Uma heroína, seus amigos e um dilema moral

Estamos em um aparentemente pacato subúrbio norte-americano – destes que o cinema hollywoodiano soube tornar tão familiar aos nossos olhos. Uma bela adolescente corre para fora de sua casa. Não vemos seu rosto. Não precisa. Ouvimos sua respiração. Reconhecemos um corpo desgovernado. Percebemos seu temor. Talvez seja um pijama o que ela está vestindo, embora esteja também calçando saltos bem altos. É uma imagem um tanto contraditória, confusa. Uma confusão cheia de suspense. Um suspense nada dissimulado, mas ao mesmo tempo sem muitos sustos. A câmera acompanha a jovem até o outro lado da rua, sempre mantendo uma certa distância. A menina retorna à casa somente para dela sair novamente, às pressas. Ela olha repetidas vezes para trás, como se estivesse sendo perseguida. Perseguida pelo quê? Por quê?

A ameaça que persegue os jovens de “A Corrente do Mal”, segundo longa de David Robert Mitchell, é ao mesmo tempo fácil de explicar e difícil de descrever. Ela consiste em uma espécie transmissível de maldição – um princípio que marca o gênero do terror, de “Night of the Demon” (1957) a “Ringu” (1998). Uma vez contaminada, a pessoa passará a ser perseguida por uma coisa que assume diversas formas humanas (idades, tamanhos, sexos etc.), incluindo por vezes pessoas íntimas da vítima. Ela não corre, não pula, apenas anda, vagarosamente, com um olhar concentrado na presa da vez. Não sabemos de onde e nem por que ela veio. Sua vítima é a única capaz de ver o que se passa, e nós sabemos desde a sequência inicial (cujo final abstive-me de contar) que sua natureza é absolutamente violenta. Bem, na verdade, é tudo um pouco mais complicado. Esta maldição é transmitida pelo sexo, como Hugh (Jake Weary) explica para a nossa heroína, Jay (Maika Monroe ). Agora, ela terá de transar com alguém para passar a coisa adiante.

Um outro elemento fantasma assombra o filme de maneira bem particular: Detroit. “A Corrente do Mal” foi rodado nos subúrbios, na beira de um lago e em espaços abandonados. Mitchell, contudo, não cede à tentação de filmar sua maltratada cidade natal como uma desagradável instalação de arte ou como uma espécie de prisão ao ar livre. Os jovens deste filme passeiam, reúnem-se, divertem-se, consideram estes espaços abandonados como espaços de convívio, espaços como quaisquer outros. O que emerge é um tom curiosamente evocativo, de locações que transpiram algo que não está mais por lá, algo um tanto poético, atmosférico. Claro: Detroit, a iluminação aparentemente estática, os longos planos-sequência, os suaves e constantes movimentos de câmera, a trilha sonora do Disasterpeace, bem como o fato da coisa não ser sempre tão facilmente identificável, tudo isso se conjuga para criar o tom de um filme que jamais se encaminha para uma explicação ou se dirige a um desfecho; que apenas flutua por uma lógica diversa.

John Carpenter, mestre do horror e um dos maiores cineastas do cinema contemporâneo, se faz sentir por todo o filme. Não me refiro somente à carga atmosférica, à fluidez narrativa e ou à música. Carpenter foi aquele que conseguiu mesclar a ficção paranoica em que um protagonista combate um inimigo que vem de fora com o terror mais fantástico do indivíduo contra o sobrenatural. E o fez ensinando-nos que o perigo maior sempre vem, na verdade, de dentro, e que mais do que uma pessoa, o que se deveria explorar (seja em termos dramáticos ou políticos) é o grupo. Pois a “A Corrente do Mal” é um drama sobre um dilema moral. Em sua essência, está a questão de saber se, para sobreviver, Jay estará disposta a tornar a vida de outra pessoal um verdadeiro inferno. Ao contrário da grande maioria dos slashers movies dos anos 80, torcemos por Jay, acreditamos nela, não somente no temor que toma conta de sua vida, como também no senso de responsabilidade que a domina – e olhem que não são poucos os que, mesmo conscientes dos perigos, se oferecem para transar com ela. Jay verá uma saída com a ajuda de seus amigos, um grupo bem curioso formado por sua irmã, a amiga leitora e um pouco porca, o garanhão da escola e o menino apaixonado. Eles terão de se unir diante desta estranha adversidade. Ao fim (em um gesto belo e, por que não, político), como em Carpenter, Jay e seus amigos dirão não. Eles se recusarão a fazer este jogo. Só não sabemos se isso dará certo. Quem viver verá.

 

A Corrente do Mal | It Follows
(EUA, 100 min., 2014)
Direção: David Robert Mitchell
Distribuição: California Filmes
Estreia: 27 de agosto

 

Por Julio Bezerra

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