Da tristeza do mundo
Indicado ao Oscar de Animação deste ano, “O Conto da Princesa Kaguya” é o retorno do veterano diretor japonês Isao Takahata ao longa-metragem, após 14 anos de hiato, quando lançou “Meus Vizinhos, os Yamada”, em 1999. Takahata é sócio de Hayao Miyazaki no Studio Ghibli e seus filmes (assim como outros realizados pelo estúdio) continuam a ser confundidos, no Ocidente, como sendo do parceiro mais famoso e oscarizado. Takahata, porém, não fica à sombra de Miyazaki. Igualmente genial, dono de algumas obras-primas da animação, como “O Túmulo dos Vagalumes” (1988), Takahata tem maior dificuldade em acessar essas bandas, provavelmente, por sua forte ligação ao folclore e aos temas essencialmente nipônicos.
Em “O Conto da Princesa Kaguya”, o cineasta avança a pesquisa estética de “Meus Vizinhos, os Yamadas”, apostando na animação em processo, calcada nos traços evidenciados do lápis e das tintas aquarelas, quase como se fosse um rascunho não finalizado – diferindo dos trabalhos anteriores, como “Omehide Poro Poro” (1991) e “PomPoko” (1994), que seguem mais proximamente o visual marcante do Studio Ghibli.
Os tons pastéis do filme apontam para sua leveza e sua discrição na abordagem. Os traços reforçam o caráter lúdico da trama, emprestada da história do século X, “O Conto do Cortador de Bambu”. Com bastante liberdade, ainda que próximo do original, Takahata revisita as tradições fundadoras do Japão, a partir de seu folclore, bem como suas ligações ao budismo Mahayana.
No filme, um cortador de bambu encontra, em um bambu luminoso, uma pequena moça, trajada de maneira nobre, assumindo ela ser uma princesa. Carregando-a nas palmas de suas mãos, acreditando ter sido abençoado pelos deuses, o cortador de bambu a leva para sua casa. Lá, ela se transforma num bebê e passa a ser criada pelo cortador e sua esposa. O bebê tem um crescimento fora do normal, atingindo a maturidade em pouco tempo. Crescendo no campo, a princesa – ou Pequeno Bambu, como é chamada pelos amigos – corre, brinca, se diverte, é feliz. O pai adotivo não vê para a jovem o destino de camponesa. Ela deve ser nobre, uma princesa. Ao longo dos anos, o cortador de bambu encontrou, na mesma floresta, ouro e outras benesses que o enriqueceram. Com esse dinheiro, ele constrói uma mansão na cidade e se dedica a transformar a filha numa princesa, quando ganha então o nome Kaguya, contratando quem lhe dê aulas de como uma princesa se porta, para poder então casar e se tornar parte da nobreza.
O longa alterna, assim, dois momentos na vida da princesa. No campo, ela conhece o mundo natural (as plantas, os bichos etc.), em que as pessoas são espontâneas, e a felicidade parece possível. Na cidade, o filme ganha contornos sombrios. Nela, a princesa descobre como as coisas funcionam de verdade, em que a postura e a aparência determinam a vida, e o natural perde espaço para a rigidez. Kaguya não entende plenamente a mudança em sua vida, especialmente, a decisão do pai, e se indispõe com o rumo de sua jornada, que não é mais sua. Como ser sobrenatural que é, Kaguya tem outra consciência. Essa consciência, em uma época que não aceita diferenças de pensamento – Takahata não poderia ser mais contemporâneo –, leva a garota à perdição.
O cineasta evoca assim ritos e histórias do budismo Terra Pura. Para essa linha do budismo, o propósito terrestre do ser humano é alcançar a iluminação infinita; é só assim que o homem transcende o aspecto mundano da Terra e chega à Terra Pura. O estado é muito difícil de ser alcançado e, portanto, o homem continua renascendo na Terra.
Kaguya passa o filme buscando a luz divina na Terra, a felicidade, e parece encontrar. Porém, quis seu destino que os outros, ditando regras e determinando o que é certo e bom (em geral, acreditando mesmo estarem ajudando e fazendo o melhor possível), distanciassem-na desse caminho. Kaguya queria uma alternativa para a Terra Pura na vida mundana, acreditava no bem.
Takahata é um cineasta que filma o mundano em tom de fábula, as alegrias e os sofrimentos. Se conhece o poder da galhofa e do humor cotidiano, que permeiam e mesmo guiam vários de seus filmes e trabalhos para a TV, Takahata é um dos poucos que sabem filmar a angústia. A tristeza não está nas grandes tragédias. Está no processo de definhamento das pessoas e de sua impotência frente ao egoísmo alheio, seguindo, claro, certos princípios, que são caros a qualquer ser humano. Em especial, na busca pela delicadeza da vida, por dirimir a dor no que está ao alcance. É a aposta do diretor também. Takahata trata com delicadeza o que poderia ser drástico. A fábula não minimiza o sofrimento, porém, só a reforça. Fez assim em “O Túmulo dos Vagalumes”, seu filme mais lembrado, e faz assim em “O Conto da Princesa Kaguya”. São filmes que abarcam toda a tristeza do mundo.
O Conto da Princesa Kaguya | Kaguyahime no Monogatari
(Japão, 137 min., 2012)
Direção: Isao Takahata
Distribuição: Califórnia Filmes
Estreia: 16 de julho
Por Gabriel Carneiro
Com seu comentário, aumentou a vontade de ver o filme. Obrigada!