Ele está de volta, com “A Assassina”

Wuxia é uma espécie curiosa de reservatório da memória cultural chinesa, com raízes profundas na história do país. São histórias sobre assassinos lendários com o inconstante clima político ao fundo e uma certa tendência ao realismo social. Um gênero que combina literatura, música, dança e artes marciais, e que já foi poesia, novelas, seriados e alimenta a imaginação dos mais variados cineastas, quase como um rito de passagem, que dirá Zhang Yimou, Wong Kar-Wai e Jia Zhang-Ke. Agora é a vez de Hou Hsiao-Hsien. Ele mesmo. Talvez o maior cineasta contemporâneo, longe das telas faz já oito anos.

“A Assassina” marca seu retorno ao drama histórico, bem como a questões relativas ao passado distante da China – no que invariavelmente nos remete ao sonho febril de seu corolário estético-temático mais próximo, a obra-prima “Flores de Shangai” (1998). Adaptado de um conto da Dinastia Tang, “Nie Yinniang”, “A Assassina” nos apresenta a história da princesa Yinniang (Shu Qi), que é sequestrada de sua família imperial por uma freira no exílio e treinada para se tornar uma assassina com o único propósito de matar políticos corruptos. Como punição por falhar em uma de suas atribuições, a freira (Zhou Yun) a envia de volta para casa para assassinar seu primo Tian (Chang Chen), um proeminente líder militar.

Adepto fervoroso do plano sequência (para se ter uma ideia, os 113 minutos de “Flores de Shangai” foram montados em apenas 37 planos), Hsiao-Hsien prima também por um curioso distanciamento em relação ao que nos mostra. Um realismo diverso se institui. Um ritmo bem particular se estabelece logo no início: a câmera contemplativa e à deriva de Mark Lee Ping-bin intui um tom meditativo, expansivo, até que, de repente, as intervenções explosivas do editor Huang Chih-chia ganham corpo em cenas de combate. A maior parte da ação que se segue é pontuada pela relutância de Yinniang em matar Tian, um homem a quem ela amou e fora prometida. No entanto, como de costume no cinema de Hsiao-Hsien, discutir o enredo não nos ajuda a melhor nos aventurarmos por este belo filme. Hsiao-Hsien está mais preocupado com uma certa economia de gestos, com a fluidez dos movimentos, com a expressividade dos espaços. Quando Yinniang volta para casa, a perturbação que sua presença impõe se faz sentir palpável menos nos diálogos do que na composição dos quadros, nos silêncios, nas cores. Em qualquer cenário, o acordo formal entre os elementos de cena, os atores e o quadro, diz sempre muito mais do que conseguimos captar pelos diálogos – falados em um dialeto antigo, mais expressivo do que propriamente explicativo ou expositivo.

Esta espécie de embate entre o narrativo e o não narrativo faz parte do cinema de Hsiao-Hsien. Em seus filmes mais recentes, contudo, o equilíbrio entre a sensação de que uma história nos está sendo contada e o continuum de vida que parece brotar diante da câmera não é exatamente uma coincidência ou um aparente paradoxo. É justamente isso o que busca o cineasta taiwanês: o desejo de que os espaços, habitados por personagens ficcionais, respirem sozinhos, a intenção de permanecer sempre na fina linha entre observação e participação. Toda cena em “A Assassina” é uma questão de um equilíbrio bem específico, entre uma narrativa, uma história a ser contada, seus personagens, suas motivações e pontos de virada, e a constituição de um certo espaço-tempo, de um modo de ser que aflora em nossos sentidos por meio de cores, sons e movimentos hipnoticamente repetidos. Ou seja, uma equação entre os personagens e o contexto geral que os cercam, entre a beleza deslumbrante e a absoluta transitoriedade de tudo o que vemos, entre a singularidade de todas as coisas e uma certa noção de totalidade.

Um jogo diferente nos é proposto ao longo do filme. “A Assassina” só pode fazer algum sentido ao final de uma sequência, no fim do longa. Cabe, portanto, a você, caro leitor, aceitar o convite de Hsiao-Hsien: vivenciar uma experiência, uma melodia, um ritmo, um cenário, e partilhar um olhar sobre os personagens que existem naquele mundo.

 

A Assassina | Nie Yin Niang
China, 105 min., 2015
Direção: Hou Hsiao-Hsien
Distribuição: Imovision
Estreia: 5 de maio

 

Por Julio Bezerra

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