Pós-estreias, compartilhando ideias
Em geral, críticas são feitas antes do lançamento dos filmes permitindo ao leitor orientar-se em suas escolhas. Aqui, comento filmes que já foram vistos pelo leitor para compartilhar ideias. Dois filmes autorais de cineastas/autores estrearam recentemente e ainda estão em exibição: Amor Pleno (To the Wonder), de Terrence Malick, lançado em 26 de julho (distribuição da Paris Filmes em 38 salas), e Bling Ring – A Gangue de Hollywood (The Bling Ring), de Sofia Coppola, em 16 de agosto (distribuição da Diamond em 44 salas). Amor Pleno tem também como atração o nome do ator principal, Ben Affleck, além do reconhecido talento de Malick que disputou o Oscar com seu filme anterior, A Árvore da Vida (The Tree of Life), com três indicações incluindo filme e diretor, além de premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Bling Ring de Sofia Coppola tem em seu elenco a atriz inglesa, Emma Watson, conhecida do público por seu papel na série de filmes Harry Potter. E sua história é baseada em fatos reais sobre jovens, interessando a jovens, ainda hoje a maior parcela de espectadores. Malick e Sofia Coppola são autores reconhecidos em festivais internacionais e também por uma faixa extensa de público culto.
Os dois filmes estiveram em festivais de prestígio antes de seus lançamentos: Amor Pleno em Veneza e Bling Ring numa mostra em Cannes. Amor Pleno abriu com 19 mil espectadores e acumula mais de 50 mil espectadores depois de um mês. Bling Ring abriu com mais de 30 mil espectadores e chegará a mais de 150 mil em sua carreira. São números respeitáveis para filmes autorais – para um filme brasileiro, seria considerado sucesso, pois teria atingido plenamente o segmento culto: O Som ao Redor, que atingiu 100 mil espectadores, e Elena, com um pouco mais de 50 mil, são exemplos autorais brasileiros também reconhecidos em festivais.
Amor Pleno frustra o espectador que vai ver o Ben Affleck. Não é Argo e tampouco outros tipos de filmes usuais que o ator tem feito. Na sessão em que eu estive presente, na semana de abertura do filme, eu temia permanecer quase que sozinho na sala do cinema tamanha a debandada dos espectadores, cruéis com um filme que não atendia ao seu gosto. É filme de difícil narrativa, uma narrativa não tradicional e fora de padrões até agora no cinema sonoro. O filme tem uma história de amor bastante simples, – homem do interior americano se apaixona por francesa que vai morar com ele em sua região interiorana, mas a relação se deteriora – essa história é narrada de forma complexa seguindo uma pesquisa sobre a forma de narrar que Malick está desenvolvendo: a negação da narrativa oral de seus personagens. Desde o advento do filme sonoro, personagens expressam-se falando uns com outros, bem como podem expressar-se com voz off tanto quanto narradores próprios ou narradores alheios. A narrativa convencional dos diálogos de personagens é elemento normal em um filme como em romances e outras narrativas orais. Malick faz com que seus personagens sejam reduzidos a corpos que agem expressando-se por falas em casos mínimos. Sua vozes em off completam suas ações sem corresponder ao que seriam os diálogos ou pensamentos como narrativas de e com personagens como estamos habituados. No filme de Malick, as falas dos personagens são comentários existenciais de autor do filme, atormentado por questões filosóficas e religiosas, distantes do espectador por mais culto que seja. Sua compreensão exige do espectador conhecimento da trajetória artística de Malick em seus filmes e mesmo de sua vida pessoal. A partir desse conhecimento, pode-se chegar-se a Amor Pleno. Sem isso, creio que o interesse se reduz, pois o universo fechado dos personagens não consegue comunicação mesmo que apoiado numa beleza cênica que se esgota em si mesma depois de algum tempo, repetindo-se e se exibindo. Por mais belo que sejam as paisagens, a fotografia, a música num filme qualquer, a sustentação de um filme é a história narrada por mais complexa, aberta/fechada, direta/indireta que possa ser. Quando alguém me comenta que um determinado filme é maravilhoso pela sua fotografia, ou sua música, ou suas paisagens, eu concluo que o filme não é bom, pois destacaram-se elementos essenciais mas não sua história. Em Amor Pleno nos é apresentada uma história de amor sem que seus personagens possam chegar a se exprimir em suas contradições e conflitos numa forma inteligível. O mutismo contínuo dos mesmos, seus atos repetitivos são tão repetitivos que o espectador imagina os atores se perguntando “é agora que devo fazer de novo isto ou aquilo, ainda que já fiz tudo o que a personagem poderia fazer?” A personagem feminina principal, vivida por Olga Kurylenko, atriz de talento, beleza incomum e que ficou conhecida como a Bond Girl do 007 Quantum of Solace, dança, dança, roda, roda, faz mímicas e mímicas – de início é graciosa mas depois de pequeno tempo perde qualquer encanto! Affleck está tão contido para parecer um ser amargurado que nos perguntamos, amargurado de quê? Já que sua comunicação oral não abre brechas para compreendê-lo ou mesmo, criticá-lo. Dúvidas religiosas e questões filosóficas vêm à tona pela narrativa oral cobrindo o caminhar dos personagens da história amorosa (Affleck, Olga Kurylenko e Rachel McAdams em personagem reduzida) e um estranho personagem de um padre interpretado por Javier Bardem também angustiado como Affleck e o diretor/autor. E o filme, promissor e instigante caminha para um depois que se esvai na medida de seu desenvolvimento, esgotando espectadores cultos, tolerantes e não tolerantes com um vazio que aborrece todos o que buscavam mais. Não é um vazio de almas retratado por Antonioni e nem a angústia de Deus representada por Bergman. Estranhamente, na pesquisa oral do filme de Malick, quebra-se a regra, altera-se o código imposto por Malick, quando alguns personagens falam e agem na forma habitual das narrativas incomodando muito o espectador. Por que a personagem de Olga Kurylenko pode se exprimir e conversar normalmente com uma amiga italiana e não fala com Affleck? Que código tão cifrado é esse? Aqui, a narrativa oral pretende ser um passo à frente da chamada narrativa em off tão usada no cinema e na literatura. Muitos dos filmes noir são exemplos de narrativas em off com função dramática e também para cobrir a produção narrando fatos que não davam para serem filmados. Um mestre na narrativa em off foi Mankiewicz, cuja obra mais realizada é A Malvada (All About Eve, 1950). A narrativa oral dos filmes recentes de Malick é de certo modo semelhante a uma narrativa recitativa, cujo exemplo, talvez único, é Hiroshima meu Amor (Hiroshima mon Amour, 1959), filme apoiado pelo texto literário de Marguerite Duras recitado pela voz feminina da personagem principal como sua memória no presente e no passado; o conflito do amor impossível e ocasional de Hiroshima meu Amor está locado em eventos e cidades históricos (Hiroshima após a bomba e Nevers na França na ocupação alemã da guerra), tem força única como um registro da memória de sua personagem e, mesmo rejeitado em seu tempo por críticos renomados e certos espectadores, ficou como um marco na história das narrativas modernas. A memória dos personagens de Malick e seu recitativo ainda estão em construção. Esperemos por mais pesquisas de Malick – sei que tem três filmes em pós-produção para estrearem no ano que vem.
Sofia Coppola nos apresenta seu Bling Ring como um filme baseado em fatos reais contemporâneos conhecidos por alguns e que é informado ao público: é a história de jovens de classe média de Los Angeles que assaltaram casas de celebridades em sua ausências para roubar objetos de desejos – roupas, bolsas, sapatos, óculos, relógios e, encontrando, dinheiro. Aí o resumo da história e de todo o filme, que à semelhança do filme de Malick, deixa ao espectador um vazio em sua conclusão. Diferente do vazio do filme de Malick, que é resultado de sua pesquisa narrativa, o filme de Sofia Coppola tem em seu mau roteiro seu maior defeito e ponto negativo. A história do grupo de jovens praticando assaltos se repete de assalto em assalto com observações iguais de cada um dos personagens que se maravilham ao se deparar com os objetos de desejo – o termo legal (cool) entre outros, é repetido tantas vezes que o espectador já está falando cool antes do personagem. E por serem personagens não empáticos, o espectador espera logo pela conclusão evidente da história – a prisão dos mesmos. Aí a fraqueza do argumento do filme e de seu roteiro, tão simples e simplificado como está, que poderia ser o roteiro de um média-metragem e não de um longa. Na conclusão do filme, a diretora/escritora/autora mostra seus personagens maravilhados por se transformarem em celebridades ao praticarem esses assaltos, comentário irônico e inteligente de Sofia sobre a obsessão atual e desenfreada das pessoas se exibirem no mundo virtual procurando alguma notoriedade – quantas pessoas não se gabam no cotidiano de que têm milhares de amigos no face! Amigos!? Assim, o filme tem o mérito de dialogar com os espectadores sobre tema tão atual e presente ao nosso redor. E vi Bling Ring sem sofrer o que sofri ao ver o filme de Malick: nenhum espectador saiu da sessão.
Amor Pleno, maravilhoso em seu visual e com belos atores, Affleck e Olga Kurylenko, mesmo mortos em seus personagens, com esmerada produção – o filme tem edição sonora de alto nível e foi processado em 35mm com cenas rodadas em 65mm – afugenta espectadores que Bling Ring não afugenta, mesmo que este tenha poucos recursos de produção (realizada com avanços de distribuidoras europeias e japonesa) e sua fotografia seja capenga em iluminação num suporte digital sem padrões, resulta que cada filme tem sua alma, seu público, existindo por si mesmo, afirmando seus autores na cinematografia atual e incentivando jovens a buscarem suas inventividades e intenções. São bons filmes, maus filmes, regulares. Não avalie assim. São apenas duas intenções autorais diferentes que poderão ser pensados em suas qualidades e defeitos. Isso é mérito, pois há tantos filmes que não se prestam para isso. Para uma pequena reflexão que seja!
Esperemos mais filmes desses naipes. Ficando com autores americanos: Brian De Palma, um pouco esquecido e afastado, tem um novo filme, uma produção europeia do ano passado que foi mostrado em Veneza (ah, a vitrine dos festivais), Passion, com distribuição da PlayArte, desde 23 de agosto. No elenco, Rachel McAdams, que teve pequeno papel em Amor Pleno, e Noomi Rapace, a atriz sueca da série Millennium. Vale a pena conferir?
Por Francisco Ramalho Jr., cineasta.
Sucesso na sua coluna ” Pós- Estréias Compartilhando idéias” gostei do final – Vale a pena conferir?
Abç. Murilo