no Presídio Tiradentes. Mas não no tom envolvente, carinhoso e vital de “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira. Em “Alvorada”, Dilma Rousseff se apresenta como uma mulher forte, decidida e disposta a passar para a história como alguém que lutou até o fim. Nada de chororô. Nada da ternura aliciadora de Luiz Inácio Lula da Silva.

Visitas fugazes de Chico Buarque e do próprio Lula não ganham vulto neste que é o sexto longa de Muylaert e segundo de Politi. As diretoras só abrem espaço generoso para grupo de mulheres negras, que faz visita coletiva à presidenta. “Alvorada” é um filme feminino. Tem uma protagonista. A câmera (magistral de César Charlone, o mesmo de “Cidade de Deus”) jamais oblitera seu foco. O que interessa é o registro dos últimos dias de uma mulher, a primeira eleita para gerir o país (quando teremos outra?). E que o fez por um mandato, mas não pôde concluir o segundo.

Esta mulher-protagonista é vista em sua última morada institucional, um palácio moderno. A atmosfera do filme está impregnada no ambiente. Tudo parece calmo demais, sem as grossuras dos que votam (pelo impeachment) em nome de pais, filhos, esposas e de um torturador de nome também antitético (Brilhante Ustra). Para não repetir a arrepiante imagem de um deputado (depois eleito presidente da República), que evocou o general torturador, as cineastas colocam a voz-justificativa de tal voto apenas como “ambiente sonoro” de seus créditos iniciais. O efeito é devastador.

O filme de Muylaert e Politi filia-se ao “cinema observacional”, uma das vertentes mais férteis do documentário contemporâneo. Ninguém é entrevistado para analisar o “tema” do filme (o “falar sobre”), não se recorre a imagens de arquivo, não há voz off explicando o que se passa, nem amarrando pontas.

A diretora de “Que Horas Ela Volta?” prefere definir “Alvorada” como “um filme ‘experencial’”. Ou seja, uma narrativa da experiência que ela e Politi construíram, vivenciaram, com ajuda de César Charlone e Dandara Ferreira. E o fizeram dentro de um palácio que, sabia-se, seria desocupado antes do tempo regulamentar.

Dois momentos – num filme que parece privado de reviravoltas e maiores sensações – arrancam risos frios. No primeiro, parlamentares enviados por Eduardo Cunha, levam o termo que depõe, em definitivo, a presidenta. Eles querem estar com ela, presencialmente, para testemunhar o ato. Jacques Wagner, ex-governador da Bahia (por dois mandatos) e hoje senador da República, era o ministro do Casa Civil de Dilma. Ele faz questão de emparedar os afoitos-buscadores-de-assinatura em entrada secundária (e nada aprazível) do Palácio. Não dará a eles o gosto de estar em cena na hora em que a presidente colocar seu nome naquele papel. A assinatura será feita de forma reservada.

No outro momento, um urubu entra no monumental vão térreo do Alvorada, emoldurado em paredes de vidro transparente. A ave de rapina se debate em busca de saída. Metáfora crua de um tempo convulsivo.

 

Alvorada
Brasil, 90 minutos, 2021
Direção: Anna Muylaert e Lô Politi
Fotografia: César Charlone
Montagem: Vânia Debs, Hélio Villela Nunes e Anna Muylaert
Trilha sonora: Heitor Villa- Lobos (“Descobrimento do Brasil”, “Samba Clássico”, “Sinfonia No. 10”, “Valsa da Dor”, “O Canto do Cisne Negro”) e Zequinha de Abreu (“Tico-Tico no Fubá”)
Exibição: 13/04 às 21h. Reprise na quarta-feira às 15h
Debate com as diretoras no YouTube do Festival É Tudo Verdade, às 17h dessa quarta-feira

 

FILMOGRAFIA
Anna Muylaert (São Paulo, 21/04/1964)

2002 – “Durval Discos” (ficção)
2009 – “É Proibido Fumar” (ficção)
2012 – “Chamada a Cobrar” (ficção)
2015 – “Que Horas Ela Volta?” (ficção)
2016 – “Mãe Só Há Uma” (ficção)
2021 – “Alvorada” (documentário)

Lô Politi

. 2015 – “Jonas” (ficção)
. 2021 – “Alvorada” (documentário)
. “Meu Nome é Gal” (em pré-produção)

 

IMPEACHMENT E TEMAS DERIVADOS
(Filmes realizados entre 2018 e 2021):

. “O Processo”, Maria Augusta Ramos
. “Já Vimos esse Filme”, Boca Migotto
. “Filme Manifesto – O Golpe de Estado”, Paula Fabiano
. “Excelentíssimos”, Douglas Duarte
. “Um Domingo de 53 Horas”, Cristiano Vieira
. “Esquerda em Transe”, Renato Tapajós
. “O Muro”, Lula Buarque de Hollanda
. “Garantia da Lei e da Ordem”, Júlia Murat e Miguel Ramos
. “Escolas em Luta”, Consonni, Marques e Tambelli
. “Golpe”, de Guilherme Castro e Luiz Alberto Cassol
. “Impeachment, o Brasil nas Ruas”, de Beto Souza e Paulo Moura
. “Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa” , de Rubens Rewald, Aranda e Thales Ab’Saber
. “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa
. “Alvorada”, de Anna Muylaert e Lô Politi

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