Os Coen, seus heróis e seu duplo movimento

É difícil negar que os irmãos Ethan e Joel Coen tenham construído uma carreira sólida, de assinatura reconhecível e recheada de curiosos desafios. O cinema dos Coen é sempre, desde “O Gosto de Sangue” (1984), um jogo de engenharias narrativas, adaptações e releituras. É também um cinema sobre o americano médio. Os irmãos Coen vêm se mostrando zelosos escavadores dos cantos anônimos e/ou menores da vida americana, dos subúrbios do norte da Califórnia aos costumes do moderno Centro-Oeste americano, passando pela era da Grande Depressão no Mississipi. Eles estão sempre, curiosamente, momentos antes ou depois de alguns marcos históricos. E, diante destes, os interessa o herói menos provável e suas missões mais banais e/ou estapafúrdias. Diante deste cinema, o talento dos irmãos e suas jornadas nada convencionais conduzidas com um humor bem característico convivem sempre com altas doses de cinismo, algum distanciamento e a impressão de filmes desafiadoramente impessoais. “Ave, César!”, o novo longa da dupla, parece nos dizer que esta espécie de dualidade, que o melhor e o pior dos irmãos, são inseparáveis.

Eddie Mannix (Josh Brolin), um executivo de estúdio devotamente católico, é o herói da vez. Ele conduz com mão firme e muita criatividade os projetos e as estrelas da Capital Pictures. Nós o acompanhamos na resolução de algumas fofocas, no jogo com a imprensa, e também em filmes em várias fases de produção – nenhum deles realmente convincente como pastiche, embora engraçados: os musicais estrelados por DeeAnna Moran (Scarlett Johansson) e Burt Gurney (Channing Tatum), o drama de Laurence Laurentz (Ralph Fiennes) e o cowboy cantor Hobie Doyle (Alden Ehrenreich). O mundo, em eterna crise, de Mannix ameaça entrar em colapso quando Baird Whitlock (George Clooney), a estrela festeira de um épico religioso (também chamado de “Ave, César!”) é sequestrado por comunistas.

A “saga” do herói no cinema dos irmãos Coen é sempre sombreada por uma série de perguntas. E as que atormentam Mannix só fazem encorpar a crise de fé pela qual vive o nosso protagonista – não é a toa que ele passa o longa inteiro ponderando uma bela oferta de emprego em outro ramo. Por que eu? As sequências e eventos que se seguem são catalisados por esse dilema, apresentam-se como possíveis respostas, com alguns mistérios no horizonte, sempre em uma espécie de círculo vicioso. O mundo dos irmãos Coen é o mundo de heróis e vilões do cotidiano, de cidadãos comuns tentando dar sentido à vida como a vivemos, personagens que não têm nem o tempo nem os meios para explorar, resistir ou compreender os grandes temas à sua volta. Ao final, como em muitos dos filmes dos irmãos Coen, não sem altas doses de cinismo, “Ave, César!” termina como começou – Doyle é a voz do senso comum, travestida de voz da razão; ele funciona como o xerife Ed Tom Bell de “Onde os Francos Não Têm Vez” (2007) e o estranho sem nome de “O Grande Lebowski” (1998).

“Ave, César!” é este duplo movimento. A retomada de um simples prazer de filmar, de “colocar em cena”, convive sempre com a sensação de uma fria e distanciada tentativa de jogo com o passado. A noção alargada de narrativa e enredo dramático, que permite as mais diversas digressões e possibilita a exploração dos atores, seus tipos e sotaques (e nestes o cinema dos irmãos encontra algumas de suas melhores piadas), esbarra em diversos pontos cegos, em sequências sem muito sentido, em um apanhado de ideias em variadas fases de formação (vide a ampla lista de participações especiais), em um final abrupto. O melhor e o pior dos irmãos Coen caminham de mãos dadas, como lados inseparáveis de uma mesma moeda. O que não nos impede de nos divertirmos aqui e ali, é preciso, mais uma vez, dizer: “Ave, César!” é um comentário genuinamente divertido e por vezes simplório sobre o universo insular do sistema de estúdio hollywoodiano, ou pelo menos da maneira que ele foi imortalizado em proporções maiores do que a vida.

 

Ave, César! | Hail, Caesar!
EUA/ Reino Unido, 100 min., 2016
Direção: Joel e Ethan Coen
Distribuição: Universal Pictures
Estreia: 14 de abril

 

Por Julio Bezerra

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