Alucinações fantásticas

Há dois anos, Marco Dutra ganhou o mundo com sua estreia em longas-metragens, “Trabalhar Cansa”, selecionado para o Festival de Cannes, em 2011, e para vários outros festivais, o qual dividia a direção com a cineasta Juliana Rojas. Agora, Dutra assume a bronca de dirigir um longa solo, “Quando Eu Era Vivo”, rodado em digital, atualmente no fim do processo de montagem. Ainda que haja algumas poucas alterações na configuração do grupo que trabalha faz algum tempo, a temática e a construção fílmica que instiga Dutra permanece neste novo filme.

“Quanto Eu Era Vivo” é uma adaptação do romance “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, de Lourenço Mutarelli, e mostra a volta do filho pródigo Júnior à casa do pai, Sênior, após a separação da mulher. Seu antigo quarto está locado para uma estudante de música. Júnior passa a dormir no sofá da sala. Com o tempo, dentro daquela casa, a tensão entre pai e filho aumenta, assim como a intensidade com a inquilina. Aos poucos, a sensação claustrofóbica do espaço dá lugar à loucura e às alucinações, dando margem ao trabalho com o fantástico, que permeia os filmes de Dutra.

“O filme, muito honesto ao espírito do livro, trabalha a relação desse filho com esse pai, nesse lugar que não é mais para existir – a sensação de ter que voltar para a casa dos pais depois de sair de lá. Isso é estranho e vai cada vez ficando mais estranho, mais agressivo. Acho que esse campo minado que virou a casa é o que sugere o fantástico”, conta o diretor, que dirigiu antes, sozinho, os curtas “Concerto Número Três” (2004) e “Rede de Dormir” (2010), além de alguns filmes de faculdade. “O lugar começa a ficar meio mal assombrado, por conta das memórias, das alucinações”, complementa, falando sobre o apartamento em que se passa o filme, localizado na Av. São Luís, em São Paulo.

O fantástico fica mais evidente na construção da atmosfera, a mesma dos filmes anteriores, através do uso da sonoplastia, da montagem, da sugestão do fora de quadro. “Com a diferença que nesse tem música, porque música é do universo da casa”, afirma Dutra, que escalou a cantora e atriz Sandy para viver Bruna, a inquilina estudante de música. O elenco conta ainda com Marat Descartes, habitué dos filmes de Dutra, como Júnior, e com Antônio Fagundes, como Sênior.

A cantora e atriz Sandy interpreta uma estudante de música, Bruna, personagem de um mundo de aparências surreais

Linguagem e montagem

Atualmente, o que tem mais alterado a montagem é a trilha musical; a maneira que o filme será construído a partir dela. “Amo música, mas acho que geralmente é muito mal utilizada nos filmes. Achar uma trilha digna de ‘Tubarão’, por exemplo, é muito difícil, precisa-se trabalhar muito. A música não pode redundar o que é a cena, a música precisa contradizer ou completar. É isso que estou tentando fazer. Caso contrário, só se coloca música de clima, que me parece o grande erro”, pontua sobre o que o fez jogar o filme para o final de 2013.

Durante as filmagens, o cineasta teve que controlar bem o tom do filme. “Foi muito difícil trabalhar a progressão do personagem principal, o filho, que vai ficando louco. É uma das coisas mais difíceis de fazer no cinema, especialmente porque se filma fora de ordem. O personagem rumo à loucura é tema comum, mas é muito difícil. Corre-se o risco de fazer uma montanha russa. O tom do personagem foi o que mais trabalhamos”, conta.

A classe média trabalhadora

“Trabalhar Cansa” foi muito festejado, de maneira geral, pelo uso do fantástico como metáfora de uma relação social e política, mesmo sem um evidente engajamento. O retrato da classe média estará de volta em “Quando Eu Era Vivo”, não só pela familiaridade de Dutra com o tema como pelo motivo de fazer parte do livro de Mutarelli. Para o diretor, porém, isso não é uma imposição sua. “O conteúdo é que dita a forma. Quando fizemos ‘Trabalhar Cansa’, não visávamos fazer um filme que retratasse a classe média brasileira, queríamos fazer um filme sobre trabalho. A história que escolhemos era uma de transformação, de uma mulher que mudava de entorno, saída de uma situação de dona de casa para uma de patroa, num comércio. Tudo que saiu, veio da transformação. A classe média veio daí. Em ‘Quando Eu Era Vivo’, o assunto principal é uma relação pai e filho, num apartamento de classe média, então narra um pouco de questões da classe média, faz parte. Poderia tentar impor uma questão formal, mas seria externo. É muito como eu vejo as coisas”, explica.

Em “Trabalhar Cansa”, Dutra assinava o roteiro e a direção com sua parceira de longa data, Juliana Rojas. O filme era “um filho dos curtas”, como define o diretor, uma continuação lógica ao processo iniciado ainda na faculdade de cinema, cursado na ECA/USP, que rendeu curtas como “O Lençol Branco” (2004) e “Um Ramo” (2007), ambos também presentes em Cannes e codirigidos com Rojas. No novo filme, Dutra continua trabalhando com sua equipe; Ivo Lopes Araújo na direção de fotografia, Luana Demange na arte; a produção é de Rodrigo Teixeira, da RT Produções; e o roteiro foi coescrito com Gabriela Amaral de Almeida. Rojas, dessa vez, assina a montagem.

O exercício de adaptação e da construção do roteiro

Marco Dutra já vinha fazendo alguns trabalhos para o produtor Rodrigo Teixeira, como roteiros para a série “Alice”, quando começou a adaptar para ele uma HQ de Lourenço Mutarelli, “Desgraçados”, projeto que até o momento não decolou. Para entender melhor o universo do escritor, Dutra leu todos os livros dele e o que mais lhe impressionou foi o então recém-lançado “A Arte de Produzir Efeito sem Causa” – e contou isso para o Rodrigo. Isso foi em 2008. No meio de 2011, o produtor o contatou. Queria começar uma série de projetos de baixo orçamento, de filmes custando em torno de R$ 500 mil. “A Arte de Produzir Efeito sem Causa” seria o segundo filme a ser rodado – o primeiro, “O Gorila”, de José Eduardo Belmonte, estreou em 2012, no Festival do Rio –, e Rodrigo queria Dutra como diretor. “Tinha outros projetos, mas como ele queria começar imediatamente, achei bacana e topei”, conta.

Os atores Marat Descartes e Antônio Fagundes, ao lado de Marco Dutra, no set de filmagem

“Ele me convidou para dirigir, mas não necessariamente para escrever. Convidei a Gabriela Amaral de Almeida. Nós três fizemos uma reunião e foi muito bacana. Começamos a adaptar o roteiro já em agosto de 2011 e até janeiro de 2012 terminamos de escrever. Quando terminamos o roteiro, o orçamento já estava pronto, a captação já acontecia. A previsão inicial era de filmar em abril de 2012, mas, por motivos diversos, filmamos em setembro. E foi bom, porque o filme amadureceu para mim, com o diretor de fotografia e a de arte, para processar o roteiro”, comenta. O filme foi rodado com aproximadamente R$ 700 mil e o custo total do filme está orçado em R$ 1,5 milhão, usando um misto de capital público e especialmente de privado.

O processo de adaptação do livro foi curto, mas árduo. “O livro traz uma narrativa muito memorialista, mesmo tendo bastante diálogo, e isso é muito difícil de adaptar, porque é muito literário. O desafio foi transformar uma linguagem altamente literária em altamente dramatúrgica”, conta. “As primeiras reuniões foram de análise do livro – a narrativa, os personagens, o ponto de vista do narrador, o que o guiava, quem ele era. Quando começamos a entender o ponto de vista fragmentado, começamos a entender a chave da dramaturgia do filme. O assunto é família, memória da família, relação pai e filho, coisas que gostamos muito e com que já trabalhamos. A partir disso, começamos a improvisar várias cenas e a pinçar o que era bacana”, explica. “Eu e a Gabriela escrevemos de maneira muito parecida, entendemos o roteiro de maneira muito clássica, em estrutura de atos, com pontos de virada, mas sem que isso tenha uma fórmula pré-concebida. Por uma questão de gosto e de vontade, logo percebemos que não usaríamos flashbacks, por exemplo. Nos interessava como os personagens faziam uma reencenação doentia do que era o passado”, comenta Dutra, que afirma não ter sofrido imposição nem de Rodrigo Teixeira nem de Lourenço Mutarelli na escrita do roteiro.

Enquanto o filme não fica pronto, Marco Dutra continua tocando seus muitos projetos. Além de já começar a se preparar para rodar seu próximo filme com Rojas, “As Boas Maneiras”, que espera conseguir mais um edital para filmar em 2014, o cineasta trabalha o roteiro de “Todos os Mortos”, com Caetano Gotardo, e de outros projetos ainda não revelados com Rodrigo Teixeira e com o parceiro de Filmes do Caixote, Sérgio Silva. Outros roteiros, em busca de financiamento podem ganhar a luz do dia se conseguirem, como “Os Inimigos” e “Cidade, Campo”, este com Rojas. Incansável, ainda tenta viabilizar as série “Os Estranhos”, parceria com Gabriela, e “O Som e o Tempo”, que coordena com Gotardo, para o Canal Brasil.

 

Por Gabriel Carneiro

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