Festival de Cannes surpreende ao premiar “Dheepan”
Por Rodrigo Fonseca, de Cannes
Para a surpresa de quatro mil jornalistas e críticos que davam como barbada a vitória do húngaro “Saul’s son”, de László Nemes, ou do italiano “Mia Madre”, de Nanni Moretti, o 68° Festival de Cannes deixou seus dois favoritos de lado na hora de entregar a Palma de Ouro e optou por um filho da terra: o parisiense de 63 anos Jacques Audiard, que arrebatou a Croisette com “Dheepan”. Raras vezes, o evento francês rendeu loas e prêmios a diretores de blockbusters. Mas Audiard, conhecido por longas-metragens vistos por mais de um milão de franceses cada, como “O Profeta” (2009) e “Ferrugem e Osso” (2012), não é um mero midas de mercado. Ele é um realizador que faz do realismo cru um instrumento para propor reflexões (otimistas, sempre) sobre a redenção dos oprimidos e a integração de degredados sociais. Este é o tema de seu novo filme, centrado na peleja de um guerrilheiro desertor do Sri Lanka para sentar praça numa Europa que o despreza. Parece “Cidade de Deus” (2002).
– Os heróis em rota por uma estrada de perdição, de testes fatais, sempre renderam grande dramaturgia, desde a mitologia dos gregos. Mas eu não queria abordar um caminho que fosse de A a B: ou seja, da segregação para uma reação armada. Não queria incorrer num filme sobre vigilantismo social qualquer. Este é um filme sobre um herói que trafega de A a Z nas diferentes plataformas da sociedade. E faz essa caminhada por amor – explica o diretor, que escolheu como protagonista um escritor com rala intimidade com a interpretação.
Seu ator principal, Jesuthasan Antonythasan, veio do Sri Lanka, onde, dos 16 aos 19 anos, integrou um movimento militante. No drama, repleto de adrenalina trazido por Audiard, Antonythasan interpreta Dheepan, soldado com muita experiência na arte de matar que enjoa de tanto sangue e resolve tentar uma vida de paz, na Europa. Mas ao negociar sua saída, ele é obrigado a levar consigo para a França a menina Illayaal (Claudine Vinasithamby) e a jovem Yalini (a indiana Kalieaswari Srinivasan). Sua obrigação é fingir que elas são sua filha e sua mulher. Ele aceita e inicia uma vida com as duas – sem muitos laços de afeto –, em solo parisiense, trabalhando como zelador em um conjunto habitacional assolado pelo tráfico de drogas. Ali, a barbárie vai bater à sua porta. Mas ele sabe como responder ao chamado da guerra.
– O maior esforço foi construir uma narrativa sobre a formação familiar – disse Audiard.
Ao lado dele, o estreante húngaro László Nemes comemorava o Grande Prêmio do Júri (presidido pelos irmãos Coen) dado para “Saul’s Son”, um drama sobre a Segunda Guerra Mundial. Nele, o diretor fala sobre os Sonderkommando, judeus forçados a ser mão-de-obra para os nazistas no campo de concentração de Auschwitz. A produção foi comprada em Cannes pela distribuidora de DNA hollywoodiano Sony Classics, o que já põe o longa húngaro como potencial candidato ao Oscar de filme estrangeiro em 2016. Já o Prêmio do Júri, espécie de medalha de bronze, coube ao grego Yorgos Lanthimos por “The Lobster”, uma ficção científica de tintas românticas sobre um futuro no qual apaixonados são transformados em animais.
O prêmio de direção ficou com Hou Hsiao-Hsien, cineasta sino-taiwanês endeusado em Cannes pelo épico de artes marciais “The Assassin”. Jornais locais torciam com fervor por sua vitória na briga pela Palma e, por isso, torceram o nariz para a consagração de Audiard e de outros dois franceses: os atores Vincent Lindon e Emmanuelle Bercot. Ele venceu pelo drama sobre desemprego “La Loi du Marche”. Ela ganhou por ”Mon Roi”, empatada com a americana Rooney Mara, que venceu por “Carol”, de Todd Haynes.
Figurante na competição de Cannes de 2015, a América Latina saiu em festa com o prêmio de melhor roteiro para o diretor mexicano Michel Franco, realizador de “Chronic”. O continente levou ainda o troféu Caméra d’Or para o colombiano “La Tierra y la Sombra”, de César Augusto Acevedo, uma coprodução com a participação da produtora brasileira Preta Portê Filmes. Outra coprodução brasileira também foi laureada: “Paulina”, do argentino Santiago Mitre.
Confira todos os premiados do Festival de Cannes:
PALMA DE OURO: Jacques Audiard (“Dheepan”)
GRANDE PRÊMIO DO JÚRI: “Saul’s Son”, de László Nemes
PRÊMIO DO JÚRI: “The Lobster”, de Yorgos Lanthimos
DIRETOR: Hou Hsiao-Hsien (“The Assassin”)
ATRIZ: Emanuelle Bercot (“Mon Roi”)
ATOR: Vincent Lindon (“La Loi du Marché”)
ROTEIRO: “Chronic”
CURTA-METRAGEM: “Waves’ 98”, de Ely Dagher
PRÊMIO DA CRITICA: “Saul’s Son”
PRÊMIO DO JÚRI: “Mia Madre”, de Nanni Moretti