“Pequeno Segredo” já nasceu em rota internacional

Embora não imaginasse que o seu primeiro drama de ficção, “Pequeno Segredo”, seria alvo de uma das maiores polêmicas do cinema brasileiro dos últimos anos, ao ser indicado para uma vaga na corrida ao Oscar pelo Ministério da Cultura, David Schurmann já vinha prevendo as possibilidades de seu filme ter alcance para chegar ao mercado global. O filme começou a nascer há mais de seis anos e, segundo o diretor, quando já mostrava as primeiras versões do roteiro aos potenciais parceiros internacionais, inclusive durante o Marché du Film do Festival de Cannes, ouvia que “tinha pegada de Oscar”. Com orçamento de R$ 10 milhões e parte do elenco internacional, o ator Erroll Shand (“Meu Monstro de Estimação”) e a atriz Fionnula Flanagan (“Os Outros”), o filme já vem se desenhando para chegar ao mercado externo.

A filmografia de Schurmann, que estudou Cinema e TV na Nova Zelândia, é formada, principalmente, por documentários que retratam as viagens pelo mundo de sua famosa família de velejadores. Em 2007, ele lançou seu primeiro documentário de longa-metragem, “O Mundo em Duas Voltas”. Além de uma série de documentários sobre a “Expedição Oriente”, o seu primeiro longa de ficção foi o suspense “Desaparecidos”, em 2011. Com “Pequeno Segredo”, ele embarcou na primeira longa jornada de fazer um drama, mas mantendo o foco na sua família.

História real em segredo

A história é baseada na vida real de Kat, irmã adotiva de Schurmann, que foi acolhida pelo casal Vilfredo e Heloísa Schurmann, quando conheceram o neozelandês Robert e a brasileira Jeanne durante uma de suas viagens. Anos depois, após a morte precoce de Jeanne e a descoberta da grave doença que afetava os três, Robert decidiu entregar a pequena Kat para o casal de brasileiros antes que a sua própria saúde ficasse totalmente enfraquecida. Ao receber Kat, Heloísa e Vilfredo sabiam da enfermidade e se dispuseram a cuidar da criança, tentando preservá-la de suas próprias debilidades e do preconceito que eles tanto temiam que chegasse a partir da adolescência.

Com poucas mudanças temporais e uma busca por um realismo que transparecesse tudo isso na tela grande, Schurmann tentou transformar em ficção não só uma sequência de fatos reais, mas principalmente as relações e os sentimentos que foram construídos naquela família até o último ano de Kat. Para isso, ele procurou atrizes e atores que se assemelhassem aos personagens verdadeiros e estimulou a pesquisa de campo para que, no final, a fábula que ele tanto queria contar imprimisse a realidade mais próxima possível.

David Schurmann se baseou em história familiar para realizar um filme pautado na força dos personagens e suas relações afetivas

Nesse tom quase documental, fica marcada a ausência de um olhar mais enfático e analítico em aprofundar questões como bullying, intolerância ou preconceito contra a AIDS. O foco se concentra no percurso interno e no afeto das três mulheres que fizeram parte da vida da Kat, em três tempos narrativos, para entender em qual contexto aquela história se insere e como a garota conseguiu sobreviver até os 14 anos de idade, sempre de maneira extremamente doce e suave, como foi na vida real.

Longo trabalho criativo no roteiro 

Inicialmente, o próprio diretor tentou escrever o roteiro com a ajuda de amigos. Mas após 17 versões, Schurmann se convenceu de que era melhor apenas colaborar com o texto e chamar um roteirista mais experiente. Bateu à porta de vários profissionais renomados, não só no Brasil, mas também na Argentina. Segundo o diretor, muitos deles sugeriram dar um rumo mais “visceral”, porém ele queria manter a “fábula”.

“Eu não queria falar de sofrimento, nem que fosse denso. Queria que o filme chegasse a um número maior de pessoas, que fosse um filme de público também”. Até que, por uma indicação, ele chegou ao Marcos Bernstein, corroteirista de “Central do Brasil” – filme de Walter Salles que ficou na lista de finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1999, além de várias coproduções internacionais e cinebiografias. “Com o Marcos bateu, ele entendeu a história e o risco de fazer um filme deste tamanho e de um diretor iniciante”.

Roteiro, fotografia e arte em três tempos

A partir do sinal verde e da ideia de costurar três histórias paralelas, Bernstein começou a sua própria pesquisa, sem ter lido nenhuma das versões anteriores do roteiro. Entrevistou a família Schurmann, especialmente a Heloísa, que na época também estava escrevendo um livro sobre a filha adotiva. “Eu conhecia a família como todo mundo e a história da Kat é uma história linda, emocionante. Numa família comum, já seria tocante. Mas nesta família, que passou metade do tempo no mar, vivendo pelo mundo, torna ainda mais cativante”, acredita Bernstein. Como foram escritos de forma quase concomitante, o livro acabou sendo mais como uma fonte de pesquisa. Portanto, para o roteirista, não se trata de uma adaptação. “O livro são as memórias da Heloísa e o filme é outra coisa”.

Na primeira versão, segundo Schurmann, o roteiro ainda estava “muito ‘21 Gramas’ e pesado”. E ele não queria um filme “arthouse” e nem “carregar no bullying”. “É muito fácil você mostrar a dor de uma forma melodramática, ela entubada e tal. O mais difícil é você mostrar a dor com beleza. A vida da Kat foi absolutamente mágica, sempre olhando para o lado positivo. Eu sempre quis contar como que uma menina vive uma vida dessas, com um dia a dia tão difícil. Isso que eu queria trazer para o filme”, reforça o diretor.

David Schurmann, durante as filmagens de “Pequeno Segredo”

E para trazer essa beleza e não explorar tanto a dor, Schurmann apostou no peruano Inti Briones que, dentre outros filmes internacionais, fez a direção de fotografia de “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang”, documentário mais recente de Walter Salles. A tentativa com Briones era, sobretudo, encontrar meios técnicos que diferenciassem as três narrativas com algo sutil na imagem, e a solução foi usar um jogo de lentes para cada tempo. Ou seja, na própria filmagem, já haveria esse recurso extra e previsto na ordem do dia, e não na pós-produção com ajuste de cor. Dessa forma, a rodagem em Belém, no Pará, ficou em tons mais quentes, enquanto as cenas da Nova Zelândia tinham um tom um pouco mais frio, e também um pouco distante das imagens mais “atuais” da trama, quando a Kat já aparece como uma adolescente.

“Outro detalhe importante que pedi a ele era que a câmera só parasse nos momentos-chave, que são os momentos da revelação do segredo. Porque este é um filme sobre água, sobre movimento, sobre o encontro de pessoas. Por mais sutil que seja, você está sempre em movimento no filme”, entrega Schurmann.

A diretora de arte também foi fundamental para estabelecer essas fronteiras, até porque 70% do filme foi rodado em Florianópolis, 20% em Belém e apenas 10% na Nova Zelândia. A alemã Brigitte Broch
é uma veterana de 73 anos e com larga experiência internacional em produção de design, especialmente nos filmes do oscarizado Alejandro González Iñárritu, como em “Biutiful” (2010), “Babel” (2006), “Amores Brutos” (2000), além de outros que estiveram no páreo do Oscar, como “Moulin Rouge” (2001) e “O Leitor” (2009).

Depois de aceitar um cachê bem abaixo do padrão dos seus últimos filmes, “porque essa história tinha que ser contada”, segundo o relato de Schurmann, Brigitte chegou ao Brasil já para a pré-produção e definição das locações, dando um ritmo extra para todos. O que a equipe não sabia era que ela tinha viajado com o braço quebrado e precisava de uma cirurgia urgente, que acabou sendo realizada em Florianópolis mesmo. “Dois dias depois, ela operou e já estava no centro de produção. Em várias fotos, ela aparece até de tipoia e aquilo deu um ritmo pra galera toda”.

Na preparação e no set, Schurmann entendeu também como Brigitte conseguia transformar as locações catarinenses em interiores que parecessem cenários neozelandeses. “Ela não pensa só na câmera, ela pensa nos atores, em ajudar os atores a se sentirem no ambiente em que os personagens vão estar, nas nuances”. Com isso, foi possível realizar 90% do filme no Brasil. Na Nova Zelândia, foram filmadas apenas as cenas aéreas do mar (da abertura do filme), o exterior da casa da avó paterna, o hospital e a marina repleta de barcos. A própria praia também foi mesclada com ambientes brasileiros.

“Na Nova Zelândia, a praia tem areia preta e o sol se põe na água. Só que, no Brasil, o sol não se põe na água. Então, nós tínhamos que filmar de madrugada, com o sol nascendo. Às 5h, tinha uma cidade sendo montada numa praia deserta para nós filmarmos naquela uma horinha que tinha e parecer que era a Nova Zelândia. Não podia aparecer a areia, só o mar. Foi uma loucura!”, relembra o diretor.

Marcelo Antony, Mariana Goulart e Julia Lemmertz, nos papeis de Kat e seus pais adotivos

Escolha do elenco

Além de Brigitte e Briones, dois atores do elenco principal também são gringos: a irlandesa Fionnula Flanagan e o neozelandês Erroll Shand, que interpretam a avó e o pai neozelandeses de Kat. Fionnula nunca tinha filmado na América do Sul e foi pré-selecionada por uma produtora de casting que estava em busca de uma atriz nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Após ler o roteiro, ela mesma teria pedido para falar com o diretor. “Eu já tinha visto a Fionnula em ‘Os Outros’ e em ‘Transamérica’. Quando conversamos por Skype, durante uma hora, percebi que ela tinha entendido a personagem. Ela disse que aquela mãe amava demais o filho e que ninguém seria boa o suficiente para ele. Vi que ali estava a minha antagonista”, descreve Schurmann.

Shand, o Robert da trama, também foi escolhido por uma produtora de casting. Schurmann queria um ator local, que tivesse o sotaque neozelandês, “que é diferente do australiano e daria um tempero ao filme”. Além de ter uma “turbulência no olhar”, antes de chegar ao Brasil, Shand fez um trabalho de campo sobre o seu personagem: visitou a casa onde o pai da Kat viveu, foi ao túmulo e procurou os amigos do Robert para se aproximar da história e incorporar aquele realismo. “Isso foi muito bacana. Ele chegou 100% preparado, assim como a Fionnula”, diz o diretor.

Do lado brasileiro, Julia Lemmertz, que interpreta a mãe adotiva de Kat, “sempre foi a primeira opção” do diretor, mas as agendas demoraram alguns anos para coincidir. Até que, em 2014, quando o orçamento de R$ 9 milhões já estava captado, a atriz também tinha disponibilidade para assumir o projeto de braços abertos. A partir daí, o mergulho de Julia se traduziu em longas conversas com a Heloísa real, antes de ela sair para a mais recente volta ao mundo da família. Nas palavras de Schurmann, “elas passaram horas chorando juntas, parecia uma terapia das duas. E a Julia captou toda a essência da Heloísa”.

A escolha de Mariana Goulart para o papel principal também não foi menos demorada. Ao todo, foram realizados testes com 380 meninas em diferentes Estados: Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. O perfil também não era muito fácil de ser encontrado. Para incorporar a Kat, as candidatas deveriam ser loiras, miúdas, que falassem inglês, soubessem nadar e tivessem intimidade com a água, e não enjoassem com o balanço do barco. Mas Mariana só foi encontrada mesmo quando um segundo preparador de elenco entrou para a equipe e soltou um anúncio no Facebook. Dessa tentativa, ela e outras três meninas foram pré-escolhidas e fizeram um workshop.

“No começo, a Mariana parecia um pouco apagada, me lembrava até a Natalie Portman nos seus primeiros papéis, ainda criança. Não sabia se no set ela ia conseguir entregar o que a gente precisava. Mas nesse curso ela se revelou. A Mariana não te joga pra fora da tela, ela traz você pra dentro da história. Trabalhar com criança é muito complicado, elas sempre querem agradar. A Mariana, não. Ela é brincalhona, mas fora da tela. Quando ela entra na câmera, parece que baixa um santo. E ela te puxa pra próximo”, compara o cineasta.

Em 2014, Mariana tinha 11 anos de idade e acabou sendo “adotada” por Julia Lemmertz. Sem qualquer experiência anterior como atriz mirim, ela precisava se aproximar daquela mãe para tentar passar uma empatia na tela. E essa preparação partiu da própria Julia, segundo Schurmann. “A Julia foi muito generosa com ela. Ainda nos ensaios, no Rio de Janeiro, ela conquistou a Mariana. As duas saíam para dar uma volta no Jardim Botânico, conversavam sobre a vida. A Julia dava presentinho pra ela. E era uma relação de uma mãe muito presente, carinhosa, que cuida demais às vezes”.

O diretor David Schurmann, no centro, com o elenco do filme

Estratégia de Oscar

Para tentar cativar o público norte-americano, Schurmann pretende levar as duas para as pré-estreias nos Estados Unidos, que devem acontecer em breve. Em setembro, “Pequeno Segredo” foi anunciado como o concorrente brasileiro a disputar uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, desbancando o favorito “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, que teve première internacional na competição do Festival de Cannes, com excelentes críticas, e um protesto inédito na escadaria do Palais des Festivals contra o impeachment da agora ex-presidente Dilma Rousseff.

Passada a polêmica e impacto iniciais, a primeira iniciativa de Schurmann e do produtor João Roni foi conversar com os produtores que já tinham vivido esta experiência de concorrer ao Oscar para tentar traçar uma estratégia que levasse em conta os erros e os acertos anteriores. Fabiano Gullane, produtor de “O Ano em que meus Pais Saíram de Férias” e “Que Horas Ela Volta?” – dois de seus filmes que também foram escolhidos pela comissão brasileira anteriormente –, é “amigo de longa data” de Schurmann e abriu as portas para indicar o melhor caminho e as pessoas com as quais ele deveria articular essa campanha nos Estados Unidos. “O Fabiano foi muito generoso e eu achei isso muito bacana. Naquele mesmo dia, começamos a contatar os estrategistas e os relações públicas”.

Acabaram fechando com o estrategista de “O Ano em que meus Pais Saíram de Férias” e outros consultores, e começaram a levantar o investimento junto aos patrocinadores que pudessem alavancar o orçamento de marketing. Daquele estrategista, Schurmann conta que ouviu as melhores perspectivas que precisava naquele momento: “Ele falou que o nosso filme tinha quatro pontos muito fortes para chegar à final: é sobre uma história real e isso reverbera muito bem com a Academia; é um filme altamente emotivo; tem uma qualidade técnica internacional; e conta uma história pessoal do diretor e isso mostra uma coragem muito grande”.

 

Por Belisa Figueiró

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.